A explosão do Mötley Crüe no cenário musical com “Shout at the Devil”

Pedra fundamental do glam metal, disco ajudou a definir uma era e consolidar a banda como um ícone do rock dos anos 1980

De acordo com o léxico do rock, o mal representa a liberdade em seu estado primordial mais natural. Através do mistério, da escuridão e do oculto, o diabo é o orquestrador dessa liberdade. Faz sentido, portanto, que seu nome conste no título de um dos mais influentes álbuns de glam metal de todos os tempos: “Shout at the Devil”, Mötley Crüe.

O segundo disco de estúdio do grupo definiu a estética do movimento e foi seu principal catalisador — predicado que “Appetite for Destruction” do Guns N’ Roses não poderia reivindicar, já que só apareceria quatro anos mais tarde. Mais que isso: a ascensão meteórica do Crüe não só ditou o som e o visual de toda uma era, como também gerou hordas de imitadores cujos talentos só não eram menores que o nível de ameaça que representavam.

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Esta é a história de “Shout at the Devil”, um clássico gravado à base de Foster, Budweiser, gim, muitas garrafas de Jack Daniel’s, licor, conhaque, cocaína aos montes e mulheres liberais.

Uma meteórica ascensão à fama

Quando formaram o Mötley Crüe em Los Angeles em abril de 1981, Vince Neil (vocal), Mick Mars (guitarra), Nikki Sixx (baixo) e Tommy Lee (bateria) não faziam ideia de que se tornariam uma das bandas mais influentes — e posteriormente copiadas — da cena glam metal dos anos 1980.

Sua meteórica ascensão à fama começou já no álbum de estreia, “Too Fast for Love”, lançado de forma independente em 10 de novembro de 1981. Embora gravado com um orçamento relativamente baixo — cerca de 3 mil dólares — e no tempo recorde de cinco dias, o disco ganhou reconhecimento local e o Mötley rapidamente se tornou uma febre entre os fãs de hard e metal de L.A.

A grande virada aconteceu quando a banda assinou um contrato de gravação com a Elektra Records em 1982. A Elektra reeditou “Too Fast for Love” em uma versão ligeiramente remasterizada, ampliando a distribuição e dando ao álbum exposição nacional. A faixa “Live Wire” foi lançada como single e ganhou um videoclipe que obteve destaque na MTV, ajudando ainda mais a construir a reputação da banda.

Assim que “Too Fast for Love” bateu a marca de 200 mil cópias vendidas, Bob Krasnow, o todo-poderoso da Elektra, decretou: era hora de fazer um novo álbum.

Tom Werman “nos deixou ser nós mesmos”

Estamos em 1983, o ano em que tudo virou de cabeça para baixo. “Metal Health”, do Quiet Riot, se tornou o primeiro álbum de metal a liderar a parada da Billboard e a MTV começou a colocar clipes como o de “Cum on Feel the Noize” em ampla exibição, transformando essa e outras músicas daquela época em clássicos.

O plano inicial da Elektra Records, para que o Mötley Crüe atingisse o mesmo patamar, era usar o produtor Roy Thomas Baker. Mas, de acordo com Nikki Sixx, conforme citado no livro “The Big Book of Hair Metal”, de Martin Popoff (Voyageur Press, 2014), o cara que produziu os discos do Queen foi “uma completa decepção”:

“Ele simplesmente ficava deitado pelos cantos, de ressaca o tempo todo. Entrava e dizia: ‘Ah, um pouco menos de reverb, amados’. Quem diabos esse idiota pensa que é? Ele tinha perdido a mão. Estava, basicamente, no piloto automático.”

Então Tom Werman, que tinha trabalhado com Cheap Trick, Molly Hatchet e Ted Nugent, foi chamado. Inicialmente, a banda foi contra, como o próprio Werman afirma em depoimento aos autores Tom Beaujour e Richard Bienstock reproduzido no compêndio “Nöthin’ But a Good Time” (Estética Torta, 2022):

“O Motley Crue era jovem, inquieto, casca-grossa… eles meio que temiam estar sendo servidos de alimento para a máquina corporativa. Eram muito combativos, estavam preocupados em ser mal interpretados e levados pelo caminho errado. Mas então eu disse algo parecido com ‘Vou trabalhar com vocês. Sou contratado por vocês. Não sou um ditador, sou um colaborador e tentarei ajudá-los a fazer o disco que desejam’.”

Com essa fala, o “judeu com jeito de almofadinha” convenceu a rapaziada e acabou sendo o produtor perfeito, de acordo com Sixx:

“Ele nos deixou ser nós mesmos, meio que ficou fora do caminho. Aparou as arestas, por assim dizer. Em outras palavras, não teríamos conseguido gravar e masterizar por conta própria. Havia muitas etapas, e ele foi o cara que coordenou tudo isso.”

Nessa de deixar o Mötley ser eles mesmos, Werman penou um bocado. Isso porque, de acordo com Sixx, “muitas coisas estranhas estavam rolando, sobretudo sexualmente”:

“Eu estava usando muita droga. Orgias e dias a fio na casa de alguém que eu nem conhecia. Acordava de uma noitada e tinha gente pelada e drogas por toda parte.”

