Aos olhos e ouvidos de muitos, “Machine Head” é a obra-prima do Deep Purple. Apresentando algumas de suas melhores músicas – “Highway Star”, “Smoke On The Water”, “Lazy” e “Space Truckin’” –, o álbum, lançado dia 25 de março de 1972, possui uma história no mínimo sui generis; história essa que este artigo, escrito com base em entrevistas dadas por Ian Gillan (vocais), Ritchie Blackmore (guitarra), Jon Lord (teclados), Roger Glover (baixo) e Ian Paice (bateria) nas últimas décadas e a diversos veículos de imprensa, busca recontar.
A história de “Machine Head”, pelo Deep Purple
“Mas um idiota com um sinalizador…”
Um experimento bem-sucedido durante as gravações de “Fireball” (1971) ditou como o álbum seguinte do Deep Purple seria feito.
A fim de obter um som de bateria mais cheio, Ian Paice gravou suas partes no corredor do estúdio, valendo-se da acústica do ambiente para criar o som. O resultado agradou tanto a todos que ficou decidido que o próximo disco seria gravado numa situação ao vivo, em condições semelhantes. Em outras palavras, um álbum ao vivo sem o público.
Para fugir dos impostos da Coroa Britânica, o grupo optou por gravar na Suíça utilizando a unidade móvel de gravação dos Rolling Stones – caminhão cujo baú continha um dos estúdios mais modernos do mundo. O local escolhido foi o The Casino, em Montreux, famoso palco do anual Montreux Jazz Festival.
ROGER GLOVER: “No início de dezembro [de 1971], voamos de Londres para Montreux, levando nossas esposas e namoradas, nossos empresários, o Sr. e Sra. Martin Birch [produtor do álbum], nosso engenheiro de som e sua esposa. Nossos road managers trouxeram todo o nosso equipamento de Londres de caminhão”.
A unidade móvel chegou da França no dia 6 de dezembro; dia em que o Casino receberia um show de Frank Zappa.
IAN GILLAN: “Estávamos hospedados no Eden au Lac Hotel, na mesma rua. Aparecemos para ver o show do Zappa. Nossos assentos eram bem legais, ficavam bem na frente do palco. No final do show, que foi espetacular, um cara apareceu com uma pistola sinalizadora e atirou em direção ao teto”.
ROGER GLOVER: “Acho que alguém disse a ele [Frank] que ele teria que parar o show, porque não parecia que haveria um incêndio no começo”.
RITCHIE BLACKMORE: “O teto pegou fogo. Frank se virou e pediu calma para todos. Ele então atirou sua guitarra no chão e pulou pela janela. Foi muito engraçado. Ele queria ser o primeiro a sair. Tivemos então cerca de 15 minutos antes que o lugar fosse completamente destruído, o que foi assustador”.
ROGER GLOVER: “Em poucos minutos o lugar virou um inferno. Milagrosamente ninguém ficou gravemente ferido. Levou sete horas até que o fogo fosse controlado. Finalmente, tornou-se apenas uma ruína negra fumegante, deixando um rastro de problemas a serem resolvidos. Zappa perdeu todo o seu equipamento, e nós perdemos a razão de estarmos na Suíça em primeira instância”.
“Smoke On The Water”, a pedra fundamental
Com um álbum para ser feito, o Deep Purple se viu sem ter onde gravá-lo. Mas uma visão que Gillan teve serviria de inspiração para o título de sua maior música de todos os tempos, e o incêndio acidental e seus desdobramentos renderam a crônica do azar extremo que é a letra de “Smoke On The Water”.
IAN GILLAN: “Terminamos a noite num bar-restaurante a cerca de 400 metros do Casino, e estava um calor de matar. O vento descia das montanhas e levava a fumaça e as chamas por sobre o lago, e a fumaça pendia feito uma cortina sobre o lago”.
Estar em posse da unidade móvel de gravação dos Rolling Stones permitiu ao Deep Purple pensar num plano B. Com a ajuda de Claude Nobb, um dos responsáveis pela operação do Casino, a banda se instalou no The Pavillon, um grande auditório num bairro residencial de Genebra. A estada, no entanto, durou pouco: os cinco e sua equipe foram obrigados a deixar o local pouco depois de gravar a base do que se tornaria “Smoke On The Water”.
RITCHIE BLACKMORE: “‘Smoke on the Water’ foi gravada em um grande auditório na Suíça usando a unidade móvel dos Rolling Stones. Escolhemos um auditório porque queríamos um som grande e ecoante para a base. Até que a polícia começou a bater na porta. Sabíamos que era a polícia, e sabíamos que eles iam dizer ‘Parem de gravar!’ porque tinham recebido queixas dos vizinhos sobre o barulho que estávamos fazendo. Não abrimos a porta. Perguntamos ao Martin ‘Valeu essa tomada?’ e ele disse ‘Não sei, preciso ouvi-la por completo para saber se valeu’. A polícia, que a essa altura já tinha até viaturas do lado de fora, continuava batendo na porta. Nós não iríamos abrir até que soubéssemos que tínhamos feito a tomada certa. Finalmente Martin deu o sinal verde: ‘Sem erros, pessoal. Valeu’. Depois que abrimos a porta, a polícia nos expulsou: ‘Vocês têm que parar, têm que ir para outro lugar’”.
