“72 Seasons” e os demônios de James Hetfield: analisando as letras do novo álbum do Metallica

Após período conturbado, vocalista e guitarrista trouxe algumas das composições mais emocionalmente densas de sua carreira

É 2023 e o heavy metal respira. Além de nomes novos estarem surgindo a todo momento, grandes artistas e grupos como Iron Maiden e Ozzy Osbourne lançaram álbuns recentemente e têm se mostrado produtivos. Em meio a tudo isso, o Metallica também resolveu disponibilizar um novo disco – e sempre que isso acontece, todos nós meio que nos lembramos (ou voltamos a nos dar conta) de que o quarteto ainda é a maior banda de metal do mundo.

72 Seasons” chega sete anos depois do bem-recebido “Hardwired… to Self Destruct” (2016) e a verdade é que muita coisa aconteceu nesse tempo. Não só no mundo, com a pandemia de covid-19, mas também na vida de James Hetfield.

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O cantor e guitarrista, grande cérebro artístico do grupo, consegue ser ao mesmo tempo um típico cidadão americano branco de meia idade e um sujeito pra lá de complexo. Sua vida antes e depois da fama foi marcada por dificuldades e traumas, usados como combustível para suas composições. São muitas as letras do Metallica em que James expõe todos os demônios que o atormentam.

E alguns desses demônios, cabe destacar, estiveram bastante ativos nos sete anos que separam “Hardwired” e “72 Seasons”. Hetfield teve uma recaída no alcoolismo em 2019 e voltou a se submeter a um tratamento de reabilitação, se recuperando no ano seguinte. Em 2022, foi confirmado que ele havia se divorciado da figurinista Francesca Tomasi, sua esposa por 25 anos.

Tudo isso trouxe a depressão à tona, com direito a um momento emocionante durante um show do Metallica em Belo Horizonte. Na ocasião, James se abriu sobre sua saúde mental ainda no palco e recebeu um abraço dos companheiros de banda como resposta.

As 72 estações

Já era esperado, portanto, que o novo álbum do Metallica viria com uma forte carga emocional. O título “72 Seasons” (“72 Estações”) já entrega muito. Cada ano tem quatro estações – primavera, verão, outono e inverno – e as primeiras 72 de uma pessoa correspondem aos seus primeiros 18 anos: infância e adolescência.

O próprio “Papa Het” explicou o conceito do título em um release no site oficial da banda:

“72 estações. Os primeiros 18 anos de nossas vidas que formam nossos ‘eus’ verdadeiros ou falsos. O conceito de que nossos pais nos explicam ‘quem nós somos’. Uma possível categorização sobre qual tipo de personalidade nós temos. Eu acho que a parte mais interessante disso é o estudo contínuo dessas crenças principais e como isso afeta nossa percepção do mundo atualmente. Muito de nossa experiência adulta é uma reencenação ou reação a essas experiências da infância. Prisioneiros da infância ou libertados daquelas amarras que carregamos.”

O disco abre com a faixa-título, que traz muito do que foi teorizado por Hetfield no conceito. “72 Seasons”, a música, fala sobre a “ira do homem” que alimenta o caldeirão de emoções da juventude. Quem já passou dos 18 anos de idade vai se identificar sem muita dificuldade: é uma letra sobre assumir o controle da própria vida agora que a maioridade chegou, mas em meio a um caos que é habitual para quem está na “flor da idade”.

“Ira do homem
Lixiviando, dividida em dois
Ira do homem
Colide em um ponto de vista
Ira do homem
Violência, herança
Ira do homem
Prospera, alimentando-se
Setenta e duas estações passaram

Alimentando-se da ira do homem”

Metallica – “72 Seasons”

A pancadaria segue com “Shadows Follow”, cujos versos mostram claramente alguém tentando fugir dos próprios tormentos. Não importa o que se faça, as “sombras seguem” e não há o que fazer. É uma das letras mais carregadas de sofrimento em todo o álbum, que já tem, de maneira geral, um clima bastante pesado.

