Como o sucesso de “The Miseducation of Lauryn Hill” fez a cantora abandonar os holofotes

As origens, o êxito, as tretas judiciais e o desconforto de uma das maiores estrelas dos anos 1990 com a fama

O rap sempre foi um gênero musical dominado por homens, seja pela baixa representação de artistas mulheres no mainstream ou até em como elas são representadas nas músicas. Noções arcaicas de misoginia continuam presentes no estilo até hoje, mas rappers femininas ganham cada vez mais espaço.

Há 25 anos, o cenário era muito diferente. O gangsta rap estava no seu auge, de modo que a morte de Tupac Shakur e The Notorious B.I.G. em 1996 sequer atrapalharam o ímpeto do movimento. Mulheres eram para se olhar, não para se prestar atenção no que diziam.

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Em meio a isso, uma artista estava em ascensão. Ela cresceu em meio à indústria, sendo vista como estrela potencial desde muito jovem. Quando a fama chegou na forma de um dos grupos de rap mais populares dos anos 1990, um disco solo parecia o próximo passo lógico.

O mundo queria Lauryn Hill sozinha, mas não esperavam pelo que estava por vir.

Prontos ou não, lá vou eu

A primeira aparição pública de Lauryn Hill foi em 1988, aos 13 anos, no show de calouros do programa “It’s Showtime at the Apollo”. Na ocasião, cantou uma versão de “Who’s Lovin You”, de Smokey Robinson.

A plateia do teatro novaiorquino, famosa por sua ferocidade contra calouros, inicialmente vaiou e criticou sua performance. Contudo, ao final, estavam a apoiando. Era claro desde cedo que a garota tinha talento.

Quando estava no ensino médio, ela conheceu Pras Michel, que a convidou para fazer parte de seu grupo musical, Translator Crew. Logo, outro rapper se juntou a eles, Wyclef Jean. Inicialmente apenas uma cantora no trio, Hill começou a desenvolver suas habilidades nas rimas indo além do esperado para uma mulher. Em entrevista de 1996 à Newsweek em 1996, ela disse:

“Falaram para escutar Salt-n-Pepa e MC Lyte, mas eu estava tipo: ‘eu estou ouvindo rappers homens como Ice Cube’. É daí que eu tirei meu flow.”

Enquanto o grupo penava nos clubes de hip-hop de Nova York, Hill deu início a uma carreira bem sucedida como atriz. Apareceu na novela americana “As The World Turns”, no filme “O Inventor de Ilusões” – dirigido por Steven Soderbergh – e no longa “Mudança de Hábito 2 – De Volta ao Convento”, seu trabalho mais famoso.

Escalada como uma jovem rebelde com talento vocal de sobra, ela surpreendeu a todos com sua habilidade vocal e lírica, sendo capaz de improvisar rimas durante cenas. Todavia, isso era um sinal de onde os interesses de Hill estavam. Ela se formou no ensino médio em 1993 e começou a se dedicar ao grupo, agora rebatizado Fugees – escolhido por Wyclef por ser um termo pejorativo contra imigrantes haitianos – em tempo integral.

A estreia dos Fugees, “Blunted on Reality”, foi lançada em 1994 e vendeu mal. O período era dominado pelo gangsta rap da Costa Oeste dos EUA e a sonoridade do grupo, que combinava reggae, dancehall e ritmos globais com o lirismo de artistas novaiorquinos como De La Soul e A Tribe Called Quest, parecia démodé.

Entretanto, a presença e o talento de Lauryn foram vistos de cara como o principal atrativo dos Fugees, com fãs a incentivando a seguir carreira solo. Isso aumentou tensões dentro do grupo.

A esse ponto, ela estava em um relacionamento amoroso com Wyclef Jean, que era casado. Os dois também tinham uma rivalidade criativa, onde um tentava superar o outro.

Quando os Fugees finalmente estouraram, com o disco “The Score” (1996), era inegável: Lauryn era a estrela. Apesar de singles de sucesso como “Fu-Gee-La” e “Ready Or Not”, o maior hit do álbum foi uma regravação de “Killing Me Softly”, clássico de Roberta Flack. Só não foi uma faixa solo da cantora porque Wyclef fez questão de fazer pequenas interjeições durante o refrão.

À Newsweek, Lauryn deixava clara sua missão, à qual ela retornaria várias vezes durante a carreira:

“Estamos tentando fazer algo positivo com a música porque parece que apenas o negativo está chegando ao topo hoje em dia. Só é necessário uma gota de pureza para limpar uma fossa séptica.”

Os Fugees não sobreviveram muito tempo além disso, terminando em 1997. Wyclef lançou sua estreia solo, “The Carnival”, naquele mesmo ano, enquanto planos para um disco de Lauryn eram empurrados com a barriga pela equipe do grupo desde 1996.