Durante a gravação de “Shout at the Devil”, o baixista quebrou o ombro num acidente de carro, sendo obrigado a tocar com o braço na tipoia. Ele se lembra de mal conseguir mover o braço:

“Tive que terminar o baixo de ‘Red Hot’ com um pino de metal no ombro e um gesso enorme. Foi tão doloroso que tomei dez aspirinas naquele dia.”

Para combater as dores severas, os médicos de Sixx prescreveram Percocet. O uso do poderoso opioide pelo baixista o levou a uma viciante dependência de heroína, que o faria gastar cerca de US$ 3,5 mil por dia na droga e quase lhe custou a vida anos mais tarde.

Mötley Crüe e a magia negra

Comparado a “Too Fast for Love”, “Shout at the Devil” é um álbum mais sombrio. Nikki Sixx o chama de “reflexo de que estávamos numa onda mais pesada”:

“Eu estava brincando com magia negra e acho que isso gerou muita energia negativa e ruim. Era como Sodoma e Gomorra”.

Empresário do Mötley Crüe na época, Doc McGhee acredita que parte disso era pra chamar a atenção. A Tom Beaujour e Richard Bienstock, ele diz que Nikki “gostava de chocar as pessoas”. Mas para o fotógrafo e “consultor de imagem” do Mötley, Barry Levine, a adoção de uma imagem satânica não era apenas uma tentativa de capitalizar em cima do frenesi ocultista dos anos 1980, no qual o heavy metal desempenhou um grande papel.

Em “Fade to Black”, de Martin Popoff e Ioannis (Sterling, 2012), consta a seguinte fala de Levine:

“Isso foi ideia do Nikki. Era isso que ele sentia que era, e era lá onde sua música estava. Para o Nikki, aquilo tudo era real. É engraçado, pois eles tinham acabado de lançar o primeiro álbum; eles ainda eram uma banda glam em Los Angeles, certo? O visual deles era glam, com cabelos armados, camisetas rasgadas, calças jeans rasgadas, botas altas, basicamente qualquer coisa que pudessem arranjar de graça. Eles não tinham dinheiro.”

Vince Neil é partidário essa visão e acrescenta um detalhe que pode ter passado despercebido no meio:

“Se você olhar para como estávamos vestidos na contracapa de ‘Too Fast for Love’ e, em seguida, como estávamos na época do ‘Shout at the Devil’, a única diferença é que tínhamos mais dinheiro. [Risos.] Se você reparar bem no primeiro álbum, havia uma foto nossa com um pentagrama num cenário macabro. Isso foi bem antes de ‘Shout at the Devil’ ser lançado. Portanto, nós já estávamos nesse caminho.”

“Era tudo intenso o tempo todo”

O satanismo de boutique não respinga (tanto) nas letras. Curiosamente, a faixa-título de “Shout at the Devil” não tem nada a ver com o demônio em si, pelo que Sixx conta em “The Big Book of Hair Metal”:

“‘Shout at the Devil’ era uma canção política na verdade. Não tinha nada a ver com Satanás. Era sobre [o então Presidente dos Estados Unidos] Ronald Reagan, e isso foi distorcido.”

Outra canção do disco que sofreu distorção de significado foi “Bastard”, incluída na infame lista The Filthy Fifteen, compilada pelo Parents Music Resource Center, que trazia quinze músicas que a organização considerava as mais controversas e “sujas” em termos de letras e conteúdo. O que o PMRC entendeu como uma incitação à violência era, na verdade, segundo Mick Mars, em conversa com o jornalista Steve Newton:

“Sobre uma pessoa específica com quem costumávamos trabalhar. Não vou dizer quem era ou qualquer outra coisa, mas sentíamos que tínhamos sido apunhalados pelas costas por essa pessoa. Então, é apenas uma inversão disso; é como se disséssemos: ‘Ei, vamos virar o jogo’. É apenas uma música, sabe? É como ir ao cinema e assistir a ‘O Massacre da Serra Elétrica’. Você sabe que é apenas um filme, e ‘Bastard’ é apenas uma música.”

Inabalável, Sixx define o álbum como “o nosso ‘Goats Head Soup’” — em referência ao disco homônimo lançado pelos Rolling Stones em 1973, que gerou controvérsia e especulação devido à imagem com um bode em um caldeirão de sopa presente no encarte — e justifica:

“Estávamos ficando mais teatrais. Foi legal, estava tudo bem para mim. A banda sempre foi extremista, excêntrica. Nós usávamos mais drogas, comíamos mais garotas, bebíamos mais álcool, nos envolvíamos em mais brigas do que todas as outras bandas. Era tudo intenso o tempo todo.”

Na seara temática, canta-se sobre a selvageria das ruas (“Danger”), prostituição na mais tenra idade (“Too Young to Fall in Love”), a volatilidade dos relacionamentos (“Looks That Kill”, “Ten Seconds to Love”) e um nada fortuito encontro com os Hells Angels (“Knock ‘Em Dead, Kid”). Completam a tracklist as vinhetas “In the Beginning” e “God Bless the Children of the Beast”, além de um cover de “Helter Skelter”, dos Beatles, muito antes de o U2 resolver fazê-lo em “Rattle and Hum” (1988).