“Fervendo, respirando, pesadelos crescem
Eu corro, ainda, minhas sombras seguem

Nunca posso parar porque eles me assombram
Nunca posso parar porque a besta está com fome”

Metallica – “Shadows Follow”

Em “Screaming Suicide”, uma tentativa de reação. Hetfield canta sobre encarar tudo aquilo que o aflige e manter os impulsos negativos sob controle. O mais negativo desses impulsos, o de tirar a própria vida, assume o protagonismo no refrão, mas ainda forma de advertência:

“Escute bem, melhor escutar bem
Nunca fale o meu nome
Lembre-se, a culpa é toda sua
Me mantenha do lado de dentro, me mantenha do lado de dentro
Meu nome é suicídio”

Metallica – “Screaming Suicide”

A terceira faixa, que também foi um dos singles lançados, também é a primeira a trazer um conceito que vai se repetir ao longo de “72 Seasons”. Mesmo imerso em depressão, desânimo e tormentos, alguns versos oferecem uma esperança repentina.

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O disco segue com “Sleepwalk My Life Away”, que segue no tom depressivo e desanimador apresentado até o momento.

Cambaleie através da névoa
No sol da meia-noite
Gritando para as formas
Dos inomináveis ‘ninguéns’
Nem tudo é o que parece
Não consigo compreender
Cativo dentro de um sonho
Onde o amanhecer não vai acabar
Devo cair, eu caio?
Você viria, você viria?

Metallica – “Sleepwalk My Life Away”

Mudando de assunto, mas nem tanto

A essa altura, a audição de “72 Seasons” muda não só em termos de som, mas também liricamente. “You Must Burn!” tem uma letra interessante que usa a metáfora da “caça às bruxas” para falar do diferente, do que foge do padrão, seja ele qual for.

A música traz uma virada interessante na letra, inicialmente perguntando ao ouvinte “qual a próxima bruxa que você deve queimar?”. No próximo refrão, vem a resposta surpreendente: “você é a bruxa, você deve queimar”, mostrando que é muito fácil transitar entre os dois mundos, o do “normal” e o do “diferente”.

“Matando tudo o que aprendemos
A história vai queimar
Queime isto

Sorria enquanto queima no chão
O perfeito não quer você por perto
Questione-se, você pode aprender
Quem é a próxima bruxa que você deve queimar?
Você deve queimar”

Metallica – “You Must Burn!”

“Lux Æterna”, primeiro e principal single do álbum, está posicionada estrategicamente na metade do disco e é a mais “good vibes” da tracklist, embora talvez seja um exagero usar essa expressão em “72 Seasons”. Ela versa sobre a adrenalina que a música e os shows ao vivo trazem e que podem ser usadas como armas contra a depressão e outras questões psicológicas. É impossível não lembrar do já citado episódio de Belo Horizonte ao acompanhar a letra.

“Euforia
Uma sensação frenética
Membros de uma aliança conectada por dentro

Misericórdia
Uma salvação sonora
Expulse os demônios que asfixiam sua vida

É tudo ou nada
É tudo ou nada
Luz eterna!”

Metallica – “Lux Æterna”

“Crown of Barbed Wire” talvez tenha a letra mais genérica de todo o disco, mas não é vazia. Aqui, James Hetfield canta sobre ter o domínio sobre um reino todo reduzido a ferrugem e elementos sem valor, enquanto tem sua cabeça apertada pela “coroa de arame farpado” do título.

Serve como uma óbvia e simples metáfora para as ilusões da fama, que também foram combustível para os problemas do frontman ao longo dos anos – ele, inclusive, se define como um “viciado em fama”.