Com um riff que é o equivalente no rock à abertura da Quinta Sinfonia de Beethoven, “Smoke on the Water” é, de toda a obra do Deep Purple, sua peça mais duradoura.
RITCHIE BLACKMORE: “Simplicidade é a palavra. E é uma música simples – você pode ouvir as pessoas tocando nas lojas de instrumentos musicais. Nunca tive coragem de escrever algo tão simples até ouvir ‘I Can’t Explain’ e “My Generation’ [do The Who]. Esses riffs eram tão diretos que pensei comigo mesmo: ‘Certo, se Pete Townshend [guitarrista do The Who] pode se dar bem com tão pouco, então eu também posso!’”.
JON LORD: “É difícil escrever um hard rock convincente em um piano. Eu desafio qualquer um a criar um riff como o de ‘Smoke On The Water’ em um piano de cauda. Em razão disso, Ritchie [Blackmore] é inestimável, sempre foi e sempre será. Ele é a faísca que acende o Deep Purple. Não posso competir com ele nesse quesito”.
Curiosamente, o riff de “Smoke on the Water” quase passou batido por Blackmore. Foi Roger Glover quem sacou o potencial daquela sequência de notas da primeira vez que a ouviu.
ROGER GLOVER: “Sempre gravo tudo o que fazemos, especialmente quando estamos tocando nos ensaios. Essa prática começou quando ouvi Ritchie tocar aquele riff matador, e quando paramos, pedi para ele tocar de novo e ele perguntou ‘Que riff?’ – ele nem tinha se dado conta do que tinha tocado! Muitas das nossas músicas vêm de jams, e aquele riff poderia servir de base para uma boa música”.
Embora hoje ostente o status de clássico absoluto do rock, “Smoke On The Water” só foi lançada como single em maio de 1973. Foi a quarta e última música de trabalho de “Machine Head”.
JON LORD: “Uma música ser boa ou não independe se ela funciona como um single ou não. Algumas músicas são realmente raras – elas fazem o que querem. ‘Smoke On The Water’, por exemplo, é uma música que cresceu demais ao longo dos anos para que a banda pudesse controlá-la. Até certo ponto, promoveu uma reviravolta: a música controla a banda, e não o contrário”.
IAN GILLAN: “O lance sobre ‘Smoke On The Water’ é que não sei quantas milhares de vezes eu a cantei, mas nunca pensei ‘Oh não, de novo não’. Todas as vezes foi fantástico. É uma música simples, tem uma estrutura simples, tem uma letra narrativa, conta uma história, e acho que isso faz com que ‘Smoke On The Water’ tenha seu próprio espírito, sua vida própria. Não consigo me imaginar fazendo um show sem cantá-la”.
JON LORD: “Seríamos linchados se não a tocássemos!”.
“No fim das contas, o Grand Hotel…”
Com apenas uma base gravada antes que a banda fosse informada de que só poderia utilizar o The Pavillon durante o dia por causa da lei do silêncio vigente, foi aberta uma nova temporada de buscas por um local onde ela pudesse trabalhar a noite. Foram visitados desde abrigos antibomba até cofres subterrâneos usados para armazenar obras de arte durante a Segunda Guerra Mundial até finalmente escolherem o andar térreo de um hotel, o Grand Hotel.
A presença de poucos hóspedes devido à baixa temporada agilizou as negociações. Uma área de corredor foi isolada, com acesso somente por uma varanda entre dois quartos do hotel. O grosso da gravação foi realizado nesses ambientes.
RITCHIE BLACKMORE: “Havia cabos por todos os lados, os hóspedes não acreditaram quando viram todo o equipamento”.
ROGER GLOVER: “Em um dia, [o térreo do hotel] foi transformado de um ambiente frio, escuro e úmido em uma espécie de estúdio improvisado. Um aquecedor industrial, algumas luzes vermelhas e os colchões das camas empilhados sobre as janelas tornavam-no razoavelmente confortável. O fundamental, no entanto, foi a falta de isolamento acústico para que o som de nossos instrumentos não fosse abafado e batesse nas paredes nuas e no piso de ladrilhos”.
RITCHIE BLACKMORE: “Para ouvir o que havíamos gravado tínhamos que fazer uma viagem e tanto. Do corredor, nós andávamos até um quarto, depois para o banheiro, depois atravessávamos esse banheiro e entrávamos em outro quarto, e depois atravessávamos a área de dormir até essa varanda externa e lembre-se que estávamos na Suíça em pleno inverno, então havia sessenta centímetros de neve do lado de fora. Nós então descíamos a varanda e entrávamos em outro quarto, atravessávamos duas portas e subíamos algumas escadas. Então caminhávamos até uma área de recepção, saíamos pela porta principal e cruzávamos um pátio. Como você pode imaginar, não fizemos muita questão de ouvir o que tínhamos gravado”.
