Quando o Iron Maiden calou os críticos com “Dance of Death”

Segundo álbum de estúdio desde voltas de Bruce Dickinson e Adrian Smith mostrou que reunião não era apenas um lucrativo plano de aposentadoria

Quando o vocalista Bruce Dickinson e o guitarrista Adrian Smith retornaram para o Iron Maiden em 1999, os críticos, de maneira cínica, sugeriram que se tratava de um lucrativo plano de aposentadoria. Eles não poderiam estar mais equivocados.

Não só o grupo não saiu de cena após o fim da turnê de “Brave New World” (2000) — que incluiu a histórica apresentação no Rock in Rio em 2001 —, como já lançou outros cinco álbuns de estúdio de lá para cá.

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É do primeiro deles, “Dance of Death”, que fala o texto a seguir.

Um substituto à altura

Era outubro de 2002 quando o Iron Maiden — composto pelo baixista Steve Harris, os guitarristas Dave Murray e Janick Gers, o baterista Nicko McBrain e os já citados Bruce Dickinson e Adrian Smith — se reuniu para começar a trabalhar em cima do material do seu 13º álbum de estúdio. Como sempre ocorreu, os integrantes se ocuparam durante meses antes de apresentar suas ideias.

Às etapas de seleção, composição e ensaio do material seguiu-se a gravação no estúdio Sarm West, em Londres, de janeiro a abril de 2003. A produção coube a Kevin Shirley, o mesmo de “Brave New World”.

Um dos maiores trunfos de Shirley no estúdio é justamente seu processo de gravação. Auxiliado pelo programa Pro Tools, o produtor conseguiu estabelecer uma série de cabines de gravação independentes na mesma sala e capturar todos os momentos “ao vivo” da música tocada pela banda. Além de capturar a atmosfera, isso permitiu a Kevin selecionar as melhores tomadas individuais de cada músico.

Ao biógrafo Mick Wall, em “Run to the Hills: A Biografia Autorizada” (Évora, 2014), Harris detalha o papel de Shirley no processo de confecção do álbum. O baixista enfatizou que o produtor passou longe de tentar se tornar um compositor ativo da banda.

“No Kevin, encontramos alguém para substituir Martin Birch [produtor britânico morto em 2020]. Quando Martin se aposentou [depois de produzir o disco ‘Fear of the Dark’ (1992)], ficamos meio perdidos. Mas, com Kevin, finalmente achamos o cara certo. As similaridades entre os dois são impressionantes. Nem um nem outro ficavam tímidos no sentido de apresentar ideias, mas a questão é que, na maior parte do tempo, eles não precisavam fazê-lo. Como somos nós que criamos os arranjos de todas as canções, quando chega o momento de produzir o Iron Maiden, não é ‘produção’ no sentido real da palavra. Queremos alguém que faça o trabalho, que capture nossas ideias na ocasião, quais que elas sejam. Trabalhar com gente assim é revigorante.”

Um álbum de estreias

“Dance of Death” foi um álbum de estreias para o Iron Maiden. Apresenta a primeira canção acústica da banda, bem como sua única música coescrita por Nicko McBrain.

Embora McBrain escreva as partes de bateria para todas as músicas do Iron Maiden, “New Frontier” permanece seu único crédito de composição em um álbum. A letra — uma recontagem da história de Frankenstein, mas do ponto de vista do cientista — expressa suas opiniões sobre clonagem humana. Cristão regenerado, ele afirmou a Mick Wall com convicção:

“Acredito que Deus criou o homem. É um direito exclusivo d’Ele criar um ser humano, porque somente Ele pode nos dar uma alma. Quando um homem tenta criar outro, trata-se de um monstro em um tubo de ensaio. Para mim, uma criatura humana criada geneticamente é incapaz de ter alma.”