Conversando com a Rolling Stone, o baterista dos Roots, Ahmir “Questlove” Thompson, apontou outro motivo para insatisfação vindo de Lauryn:

“A carreira solo dela não era baseada em ‘quero fazer um álbum’. Era baseada em não ser relegada à coadjuvante do Wyclef.”

Em outro artigo para a Rolling Stone, o ex-empresário de Lauryn, Jayson Jackson, relatou o momento que a cantora decidiu dar um basta:

“Os Fugees estavam na estrada no verão de 1996 e Lauryn me ligou falando: ‘Eu não acredito nesses filhos da p#ta. Eu falo em fazer meu disco solo há mais tempo que qualquer um e eles estão fazendo o disco solo de todo mundo menos o meu! Eu vou sair do grupo’. Eu falei: ‘Liga pro [então presidente da Sony] Donnie Ienner’. E ela respondeu: ‘Eu não quero nada com eles, quero mais arranjar uma turma toda nova’.”

Gravidez como inspiração para Lauryn Hill

Em 1996, numa tentativa de afastar Lauryn Hill da toxicidade de estar num relacionamento adúltero com e sob o controle emocional de Wyclef Jean, amigos da cantora lhe apresentaram a Rohan Marley, filho do lendário músico jamaicano Bob Marley.

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Os dois começaram um relacionamento e Lauryn engravidou do que viria a ser o primeiro de cinco filhos do casal, Zion. Após sua saída acrimoniosa dos Fugees, Wyclef teria tentado barrar produtores e engenheiros de trabalharem com ela sob ameaça de retaliação profissional. 

Lauryn então precisou formar uma equipe de então desconhecidos – produtor Vada Nobles, compositor Kilo, pianista Tejumold Newton e guitarrista Johari Newton –, batizada de New Ark. 

A cantora e rapper havia passado por um período severo de bloqueio criativo perto do fim dos Fugees, mas a descoberta de sua gravidez lhe deu inspiração para escrever sobre as circunstâncias de sua vida. Em entrevista ao livro “Heart of Soul”, escrito por Leah e Elina Furman, Lauryn descreveu seu estado durante esse período:

“Quando algumas mulheres estão grávidas, seu cabelo e suas unhas crescem, mas para mim foi minha mente e habilidade para criar. Eu tinha o desejo de escrever de um jeito que não fazia tinha tempo. Não sei se é algo hormonal ou emocional… eu estava muito em sintonia com meus sentimentos na época.”

É estimado que Lauryn tenha composto cerca de 30 canções nesse período, trabalhando em cima de batidas e ganchos produzidos junto com a New Ark. À Rolling Stone, Hill explicou sua ambição sonora:

“[Eu queria] compor canções que liricamente me emocionassem, tivessem a integridade do reggae, a pegada do hip-hop e a instrumentação do soul clássico. [Meu engenheiro e eu trabalhamos] num som que é cru. Eu gosto da crueza de poder ouvir aspereza nos vocais. Eu nunca quero isso removido. Eu não gosto de usar compressores e remover minhas texturas, porque cresci com música gravada antes da tecnologia avançar a ponto de poder ser lisa. Eu quero ouvir a espessura do som. Não dá pra conseguir isso de um computador, porque um computador é perfeito demais. Mas esse elemento humano, isso é o que faz os cabelos na minha nuca levantarem. Eu amo isso.”

Ao levar o resultado dessas primeiras sessões para a Sony, a reação foi de perplexidade. A gravadora ainda tentava apaziguar os ânimos dos Fugees, torcendo por uma reconciliação. Não só Lauryn se mostrava desinteressada nisso: ela apareceu com um conjunto de demos completamente diferente sonicamente do grupo.

Sem falar que o conteúdo lírico do disco, além de abordar questões políticas e espirituais, era sobre Wyclef. E o retrato pintado não era favorável, seja em “Ex-Factor” ou “I Used To Love Him”. 

Além disso, uma das canções, “To Zion”, fala sobre como pessoas à sua volta lhe aconselharam a abortar a gravidez para não interferir na carreira. Se ela quisesse encontrar um lar para esse álbum, seria em outra gravadora. No caso a Columbia.

As gravações começaram no Chung King Studios em Nova York no fim de 1997. O grande hit do álbum, “Doo Wop (That Thing)”, nasceu dessas sessões. Contudo, a entrada e saída constante de pessoas no estúdio motivou Lauryn a mudar de cenário.

Um por todos e todos por um

Rohan Marley aconselhou Lauryn Hill a gravar na Jamaica, onde todos estariam longe da muvuca e de qualquer interferência da gravadora. Seriam também acolhidos pelo clã, contribuindo para a atmosfera familiar que a cantora queria para o disco.