“Este império enferrujado eu possuo
Sangro enquanto enferrujo neste trono
[…]
Tão apertada, esta coroa de arame farpado”

Metallica – “Crown of Barbed Wire”

Já iniciada com a frase “there’s no light” (“não há luz”), “Chasing Light” traz uma espécie de retorno ao tema da faixa-título, voltando aos traumas da juventude e usando “um menino” como exemplo. Quando a letra diz que o menino “vai quebrar” e que teve “todo o amor que um jovem precisa destruído por pessoas mais velhas que não pensam”, é impossível não fazer um paralelo e até uma ligação com a trilogia “The Unforgiven”, especialmente a primeira canção, lançada no “Black Album” (1991), e que também traz todo um background de traumas da juventude vividos por James Hetfield.

“Oh, perdeu seu caminho pelas ruas perversas
Mas ele é o garotinho de alguém
Oh, todo o amor que um jovem precisa
Anciãos irrefletidos destruíram”

Metallica – “Chasing Light”

Em “If Darkness Had a Son”, tentação é a primeira palavra que aparece e se repete muito ao longo da letra. A música fala sobre a eterna possibilidade de voltar aos antigos vícios, sem se importar com as consequências, como forma de fuga da realidade.

“Tentação
A besta ainda clama pelo que anseia
Ele atiça o fogo, o desejo queima
A vontade insaciável e sem fim
O mau comportamento imperdoável”

Metallica – “If Darkness Had a Son”

Desespero, isolamento e agitação são algumas dessas consequências, enfrentadas em “Too Far Gone?”, onde Hetfield questiona se é tarde demais para se livrar dos velhos hábitos e pensamentos.

E mais uma vez, o Metallica traz uma letra com uma “virada”. O refrão alterna entre o questionamento de “Too Far Gone?” (“Fui longe demais?”) para uma certeza no final: “Never too far gone” (“nunca está longe demais”). A faixa encerra em tom positivo e afirmativo, dizendo que nunca é tarde, que os problemas podem e devem ser enfrentados, mesmo que um dia de cada vez – um dos mantras dos grupos de Alcoólicos Anônimos.

“Rastejando pela minha pele
Doença, cicatrizes retornam
me queimando de novo
[…]
Estou muito longe?
Estou longe demais para salvar?
[…]
Nunca muito longe
Eu estou muito longe para salvar
Eu posso fazer isso durante este dia
[…]
Só por hoje”

Metallica – “Too Far Gone?”

O disco varia entre altos e baixos emocionais, algo que quem já sofreu ou sofre de depressão sabe o quão real é. E são esses altos e baixos que levam James Hetfield a fazer a reflexão de “Room of Mirrors”.

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Nesta música, ele questiona a si próprio e aos outros como isso tudo será visto. No fim das contas, o músico oferece duas opções: ou podemos julgá-lo, tentar analisar, classificar suas dores, ou podemos apenas deixa-lo livre, já que a batalha continua sendo travada dentro de sua própria mente.

“Em uma sala espelhada, sozinho eu estou
Tire a fama fantasma
Expondo todos os lados para ver
O bom e o mau em mim
Em uma sala espelhada, sozinho eu estou
Vendo além da carne e osso
A vergonha e o medo que escondo
Posso mostrar o que tem dentro?

Você criticaria, examinaria, estigmatizaria minha dor?
Você resumiria, apadrinharia, classificaria louco?
Então eu estou aqui antes de você
Você pode julgar, você pode apenas me enterrar
Ou você pode me libertar”

Metallica – “Room of Mirrors”

Casado com a tristeza

“72 Seasons” é um disco de canções longas e encerra com um épico de mais de 11 minutos, irônica e apropriadamente intitulado “Inamorata”. A expressão, em italiano, se refere a alguém do sexo feminino que está apaixonada e nesta música, não se trata de uma mulher, mas sim da “miséria”.