Já a canção acústica, “Journeyman”, encerra o álbum de maneira contemplativa e surpreendente. Sobre ela, Bruce Dickinson comenta:

“Foi o Steve que disse: ‘por que não fazemos algo acústico?’. Todo mundo parecia aberto àquele tipo de experimentação, o que foi fantástico. No passado, talvez rolasse uma autocensura inconsciente, do tipo, ‘não podemos tocar isso no Iron Maiden’, sei lá. Mas, seja lá o que fosse, sumiu agora, e estamos abertos a novidades, o que é ótimo.”

Steve Harris complementa:

“Tinha certeza de que acabaríamos usando-a como um lado B em algum momento, mas, no fim das contas, depois de toda a pancadaria a que submetemos o ouvinte em meio à última hora de música, parecia certo tocar algo completamente inesperado e tirar o time de campo.”

Resgatando tradições

Das célebres “Aces High” e “The Trooper” às menos conhecidas “Blood on the World’s Hands” e “Como Estais Amigos”, temas históricos e militares sempre foram recorrentes nas letras do Iron Maiden. Essa tradição é resgatada em “Dance of Death”.

Um dos principais e mais trágicos episódios da Primeira Guerra Mundial, a Batalha de Passchendaele, também conhecida como Terceira Batalha de Ypres, inspirou Adrian Smith a escrever, como ele mesmo diz, “um épico tradicional do Maiden”: “Paschendale”.

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“Lifeless bodies hang on barbed wire / Battlefield nothing but a bloody tomb” (“Corpos pendurados no arame farpado / O campo de batalha nada mais é que um túmulo ensanguentado”), canta Bruce Dickinson, ilustrando a extrema brutalidade e as terríveis condições nas quais as tropas lutaram. Ao vivo, o vocalista — que foi cadete do exército — vestia o tipo de uniforme usado pelos soldados da Infantaria Britânica e fingia a própria morte no palco, como se abatido nas trincheiras.

Já “Montsegur” volta ainda mais no tempo, para o ano 1244. Composta em sua maior parte por Janick Gers e desenvolvida por Steve Harris, ela narra o cerco do Castelo de Montségur, na França, e a tragédia dos cátaros, que ao recusarem se converter ao cristianismo, foram queimados vivos pelas forças do Papa Inocêncio III.

Reza a lenda que os cátaros protegiam os segredos da linhagem de Jesus, e o verso “What secret that they took to their grave” (“Que segredo eles levaram para o túmulo”) provavelmente tem relação com a fuga de quatro deles do cerco, para levar um tesouro — que alguns acreditam ser o Santo Graal — para um local seguro.

Letrista de “Montsegur”, Bruce reconhece:

“Há narrativas incríveis no curso da história da humanidade que traçam paralelos com os dias de hoje, particularmente quando a história se repete com frequência; esses episódios iluminam nossa existência.”

No subtexto do complemento, o vocalista alfineta as bandas de power metal, tão populares naquela época:

“Se for roubar algo para ser a base lírica de uma canção, ao menos roube algum tema que realmente aconteceu, em vez de inventar algum épico de capa e espada porcaria. Sabe como é?”

Atento aos noticiários, Dickinson escreveu “Face in the Sand”, uma crítica à cobertura midiática da Guerra do Iraque, que acontecia em meio às gravações do álbum. O mesmo tom politizado é adotado por Steve Harris em “Age of Innocence”, na qual o baixista questiona os números oficiais da taxa de criminalidade do Reino Unido, supostamente em queda na comparação com o século passado, embora fontes independentes mostrassem justamente o contrário. Ele fumega:

“Como pai, não sinto que meus filhos estejam seguros nos dias de hoje. Não se trata de uma coisa de pai protetor, mas um sentimento de que perdemos qualquer senso natural de justiça, e acredito que muitas pessoas pensam da mesma maneira que eu.”