“Milionários, viciados e verdadeiros astros do rock”

Com peças publicitárias que diziam “Music to enrage the savage beast” (“Música para enfurecer a fera selvagem”), “Shout at the Devil” foi lançado em setembro de 1983. Não obstante seja um disco simples, a Elektra o lançou no formato capa-dupla.

A ideia partiu do A&R da gravadora, Tom Zutaut, conforme o executivo Mike Bone se recorda em “Nöthin’ But a Good Time”:

“Ele queria uma embalagem gatefold. E todo mundo estava tipo ‘Você ficou maluco? Isso vai custar 25 ou 50 centavos a mais a unidade’. O Tom disse: ‘Olha, se você fizer essa embalagem gatefold, isso fará a banda parecer maior do que realmente é. Porque a molecada vai comprar esse álbum, vai abrir a capa e vai ver a banda. Esse é o plano de marketing’. Então, a pedido do Tom, fizemos uma embalagem gatefold. Deus o abençoe, conhecia o mercado de cabo a rabo.”

O gasto adicional com a capa fez com que a Elektra não desse um centavo para o Mötley Crüe, obrigando o empresário Doc McGhee a pagar pelos videoclipes de “Looks That Kill” e “Too Young to Fall in Love” do próprio bolso.

“Era ridículo”, diz a vice-presidente do departamento de vídeo da Elektra Records, Robin Sloane, sobre o clipe de “Looks That Kill” no mesmo “Nöthin’ But a Good Time”.

“Foi o primeiro clipe que fiz. Custou, sei lá, uns 50 mil dólares. Era um lance meio dominatrix. Como mulher, foi horrível vê-las objetificadas como naquele clipe. Mas por outro lado ninguém apontou uma arma pra cabeça delas pra estarem lá. Sendo assim, beleza. Passava toda hora na MTV.”

Para divulgar “Shout at the Devil”, o Mötley Crüe fez uma turnê com Ozzy Osbourne e foi convidado a participar do giro Monsters of Rock de 1984, abrindo para os headliners Van Halen e AC/DC. Foram 13 meses na estrada, ao final dos quais, de acordo com Nikki Sixx, “tínhamos nos tornado milionários, viciados em drogas, alcoólatras, viciados em sexo e verdadeiros astros do rock”.

Embora “Shout at the Devil” seja o álbum que fez o Mötley Crüe estourar, para o baixista, seu maior impacto na banda foi musical, não comercial:

“Com ‘Shout at the Devil’, eu senti que definitivamente era hora de mudarmos. Era hora de pisar um pouco mais fundo no acelerador, colocar um combustível mais aditivado no tanque, aumentar o volume dos amplificadores e realmente extrapolar os limites. Para mim, essa era a visão geral de todo o próximo passo a ser dado pelo Mötley Crüe…”

Alcançando a posição número 17 na parada da Billboard, “Shout at the Devil” atingiu a marca de quatro milhões de cópias vendidas, conquistando disco de platina quádruplo. Ou seja, dos 25 milhões de unidades que a banda vendeu somente nos Estados Unidos, quase 1/5 equivale às vendas de “Shout”. Precisa de mais?

Mötley Crüe — “Shout at the Devil”

  • Lançado em 26 de setembro de 1983 pela Elektra
  • Produzido por Tom Werman

Faixas:

  1. In the Beginning
  2. Shout at the Devil
  3. Looks That Kill
  4. Bastard
  5. God Bless the Children of the Beast (instrumental)
  6. Helter Skelter (cover de Beatles)
  7. Red Hot
  8. Too Young to Fall in Love
  9. Knock ‘Em Dead, Kid
  10. Ten Seconds to Love
  11. Danger

Músicos:

  • Vince Neil (vocais)
  • Mick Mars (guitarra, violão, backing vocals)
  • Nikki Sixx (baixo, backing vocals)
  • Tommy Lee (bateria, backing vocals)

Músicos adicionais:

  • Allister Find (narrador da faixa 1)
  • Jay Winding (teclados)
  • Paul Fox (teclados)
  • Tom Kelly (backing vocals)
  • Richard Page (backing vocals)

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Marcelo Vieira
Marcelo Vieirahttp://www.marcelovieiramusic.com.br
Marcelo Vieira é jornalista graduado pelas Faculdades Integradas Hélio Alonso (FACHA), com especialização em Produção Editorial pela Universidade Estadual Paulista (UNESP). Há mais de dez anos atua no mercado editorial como editor de livros e tradutor freelancer. Escreve sobre música desde 2006, com passagens por veículos como Collector's Room, Metal Na Lata e Rock Brigade Magazine, para os quais realizou entrevistas com artistas nacionais e internacionais, cobriu shows e festivais, e resenhou centenas de álbuns, tanto clássicos como lançamentos, do rock e do metal.

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