Como o Pixies “inventou” o Nirvana e revolucionou o alternativo com “Surfer Rosa”

Primeiro álbum full-length da banda americana não obteve tanto sucesso comercial, mas influenciou muito o som dos anos 1990

O Nirvana era inseguro quanto ao seu maior hit, “Smells Like Teen Spirit”. Por incrível que pareça, visto o status da canção na cultura pop, é verdade. A razão é simples: Kurt Cobain e companhia sabiam ter copiado descaradamente o Pixies.

Black Francis, Kim Deal, Joey Santiago e Dave Lovering nunca tiveram o alcance comercial do Nirvana nos Estados Unidos. Porém, a influência deles para o som dos anos 1990 e para o rock alternativo em geral é incalculável.

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Seja em composição, temática, o quarteto de Boston ressignificou tudo sendo construído pelo hardcore e deu uma roupagem pop através de um aspecto até então pouco explorado no rock: dinâmica.

Quietude e barulho. Gritos e sussurros. Alto e baixo.

Sem habilidade

A gênese do Pixies tem a ver com um intercâmbio estranho. Black Francis, nascido Charles Thompson IV, decidiu passar seis meses em Porto Rico enquanto cursava a Universidade de Massachusetts, em Amherst.  Chegando lá, ele se encontrou numa terra onde não sabia exatamente sua identidade – a ilha é um território dos Estados Unidos, mas sem os direitos de um estado, apesar de ter uma população superior à de 19 estados americanos. 

Além disso, Francis tinha um colega de quarto com problemas mentais crente que era amigo de Fred Flintsone. Sua única companhia nesse período era música, especificamente um disco dos Ramones e outro dos Talking Heads.

Quando retornou aos EUA, ele largou os estudos e convenceu um amigo da faculdade, o guitarrista Joey Santiago, a fazer o mesmo para formar uma banda. Duas semanas, os dois colocaram um anúncio na revista Boston Phoenix, que dizia:

“Banda procura baixista que goste de Hüsker Dü e Peter, Paul and Mary. Por favor – sem habilidade.”

A única pessoa a responder o anúncio foi Kim Deal, que nem baixo tocava. Ela pegou o instrumento emprestado de sua irmã gêmea, Kelley. O quarteto depois foi completado pelo baterista Dave Lovering, um amigo do marido de Deal. 

Eles montaram uma base de ensaios no porão da casa dos pais de Lovering e começaram a fazer shows. Em uma dessas apresentações, eles chamaram a atenção do produtor Gary Smith, que ajudou a banda a gravar uma demo, apelidada pelos fãs de “The Purple Tape”.

O material de 17 faixas foi distribuído para pessoas de várias gravadoras, incluindo Ivo Watts-Russell, presidente da 4AD. Relatos da época contavam que ele não havia ficado impressionado com o material, precisando ser convencido por sua namorada.

Entretanto, Watts-Russell contou uma história diferente ao site Long Live Vinyl:

“Eu absolutamente adorei de cara, porque meu primeiro dia foi andar por Nova York com a fita no meu Walkman. Era muito empolgante. Eram coisas óbvias, desde a guitarra do Joey e o aspecto espanhol de tudo.”

Também ao Long Live Vinyl, Black Francis falou sobre a escolha da 4AD: 

“Era um encaixe perfeito. 4AD tinha nada a ver com a música popular mainstream que a MTV havia se tornado.”

A gravadora selecionou oito canções da demo, remasterizou e lançou como “Come On Pilgrim”, EP de estreia do grupo. Apesar do Pixies ser uma banda americana, o trabalho sequer foi lançado no país pelo fato da gravadora não ter encontrado um parceiro de distribuição.

Contudo, o lançamento angariou atenção da imprensa no Reino Unido. O som do Pixies era completamente diferente de tudo no mundo da música. As canções carregavam referências ao período passado por Black Francis em Porto Rico, gírias em espanhol e temas tirados da Bíblia devido ao pentecostalismo de seus pais.