Um dos momentos mais distintos desse período na Jamaica foi a gravação de “Lost Ones”, feita de maneira quase improvisada no primeiro dia. O engenheiro Gordon “Commissioner Gordon” Williams, supervisor técnico do disco, descreveu a cena para o livro “Lauryn Hill: She’s Got That Thing”, de Chris Nickson:

“Era nossa primeira manhã na Jamaica e eu vi todos essas crianças reunidas em torno de Lauryn, gritando e dançando. Lauryn estava na sala adjacende ao estúdio com uns quinze netos de Bob Marley em volta dela, os filhos do Ziggy, Julian e Stephen, e ela começa a rimar, e as crianças repetindo a última palavra de cada verso, fazendo isso espontaneamente porque gostavam tanto da canção.”

Ao longo do disco também foram colocadas interpolações do poeta e político Ras Baraka, convidado por Hill para participar das gravações na forma de uma aula sobre amor dada para crianças na sala da casa da cantora em Nova Jersey.

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As gravações foram finalizadas no Tuff Gong Studios, em junho de 1998. Quando chegou a hora de dar os créditos para todo mundo quem trabalhou no disco, começaram a surgir problemas.

Esse tempo todo, os colaboradores com quem Lauryn estava trabalhando – seja New Ark ou James Poyser, Che Pope – não haviam assinado nenhum tipo de contrato explicitando como seriam creditados ou remunerados. Tudo era feito na paz e amor – que foi para o brejo quando ficou claro como a Columbia queria pintar Lauryn tal qual Prince: alguém que compõe e produz tudo sozinha. E a cantora não corrigiu isso.

“The Miseducation of Lauryn Hill” foi lançado em 25 de agosto de 1998. Vendeu mais de 420 mil cópias nos Estados Unidos em sua primeira semana, quebrando o recorde da Billboard para artistas mulheres. O álbum permaneceu no primeiro lugar por mais três semanas, sendo a primeira estreia de uma cantora a conseguir tal feito.

Também foi o grande campeão da 41ª edição do Grammy, vencendo cinco prêmios, incluindo Álbum do Ano – o primeiro de hip-hop a conseguir tal feito na história. Ao todo, “The Miseducation of Lauryn Hill” vendeu mais de 20 milhões de cópias pelo mundo desde seu lançamento.

Ainda em 1998, os integrantes da New Ark entraram com um processo contra Hill, alegando que ela e sua equipe usaram os serviços de produção e composição do grupo sem lhes creditar adequadamente. Advogados da cantora argumentaram que o trabalho feito pelo quarteto era de músicos contratados e que ela era a compositora e produtora principal do disco, algo apoiado em depoimento por Commissioner Gordon.

O caso eventualmente chegou ao fim em 2001. O grupo recebendo uma indenização de US$ 5 milhões e Vada Nobles foi creditado como produtor em “Lost Ones”.

Lauryn Hill fora dos holofotes

Desde então, Lauryn Hill se mostrou uma figura elusiva, desconfortável com o nível de sucesso adquirido, além da comodificação de sua imagem e música. Ela era cotada para fazer a transição de cantora a atriz, sendo especulada no elenco de blockbusters como “As Panteras”. Entretanto, abandonou a vida pública em 2000 e escolheu viver longe dos holofotes, onde poderia ter sua família com Rohan Marley.

Em entrevista de 2021 à Rolling Stone, comemorando a inclusão de “The Miseducation…” na lista de 500 maiores álbuns da história feita pela revista, Lauryn falou sobre isso:

“A ideia de artista como propriedade pública, eu também sempre tive um problema com isso. Eu concordei em compartilhar minha arte, eu não estou concordando necessariamente em me compartilhar. Pessoas se sentem no direito, como se fossem suas donas, ou donas de um pedaço seu, isso pode ser perigoso demais. Eu detesto qualquer controle assim e resisto expectativas que sugerem que eu simplifique ou seja previsível para deixar pessoas confortáveis ao invés de me expressar de maneira autêntica. Eu também resisto expectativas nada realistas colocadas sobre mim por pessoas que nunca colocariam essas em si próprios. Eu posso ser o quão diplomática e paciente que seja necessário. Eu não posso, todavia, me diminuir através de autodepreciação e diminuição constante.”

O mais perto que o público teve de um sucessor a “The Miseducation of Lauryn Hill” foi uma gravação para o programa “MTV Unplugged” em 2001, durante o qual apresentou canções ainda longe de estarem prontas. A cantora também se mostrou fragilizada pela experiência de tocar ao vivo, chorando em alguns momentos.

Um disco, “Unplugged 2.0”, foi lançado em 2002 para tentar extrair qualquer tipo de dinheiro em cima da situação. Lauryn continua a fazer shows esporadicamente, mas nunca mais lançou outro álbum.

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Pedro Hollanda
Pedro Hollanda
Pedro Hollanda é jornalista formado pelas Faculdades Integradas Hélio Alonso e cursou Direção Cinematográfica na Escola de Cinema Darcy Ribeiro. Apaixonado por música, já editou blogs de resenhas musicais e contribuiu para sites como Rock'n'Beats e Scream & Yell.

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