Por que o Slayer “desacelerou” em “South of Heaven”

Contraponto à rapidez do predecessor “Reign in Blood”, álbum obteve boa colocação nas paradas, mascarando recepção mista por fãs e crítica

Um lago de sangue diante de duas igrejas situadas em um vale escuro. Nele está o ponto principal: uma caveira sem olhos nem dentes, com uma enorme cruz invertida cravada. O sangue escorre pela testa; demônios se divertem nos orifícios dos olhos e do nariz; uma besta em forma de lagarto rasteja no alto da testa. As igrejas apresentam mais cruzes invertidas no topo, e partes de corpos emergem do lago.

Quem bate os olhos na maligna capa de “South of Heaven”, o quarto álbum de estúdio do Slayer, pode pressupor se tratar do puro suco de agressividade. Ou, como a Rolling Stone definiu em sua resenha de uma estrela quando do lançamento em 1988, “um genuíno disparate satânico”.

- Advertisement -

Só que não é bem por aí; pelo menos não do ponto de vista estritamente musical. Entenda o motivo.

Um salto para as grandes ligas

O sucesso de “Hell Awaits” (1985) mostrou ao Slayer que a Metal Blade Records havia se tornado pequena demais para a banda. Voos ainda mais altos poderiam ser alçados se com o respaldo de uma gravadora maior e de uma equipe técnica mais competente.

Quando a Def Jam propôs a Tom Araya (baixo e vocais), Kerry King (guitarra), Jeff Hanneman (guitarra) e Dave Lombardo (bateria) um contrato de gravação, eles não pensaram duas vezes. Embora a especialidade da casa fosse hip hop, um de seus fundadores, Rick Rubin, era produtor de mão cheia e os ajudaria a encontrar a fôrma definitiva em “Reign in Blood”.

Lançado em 7 de outubro de 1986, o terceiro álbum de estúdio do Slayer driblou todos os percalços — de problemas na distribuição para as lojas a rádios se recusando a tocar os singles — e foi o primeiro do grupo a entrar nas paradas e receber disco de ouro nos Estados Unidos. A bem-sucedida turnê mundial Reign in Pain passou pelos EUA e pelo Canadá — com o Overkill — antes de seguir para a Europa, tendo o Malice como banda de abertura.

De volta para a América, Lombardo decidiu que estava fora. Assim disse o baterista à Decibel Magazine em 2006:

“Eu não estava ganhando dinheiro. Pensei que se fôssemos fazer isso profissionalmente, em uma gravadora importante, pelo menos meu aluguel e contas eu deveria conseguir pagar.”

Tony Scaglione, do Whiplash, foi recrutado para a vaga, mas sua estadia durou pouco. Convencido pela esposa, Lombardo reassumiu as baquetas ainda em 1987; bem a tempo da entrada do Slayer em estúdio para gravar seu quarto álbum.

“Não queremos aquele mesmo som o tempo todo”

Graças ao sucesso de “Reign in Blood”, o Slayer teve um orçamento de produção maior para o trabalho seguinte. As sessões de gravação levaram três meses; mais tempo do que qualquer álbum anterior. A expectativa do público era altíssima.

Assim como “Reign in Blood” havia sido um salto musical em relação a “Hell Awaits”, em termos de polidez sonora, “South of Heaven”, também produzido por Rick Rubin, estava acima do seu predecessor. Mas antes fosse só isso de mudança.

Leia também:  A banda pop punk que Kerry King adora, mas discorda do rótulo

Ciente de que não poderia superar “Reign in Blood”, a banda decidiu conscientemente, segundo Jeff Hannemann, diminuir o passo e incorporar sons de guitarra limpos e mais melodia nos vocais:

“Sabíamos que qualquer coisa que fizéssemos seria comparada a esse álbum [‘Reign in Blood’], e lembro que realmente discutimos sobre desacelerar [as músicas]. Foi estranho, nunca fizemos isso em nenhum outro álbum, antes ou desde então.”

Tom Araya, por sua vez, lança mão do direito de reinvenção intrínseco a todo e qualquer artista. Ao biógrafo Joel McIver, autor de “O Reino Sangrento do Slayer” (Estética Torta, 2021), ele diz:

“As pessoas que nos acusam de perder a brutalidade cometem o erro de comparar tudo ao ‘Reign in Blood’. Queríamos gravar um disco rápido, e é isso que o ‘Reign’ é, mas não queremos aquele mesmo som o tempo todo.”

“O inferno na terra e a decadência do ser humano”

Como Kerry King havia acabado de se casar e mudado com a esposa para Phoenix, Arizona, sua participação na seara composicional foi reduzida. Ele coassina três músicas com Jeff Hannemann — responsável pelas outras seis autorais do repertório —, além de três letras com Tom Araya e “Ghosts of War” sozinho. Araya consta como único autor de outras três e Hannemann é creditado pela letra de “Behind the Crooked Cross”.

“Bastard sons begat your cunting daughters / Promiscuous mothers with your incestuous fathers” (“Filhos bastardos procriam com suas filhas vadias / Mães promíscuas com seus incestuosos pais”) diz um trecho da letra da faixa-título de “South of Heaven”, que depois que entrou no repertório ao vivo do Slayer, não saiu mais. A Joel McIver, Araya a define curto e grosso:

“‘South of Heaven’ é como imagino o inferno na terra e a decadência do ser humano.”