O próximo passo era gravar o disco de estreia novamente com Gary Smith. Contudo, um desentendimento do produtor com o empresário do grupo, Ken Goes, fez a banda precisar de outra pessoa para se encarregar da tarefa.

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Produtor não, engenheiro

O gerente do armazém da 4AD, Colin Wallace, sugeriu Steve Albini. Apesar de fãs da música saberem muito bem quem ele é hoje em dia, o então líder do Big Black ainda não havia estabelecido seu status no estúdio.

Num episódio do podcast Better Yet, Albini conta sobre o processo de ter sido escolhido:

“Eu tenho quase certeza que ele foi encorajado a entrar em contato comigo por Ivo Watts-Russell, da 4AD, que era familiarizado com o Big Black. Eu acho que essa é a história resumida. Eu sei que Ken Goes e o Pixies não conheciam a minha banda ou a mim até então. Eles foram a primeira banda com quem fiz uma sessão que não eram amigos meus anteriormente ou amigos de amigos. Eles foram os primeiros a me contatarem do nada pra fazer uma sessão.”

Albini conheceu o Pixies e no dia seguinte já começaram as gravações no estúdio Q Division, em Boston. Paul Q. Kolderie, engenheiro que participou das sessões demo com a banda, recomendou o lugar, a ponto de criar tensão com Gary Smith, ainda irritado de ter sido preterido.

O trabalho começou com Albini aplicando sua técnica às músicas já compostas. Black Francis e Joey Santiago foram encorajados a usar palhetas de metal como o produtor utilizava no Big Black. Vocais eram passados por pedais de distorção. E cada centímetro do estúdio era vasculhado à procura do local com a acústica perfeita para os vocais.

O então marido de Kim Deal, John Murphy, é citado pelo Long Live Vinyl contando sobre a experiência: 

“Eu lembro deles levando os amplificadores para o banheiro para que pudessem gravar o som enorme de ‘Gigantic’. Albini não gostava do som do estúdio, então eles levaram todos os Marshalls para esse banheiro todo feito de cimento, e é de lá que vem aquele som grande cheio de eco.”

As guitarras de “Surfer Rosa” são algo que merecem destaque por irem contra tudo na música, seja mainstream ou alternativa. Os anos 1980 foram a era de excessos e isso não era o que Joey Santiago queria fazer, como disse ao Long Live Vinyl:

“Eu lembro de gravar ‘Vamos’ e jogar coisas na guitarra, quero dizer que eram bolas de tênis… Eu não queria ter nada a ver com um solo gigantesco, provavelmente por não conseguir aguentar [risos]. Pra mim, guitarra mainstream tinha muita habilidade de datilografia. Eles datilografavam tão rápido quanto dava e eu não conseguia ouvir. A única coisa impressionante sobre aquilo tudo era a velocidade – como conseguem tocar tão rápido? Mas na minha cabeça eu ficava: ‘eu não dou a mínima’. Não era minha praia. Eu sou mais rock clássico. Tem que ter alguns riffs ou coisas que você vai lembrar e que precisam de menos notas.”

O ápice dessa abordagem em “Surfer Rosa” ocorre em “Where Is My Mind?”, onde Santiago desfere uma frase simples de guitarra armado da Les Paul de Kim Deal, enquanto Black Francis canta e toca uma Telecaster.

Sobre essa dinâmica, Santiago explicou à Guitar.com em 2018:

“Uma Les Paul complementa muito bem uma Telecaster. Se você tem uma Fender, precisa botar uma Gibson pra balancear, a não ser que você queira ser um grupo country, aí você vai só de Tele. É Mick Jones e Joe Strummer, e todo aquele som bom…”

Outra ideia de Steve Albini foi o uso de vinhetas com conversas no estúdio improvisadas entre canções, que ele detalhou na entrevista para o podcast Better Yet:

“Eu tinha essa ideia na época que eu não queria espaço negativo no disco. Eu queria que cada canção fluísse seja para uma vinheta, interlúdio ou outra música, criando assim uma experiência contínua de ouvir o disco.”