O Deep Purple terminou as gravações de “Machine Head” no dia 21 de dezembro. O investimento total foi de cerca de 8 mil libras, das quais cinco mil foram o aluguel da unidade móvel. Graças – entre outros fatores – à perícia técnica de Martin Birch, o grupo finalmente conseguiu o seu disco ao vivo sem público.
ROGER GLOVER: “Começávamos os trabalhos todos os dias por volta das duas da tarde e geralmente terminávamos a tempo do café da manhã seguinte. Exceto por algumas escapadas até as montanhas das redondezas para um pouco de ar fresco, trabalhamos continuamente, e felizes da vida, por cerca de três semanas até que todas as faixas do álbum e um lado B [‘When a Blind Man Cries’] estivessem prontos”.
RITCHIE BLACKMORE: “Gosto muito quando consigo fazer tudo rapidamente, e fizemos aquele LP inteiro em três semanas. Foi tudo muito natural e deu tudo certo”.
“Highway Star”, um atestado de genialidade
A segunda faixa mais importante de “Machine Head” começou meio que por acaso, durante uma entrevista realizada no ônibus da banda a poucas horas de um show em Portsmouth, em 13 de setembro de 1971.
IAN GILLAN: “Um jornalista perguntou ao Ritchie como funcionava o processo de composição da banda. Em um raro momento espirituoso, Ritchie pegou sua guitarra e disse ‘funciona assim’ e começou a tocar o que se tornaria a base de ‘Highway Star’, e eu me juntei a ele improvisando uma letra sobre estarmos na estrada e sermos uma banda de rock ‘n’ roll”.
Uma vez no local do show, a banda trabalhou nas partes que faltavam durante a passagem de som e incluíram a recém-escrita “Highway Star” no set naquela noite.
ROGER GLOVER: “Pensamos em dar ao público um vislumbre do que estava por vir [no próximo álbum]. Ritchie pegou uma guitarra e começou a tocar. Ian começou a falar sobre carros, então eu inventei o título e quando nos demos conta, a música estava pronta”.
Embora Blackmore seja conhecido por sua capacidade de improvisação, o solo de “Highway Star” foi composto e era frequentemente executado ao vivo como na versão em estúdio.
RITCHIE BLACKMORE: “Eu nunca trabalho em meus solos. Tudo o que faço é totalmente espontâneo. Se alguém disser ‘Isso foi bom; toque de novo’, não vou conseguir. O único solo que guardei na memória é o de ‘Highway Star’. Gosto de tocá-lo, não obstante sejam apenas arpejos baseados em Bach”.
Foi questão de tempo até que “Highway Star” assumisse o lugar de “Fireball” como número de abertura dos shows do Purple; posto que ocupa até hoje.
ROGER GLOVER: “Alguém me perguntou uma vez com toda a seriedade, e eu posso entender o porquê, por que não fazíamos mais músicas como ‘Highway Star’? Veja bem, antes de ‘Highway Star’ ser composta, não sabíamos como seria; ela deu à luz a si mesma e se tornou o que se tornou. Não é o tipo de processo que você possa repetir. Tudo o que você pode fazer é repetir as mesmas coisas que fazia antes de ‘Highway Star’ ser criada, que é basicamente compor música. Você não pode dizer antecipadamente que tal coisa vai ser uma nova ‘Highway Star’. ‘Highway Star’ foi algo sem precedentes”.
Sucesso imediato e jamais repetido
“Machine Head” alcançou o primeiro lugar na parada de álbuns do Reino Unido sete dias após seu lançamento, permanecendo lá por duas semanas. Nos Estados Unidos, entrou no top 40 na 34ª posição, alcançando o número 7, sua melhor colocação, somente em 1973, quando “Smoke on the Water” foi lançada como single. O álbum permaneceria nas paradas da Billboard por mais de dois anos.
Hoje, é presença garantida nas listas de maiores clássicos do rock e discos indispensáveis dos anos 1970. Com todos os méritos.
RITCHIE BLACKMORE: “Eu particularmente não gostei muito do ‘Fireball’, porque estávamos trabalhando além da conta. Se tivéssemos um dia de folga, nossos empresários nos mandavam para o estúdio para tentar gravar o que fosse. Mas tivemos cerca de um mês de folga antes de irmos gravar o ‘Machine Head’, o que me permitiu escrever algumas coisas. No ‘Machine Head’, Ian [Gillan] e eu ainda estávamos na mesma sintonia. Mas no ‘Who Do We Think We Are?’ (1973) estávamos em mundos completamente diferentes. Acho que havíamos esgotado nosso manancial criativo”.
ROGER GLOVER: “O que aconteceu naquele frio corredor de hotel em 1971 definiu nossas vidas”.
Deep Purple – “Machine Head”
Lançado em 25 de março de 1972 pela Purple Records.
- Highway Star
- Maybe I’m a Leo
- Pictures of Home
- Never Before
- Smoke on the Water
- Lazy
- Space Truckin’
Ian Gillan (voz, gaita)
Ritchie Blackmore (guitarra)
Roger Glover (baixo)
Jon Lord (teclados, órgão Hammond)
Ian Paice (bateria, percussão)
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