Em português, “miséria” tem uma conotação material, se relacionando com uma pobreza extrema, falta de moradia, alimentos e condições básicas de vida. No entanto, a palavra também pode ser usada como sinônimo de infelicidade, tristeza, sofrimento. Basicamente os “sintomas” de uma depressão, ou de uma dependência química.

“Conforto no inferno eu sei
Ressentimento como um câncer cresce
Anseio pelo dia em que estou livre
Queimar tira você de mim
[…]
Ricochetes dentro da minha cabeça
Conversas nunca ditas
Ampliando cada pensamento
Essa dor familiar que ela comprou
Escoa para dentro eventualmente”

Metallica – “Inamorata”

A faixa começa com Hetfield cantando sobre o ressentimento que sente, já que, por sua condição, não consegue o apoio de outros. A única que o acolhe neste momento é a “miséria” (“tristeza”) em seu aspecto emocional, cantada em um refrão muito forte, no qual o frontman do Metallica reafirma seu “relacionamento” com ela. Porém, ele deixa claro ao final: “não é por ela que eu estou vivendo”.

“Miséria (Tristeza), ela precisa de mim
Oh-oh, mas eu preciso dela mais
Miséria (Tristeza), ela me ama
Oh-oh, mas eu a amo mais
Miséria (Tristeza), ela me mata
Ooh, mas eu acabo com essa guerra
Miséria (Tristeza), ela me preenche
Oh não, mas não é por ela que eu estou vivendo, oh não”

Metallica – “Inamorata”

Em determinado trecho, o vocalista admite, ao mesmo tempo em que conversa com a própria tristeza:

“A miséria (tristeza) ama companhia / desculpe, eu criei você / Eu imagino que também possa terminar com você”

Metallica – “Inamorata”

Sem dúvida uma das letras mais tristes já escritas por Hetfield, em um disco que é feito disso.

Os demônios de James Hetfield – agora livres

No fim da audição, “72 Seasons” impressiona por vários aspectos. Quanto às letras, o conteúdo é bastante depressivo. Mas como dito no início, era esperado que, com tantos acontecimentos pessoais, James Hetfield libertasse alguns de seus demônios nas novas músicas do Metallica. Dito e feito.

Saúde mental é um assunto que está lentamente deixando de ser um tabu na sociedade. Ter pessoas como Hetfield se abrindo sobre seus traumas da juventude e da vida adulta é algo que ajuda muito. Colocando um pouco de pessoalidade na análise, como alguém que sofre com depressão, a audição de “72 Seasons” foi difícil em alguns momentos, mas também libertadora.

Imagino que a sensação seja parecida, até mais intensa, para o próprio James. Como compositor, ele tem uma ótima ferramenta para externar essas emoções. Somos ensinados, enquanto pacientes, que o ato de colocar para fora faz parte do processo de cura.

Sendo assim, todos ganham. Nós temos um ótimo novo disco do Metallica, repleto de sentimento e significado nas letras. E possivelmente, espero, “Papa Het” tem passado dias melhores, mais próximos de sua “Lux Æterna”.

** No Brasil, o Centro de Valorização da Vida (CVV), associação civil sem fins lucrativos, oferece apoio emocional e prevenção do suicídio, gratuitamente, 24 horas por dia. Qualquer pessoa que queira e precise conversar, pode entrar em contato com o CVV, de forma sigilosa, pelo telefone 188, além de e-mail, chat e Skype, disponíveis no site www.cvv.org.br.

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André Luiz Fernandes
André Luiz Fernandes
André Luiz Fernandes é jornalista formado pela Universidade Metodista de São Paulo (UMESP). Interessado em música desde a infância, teve um blog sobre discos de hard rock/metal antes da graduação e é considerado o melhor baixista do prédio onde mora. Tem passagens por Ei Nerd e Estadão.

2 COMENTÁRIOS

  1. Adorei a matéria.
    Longe de ser uma só tipo “caça likes”, fala bastante da necessidade de lidar com sentimentos e saúde mental.
    Parabéns ao autor.

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