É de Harris, também, o épico de referência bíblica “No More Lies”. Sobre a faixa que, segundo Mick Wall, remonta à grandiosidade de “Revelations”, o baixista comenta:

“Fala sobre a Santa Ceia como se estivesse acontecendo de novo no presente.”

Singles e a tal dança da morte

Não obstante a força narrativa e todos os demais predicados das supracitadas canções, as escolhas do Iron Maiden para single e videoclipe de “Dance of Death” recaíram sobre seus momentos mais acessíveis e, de certa forma, carentes de conteúdo: “Wildest Dreams” e “Rainmaker”; curiosamente, as faixas 1 e 2 do álbum.

Escrita por Adrian Smith e Steve Harris, a primeira versa a respeito da brevidade da vida e da importância de manter o ânimo para aproveitá-la. O clipe — uma animação em 3D dirigida por Howard Greenhalgh — retrata a banda em um planeta ermo sendo engolida pela mascote, Eddie.

“Rainmaker”, por sua vez, teve origem com um riff de guitarra de Dave Murray que fez Bruce Dickinson pensar em gotas de chuva. Daí o conceito lírico desenvolvido pelo vocalista e aplicado ao clipe, que como o de “Wildest Dreams”, fez sucesso na programação da extinta MTV Brasil.

Surpreendentemente, não é nenhuma dessas a música de “Dance of Death” mais ouvida nas plataformas digitais. Quando da escrita desta matéria, a distinção pertence à faixa-título, com mais de 32 milhões de reproduções somente no Spotify — quase o triplo dos 11 milhões da segunda colocada, “Rainmaker”.

Com oito minutos e 26 segundos, “Dance of Death” tomou forma pelas mãos de Harris após Janick Gers lhe apresentar o conceito inspirado na cena final do filme “O Sétimo Selo” (1957). O guitarrista disserta sobre para o biógrafo Mick Wall:

“O filme mostra um cavaleiro que retorna das Cruzadas em busca de motivos para viver. Quando a Morte finalmente vem para levá-lo, ele questiona o sentido da vida e a fé na humanidade neste mundo de mazelas e guerras. O cavaleiro implora à Morte que o deixe viver até encontrar sua fé e esperança. Propõe, então, uma partida de xadrez com a Morte, apostando sua alma. No final, a Morte carrega o cavaleiro e sua tropa para longe. Em fila, na linha do horizonte, todos começam a fazer uma coreografia, que é a dança da morte. Expliquei tudo para o Steve, ele foi embora e depois voltou com a letra pronta. Quando a leu para mim, senti arrepios.”

Capa vergonhosa, números expressivos

Lançado em 8 de setembro de 2003, “Dance of Death” foi direto para as paradas de todo o mundo, chegando à posição número 1 na Itália, Suécia, Finlândia, Grécia e República Tcheca. Alcançou, também, o 3º lugar no Brasil e um respeitável 18º no concorrido mercado dos Estados Unidos.

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Fãs e críticos o celebraram como um dos melhores trabalhos da banda, apesar de a capa, descrita por Bruce Dickinson como “vergonhosa”, frequentemente constar das listas de piores já feitas. O responsável por ela — que pediu para não ser creditado após a banda ter escolhido utilizar uma versão inacabada da arte — foi David Patchett.

Segundo depoimento do artista — cujo currículo inclui uma série de capas para o Cathedral — para o portal The Iron Maiden Commentary, sua ideia original se resumia ao Eddie vestido de morte cercado por alguns monges, mas o empresário Rod Smallwood achou o layout muito vazio e contratou um designer para projetar personagens ao redor da mascote. Rod então pediu a David para aplicar texturas em cima desses personagens, o que ele fez, embora não tenha gostado nada do resultado.

A versão original da capa de “Dance of Death”

Só um integrante gostou mesmo da capa: Janick Gers. Referindo-se à caracterização de Eddie como a Morte, com a foice em riste e a mão estendida para quem o vê, ele disse:

“Adoro; acho inquietante.”