Outra que o grupo continuou a tocar até o encerramento das atividades é “Mandatory Suicide”. Lenta e sem variações, a faixa transmite o sofrimento de um soldado condenado a morrer nas trincheiras. O mesmo Araya revela de onde veio a inspiração:

“Em ‘Mandatory Suicide’, fui influenciado por todos os filmes de guerra que estavam passando na época, como ‘Platoon’ e ‘Nascido para Matar’. Realmente consigo imaginar o que aqueles pobres soldados tiveram que suportar no Vietnã, se sacrificando por um monte de sujeira e mentiras. Acho que o Vietnã foi uma mancha na história dos Estados Unidos. Mandar jovens para lá foi puro assassinato. Se você vai à guerra por vontade própria, tudo bem, mas se é forçado a ir, isso é um crime.”

Comentários sociais sobre guerra estão presentes também em “Ghosts of War” (uma continuação de “Chemical Warfare”) e “Behind the Crooked Cross”, que dá continuidade ao tema do Terceiro Reich começado em “The Final Command” (de “Show No Mercy”, 1983) e mantido em “Angel of Death” (de “Reign in Blood”), que detalha os campos de concentração do Holocausto e os experimentos humanos conduzidos pelo médico nazista Josef Mengele.

“Can you hear cries in the night?” (“Você consegue ouvir o choro durante a noite?”), berra o católico Araya, tomando um posicionamento antiaborto na polêmica “Silent Scream”. Já “Read Between the Lines” traz a perspicácia de Kerry King, que, com Araya, mira nos televangelistas: “Could you truly believe that by giving, you can save your soul?” (“Você poderia realmente acreditar que ao pagar o dízimo você salvaria sua alma?”), indaga, sarcasticamente, o vocalista.

Leia também:  As reflexões de Eddie Vedder sobre guerra do Pearl Jam contra a Ticketmaster

“Live Undead” (um dos primeiros registros de Araya adotando um estilo vocal mais melódico), “Cleanse the Soul” (que King odeia; “acho simplesmente horrível”, disse ele a McIver) e “Spill the Blood”, com suas letras sobre zumbis e rituais de sacrifício, respectivamente, soam levemente deslocadas do ponto de vista temático baseado em fatos. Um cover de “Dissident Aggressor”, do Judas Priest, carente do peso que consta da versão original, completa a tracklist.

Sucesso tardio

“South of Heaven” foi lançado em 5 de julho de 1988. Não obstante tanto parte dos fãs quanto parte dos críticos tenha torcido o nariz para as mudanças sonoras, o álbum chegou à posição 57 da Billboard e, em 20 de novembro de 1992, se tornou o segundo álbum do Slayer a receber disco de ouro nos Estados Unidos.

Os números também surpreenderam no Velho Continente: disco de prata no Reino Unido e boas colocações no ranking de outros seis países, com destaque para o 11º lugar obtido na Finlândia.

Se as opiniões foram conflitantes, igualmente são os sentimentos da banda sobre o disco. A Joel McIver, Kerry King abre o verbo:

“Não gostei tanto quanto tinha gostado do ‘Reign in Blood’, porque acho que o Tom retrocedeu muito nos vocais — ou, melhor dizendo, ele ‘cantou’ demais. Sinceramente, é um dos álbuns do Slayer de que menos gosto.”

Tom Araya concordou em parte, mas atribuiu a “South of Heaven” a qualidade de “sucesso tardio”:

“Não foi muito bem recebido no começo, mas acho que conquistou a todos com o passar do tempo. Foi algo que fizemos diferente de propósito. Não era rápido e não teve o mesmo efeito que o ‘Reign in Blood’.”

Um mês após “South of Heaven” chegar às lojas, o Slayer embarcou em mais uma turnê mundial. A World Sacrifice Tour se estendeu até janeiro de 1989 e contou ao todo com 97 datas ao redor do planeta; parte abrindo para o Judas Priest, à época promovendo o não muito bom “Ram It Down”, parte trazendo Motörhead, Nuclear Assault e Overkill a tiracolo.

Slayer — “South of Heaven”

  • Lançado em 5 de julho de 1988 pela Def Jam
  • Produzido por Slayer e Rick Rubin

Faixas:

  1. South of Heaven
  2. Silent Scream
  3. Live Undead
  4. Behind the Crooked Cross
  5. Mandatory Suicide
  6. Ghosts of War
  7. Read Between the Lies
  8. Cleanse the Soul
  9. Dissident Aggressor (Judas Priest cover)
  10. Spill the Blood

Músicos:

  • Tom Araya (voz, baixo)
  • Kerry King (guitarra)
  • Jeff Hanneman (guitarra)
  • Dave Lombardo (bateria)

Clique para seguir IgorMiranda.com.br no: Instagram | Twitter | Facebook | YouTube.

ESCOLHAS DO EDITOR
InícioCuriosidadesPor que o Slayer “desacelerou” em “South of Heaven”
Marcelo Vieira
Marcelo Vieirahttp://www.marcelovieiramusic.com.br
Marcelo Vieira é jornalista graduado pelas Faculdades Integradas Hélio Alonso (FACHA), com especialização em Produção Editorial pela Universidade Estadual Paulista (UNESP). Há mais de dez anos atua no mercado editorial como editor de livros e tradutor freelancer. Escreve sobre música desde 2006, com passagens por veículos como Collector's Room, Metal Na Lata e Rock Brigade Magazine, para os quais realizou entrevistas com artistas nacionais e internacionais, cobriu shows e festivais, e resenhou centenas de álbuns, tanto clássicos como lançamentos, do rock e do metal.

DEIXE UMA RESPOSTA (comentários ofensivos não serão aprovados)

Por favor digite seu comentário!
Por favor, digite seu nome aqui


Últimas notícias

Curiosidades