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Esses momentos revelam desde brincadeiras entre os integrantes até histórias sobre professores pedófilos, reforçando os temas surreais e tabu do disco. Apesar de todos esses experimentos, Albini mostra certo arrependimento na mesma entrevista:

“Nessa época, ainda estava na minha fase de experimentação agressiva. Mas eu acho que estava indo além do meu papel esperado e eu não compreendia isso ainda. Essa perspectiva minha de ser menos envolvido no processo criativo de um disco, eu cheguei a isso depois de queimar os dedos algumas vezes. Eu percebi isso depois de me ferrar em alguns discos e me tocar que era uma obrigação minha não interferir o quanto que meu ego gostaria. E aquele disco do Pixies foi uma ótima lição.”

Discos são apreciados com os olhos também

A 4AD ficou famosa no Reino Unido não só por causa do tipo de artistas promovidos pela gravadora, mas por seguir o exemplo da Factory Records e estabelecer uma identidade visual para todos seus lançamentos.

Assim como o selo de Manchester tinha Peter Saville, a 4AD tinha Vaughan Oliver. E o designer encontrou um assunto em comum com Black Francis na forma da apreciação de ambos por surrealismo e o cinema de David Lynch.

Aos dois, se juntou o também designer Simon Larbalestier, responsável pela imagem de capa para o EP “Come On Pilgrim”. Para “Surfer Rosa”, a equipe visual da 4AD queria criar algo marcante. E nada mais marcante do que nudez.

Os dois montaram um set acima de um pub onde fizeram um ensaio incorporando elementos influenciados por latinidade. Uma dançarina de flamenco com os seios de fora, um crucifixo, pedaços de um violão. O negativo das fotos foi tratado de uma maneira para refletir técnicas usadas por fotógrafos surrealistas como Man Ray.

Oliver depois disse à Another Man Magazine sobre a imagem:

“Simplesmente tinha uma atmosfera. Existe mistério e ambiguidade na imagem, mas também há um contexto emocional. Você não precisa se esforçar pra entender.”

Novamente, ignorados nos EUA

Quando saiu, “Surfer Rosa” chegou à 2ª posição das paradas independentes inglesas. Foi extremamente elogiado pela crítica e eleito o disco do ano pelas revistas Sounds e Melody Maker.

Entretanto, o mesmo tratamento não foi dado pela imprensa americana, com o álbum não aparecendo em uma lista sequer. Mesmo assim, o impacto maior de “Surfer Rosa” nos Estados Unidos viria na forma das bandas influenciadas pelo trabalho do Pixies.

No livro “Come As You Are: The Story of Nirvana”, escrito por Michael Azerrad, Kurt Cobain é citado dizendo sobre o disco:

“Eu ouvi músicas em ‘Surfer Rosa’ que eu havia composto, mas jogado fora por ter medo demais de tocá-las para outras pessoas.”

O Pixies seguiu em frente, com seu disco seguinte, “Doolittle”, atingindo o top 10 britânico. Contudo, brigas internas impediram a banda de atingir o sucesso merecido. Só depois dos anos 2000 um retorno os viu receber o afeto adequado de gerações influenciadas por aquelas canções.

Pixies – “Surfer Rosa”

  • Lançado em 21 de março de 1988 pela 4AD
  • Produzido por Steve Albini

Faixas:

  1. Bone Machine
  2. Break My Body
  3. Something Against You
  4. Broken Face
  5. Gigantic
  6. River Euphrates
  7. Where Is My Mind?
  8. Cactus
  9. Tony’s Theme
  10. Oh My Golly!
  11. Vamos
  12. I’m Amazed
  13. Brick Is Red

Músicos:

  • Black Francis (voz, guitarra, violão)
  • Kim Deal (baixo, vocal na faixa 5)
  • Joey Santiago (guitarra)
  • David Lovering (bateria)

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Pedro Hollanda
Pedro Hollanda
Pedro Hollanda é jornalista formado pelas Faculdades Integradas Hélio Alonso e cursou Direção Cinematográfica na Escola de Cinema Darcy Ribeiro. Apaixonado por música, já editou blogs de resenhas musicais e contribuiu para sites como Rock'n'Beats e Scream & Yell.

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