Com capa tosca ou não, para Steve Harris, “‘Dance of Death’ é um álbum forte e bastante variado”.

“Tem o balanço certo, reunindo coisas pesadas e diretas com outras mais épicas. Tinha esperanças de que surpreendesse as pessoas. E também de que fizesse os palhaços [da crítica] engolirem as próprias palavras depois do que disseram do ‘Brave New World’.”

Para Bruce Dickinson, porém, “o álbum como um todo não era tão bom quanto ‘Brave New World’”. Na autobiografia “Para Que Serve Esse Botão?” (Intrínseca, 2018), ele escreve:

“Era como se tivéssemos sofrido uma pequena ressaca criativa e estivéssemos forçando de leve a barra para superar o trabalho anterior. A única exceção, a meu ver, era ‘Paschendale’. Essa música era de cair o queixo.”

A morte pega a estrada

Em 19 de outubro, na Hungria, teve início a Dance of Death World Tour. Foram 53 shows em quatro continentes, incluindo duas datas no Brasil; as primeiras desde a vinda para o Rock in Rio, em 2001. O Maiden tocou no dia 16 de janeiro de 2004 no Claro Hall (atual Qualistage), no Rio de Janeiro, e na noite seguinte no Estádio do Pacaembu, em São Paulo, com transmissão pela carioca Rádio Cidade em rede com a 89FM, a Rádio Rock da capital paulista. O compromisso derradeiro foi em Saitama, no Japão, em 8 de fevereiro.

No Westfalenhallen em Dortmund, Alemanha, em 24 de novembro de 2003 — mesmo dia do lançamento do segundo single e videoclipe, “Rainmaker” —, a banda gravou seu oitavo álbum e vídeo ao vivo. “Death on the Road” foi lançado em 29 de agosto de 2005 em CD e LP, e em 6 de fevereiro de 2006 em DVD, e todos os formatos tiveram bom desempenho nas paradas de vários países.

Como forma de agradecer aos fãs tanto pelas impressionantes vendas do álbum quanto pelas estimativas de que seu público ultrapassara a casa do milhão de pessoas na recém-encerrada turnê, o Iron Maiden lançou um EP intitulado “No More Lies – Dance of Death Souvenir EP” em março. Além da faixa homônima, o material contém versões alternativas de “Paschendale” (com orquestra), “Journeyman” (com instrumentos elétricos) e “Age of Innocence” (renomeada “Age of Innocence… How Old?”, com Nicko McBrain nos vocais).

Iron Maiden — “Dance of Death”

  • Lançado em 8 de setembro de 2003 pela EMI
  • Produzido por Kevin Shirley

Faixas:

  1. Wildest Dreams
  2. Rainmaker
  3. No More Lies
  4. Montségur
  5. Dance of Death
  6. Gates of Tomorrow
  7. New Frontier
  8. Paschendale
  9. Face in the Sand
  10. Age of Innocence
  11. Journeyman

Músicos:

  • Bruce Dickinson (voz)
  • Steve Harris (baixo, teclados)
  • Dave Murray (guitarra)
  • Janick Gers (guitarra)
  • Adrian Smith (guitarra)
  • Nicko McBrain (bateria)

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Marcelo Vieira
Marcelo Vieirahttp://www.marcelovieiramusic.com.br
Marcelo Vieira é jornalista graduado pelas Faculdades Integradas Hélio Alonso (FACHA), com especialização em Produção Editorial pela Universidade Estadual Paulista (UNESP). Há mais de dez anos atua no mercado editorial como editor de livros e tradutor freelancer. Escreve sobre música desde 2006, com passagens por veículos como Collector's Room, Metal Na Lata e Rock Brigade Magazine, para os quais realizou entrevistas com artistas nacionais e internacionais, cobriu shows e festivais, e resenhou centenas de álbuns, tanto clássicos como lançamentos, do rock e do metal.

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