Quando o comunismo de fachada liquidou o New York Dolls

Controvérsia marcou os shows derradeiros da formação clássica da banda nos anos 1970

Os Estados Unidos pensavam que eles eram travestis viciados em que não sabiam tocar seus instrumentos. Seus fãs, entretanto, os achavam a maior banda de rock and roll do mundo. A gravadora não sabia defini-los, muito menos vendê-los. Em sua breve porém vertiginosa existência nos anos 1970, o New York Dolls confundiu todo mundo.

Mas ao exibir o martelo e a foice, com a Guerra do Vietnã em pleno curso, eles foram longe demais.

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“A melhor e a pior época ao mesmo tempo”

Por mais talentosos que fossem, os New York Dolls eram uma fonte constante de aborrecimento para a Mercury Records. Farta de tantos excessos e de uma libertinagem que não convertia em vendas expressivas, a gravadora sairia de cena entre o fim de 1974 e 1975.

Sem mais apartamentos duplex e passeios de limusine para David Johansen (vocais), Johnny Thunders (guitarra), Sylvain Sylvain (guitarra), Arthur “Killer” Kane (baixo) e Jerry Nolan (bateria). De acordo com Sylvain, o revés até que teve um lado bom:

“[Quando a Mercury rescindiu o contrato] Voltamos a morar juntos em um loft no Village [bairro de Nova York] (…) Foi a melhor e a pior época ao mesmo tempo (…) Foi como nos velhos tempos (…) Nos reaproximamos. Às três da manhã, se eu tivesse uma ideia para uma música, poderia acordar o Johnny e dizer ‘ei, escuta aqui’.”

“Ele era nosso alfaiate”

Ao testemunhar os New York Dolls agonizando, o estilista radicado em Londres e empresário posteriormente conhecido por gerenciar o Sex Pistols, Malcolm McLaren, veio ao resgate. Eles o conheciam da Sex, sua loja de roupas na capital britânica.

McLaren queria entrar no mundo da música e os Dolls foram seu ingresso. Embora se apresentasse como empresário da banda, nenhum contrato jamais foi firmado entre as partes. Enquanto Sylvain abranda, o reconhecendo como “um amigo que começou a tomar conta de um pouco dos negócios”, Johansen é incisivo:

“Sei que ele diz que era nosso empresário, mas ele era nosso alfaiate.”

McLaren começou a ajudar os Dolls a montar um plano de jogo, que consistia em fazer três shows-teste no Little Hippodrome, em Nova York, com novas bandas locais como o Television abrindo. Em seguida, a turnê desceria para a Flórida, estado onde eles tinham muitos fãs. Sylvain recorda esses dias:

“Ainda consigo ver Malcolm andando de um lado para o outro em seu apartamento em Nova York com nada além de um mapa gigantesco dos Estados Unidos na parede e um telefone. Ele colocava alfinetes nas cidades em que íamos tocar… e alfinetes nas cidades que ele se recusava a nos deixar tocar.”

Compromissos agendados, os Dolls compuseram músicas novas — a maioria delas colaboração de Johansen/Sylvain — e elaboraram um novo visual para acompanhar: eles usariam vermelho da cabeça aos pés nos shows no Little Hippodrome. Ao contrário do que McLaren ventila, a ideia não partiu dele. Segundo Johansen:

“Como ‘Red Patent Leather’ era uma boa música, pensamos em usá-la como nosso teatrinho, sabe? Pensamos: ‘ei, vamos nos vestir de couro vermelho’. Não foi ideia do Malcolm, foi nossa.”

“Na América, você não pode ser comunista”

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“Esse show está em coordenação com a ‘aliança cordial’ muito especial dos Dolls com a República Popular da China”, dizia, em tom de piada, o comunicado à imprensa enviado por Malcolm McLaren às vésperas do início da turnê. Na noite de estreia, todas as mesas do Little Hippodrome estavam cobertas de tecido vermelho e todos os drinques vendidos na casa enquanto os Dolls estivessem no palco receberam uma dose de corante vermelho.

Além disso, eles acharam que seria uma boa ideia pendurar uma enorme bandeira comunista como pano de fundo no palco. Não foi. Mais de 56 mil soldados americanos haviam morrido no Vietnã tentando “impedir a dominação comunista”. Feroz defensora da banda, a jornalista novaiorquina Lisa Robinson foi cirúrgica:

“Na América você pode ser um viciado, pode ser gay, pode ser um travesti; mas, de todos os tabus, você não pode ser comunista.”

Pra piorar, o repertório apresentado pelos Dolls não empolgou. Das músicas consagradas, apenas quatro foram tocadas: “Personality Crisis”, “Looking for a Kiss”, “Stranded in the Jungle” e o cover de “Pills”, de Bo Diddley. O restante do tempo era preenchido por autorais inéditas em disco e mais covers, como “Daddy Rolling Stone” (Otis Blackwell), “Something Else” (Eddie Cochran) e “Ain’t Got No Home” (Clarence “Frogman” Henry).

Em resenha publicada à época no Village Voice, Paul Nelson escreveu:

“Foi um desastre. Todos esperavam que eles tocassem algo que conhecessem. As músicas [novas] não eram tão boas.”

“Bons pra c#ralho”

No meio da turnê pela Flórida, Johnny Thunders e Jerry Nolan começaram a se coçar para voltar a Nova York. Um dia, eles simplesmente ligaram o f#da-se e quase chegaram às vias de fato com Malcolm.

Já em Nova York, a dupla deu o pontapé inicial no The Heartbreakers. A despedida deixou uma marca permanente em Sylvain, que relembra:

“Eu os levei ao aeroporto de Tampa. Enquanto Jerry e Johnny se afastavam, a realidade da situação me atingiu. Johnny sequer se virou para se despedir mim. Eu estava com o coração partido. Gritei para o Jerry: ‘Jerry, e os New York Dolls?’. Ele se virou e disse: ‘Eles foram bons, cara… bons pra c#ralho.’ Nunca vou esquecer isso. Nunca.”

Sylvain recuperaria gravações do show final do New York Dolls na cidade de Nova York, em 2 de maio de 1975, e as lançaria como “Red Patent Leather” na Europa, em vinil, em 1984. Uma versão em CD com quatro faixas bônus seguiria em 1990.

Seis das músicas inéditas tocadas ao vivo naquela turnê estariam no terceiro LP do Dolls que nunca foi feito. “Girls, Girls, Girls” acabou no primeiro álbum solo de David Johansen, “Pirate Love” saiu no álbum de estreia de Johnny Thunders e “Teenage News” no primeiro álbum solo de Sylvain Sylvain.

Houve tentativas de se seguir com o Dolls em formações alternativas que chegaram a contar até mesmo com Blackie Lawless (W.A.S.P.) na guitarra. Não vingou: o grupo encerrou atividades em 1976. Os trabalhos foram retomados entre 2004 e 2011, mas com a morte de Thunders em 1991, o quinteto original nunca mais se reuniu.

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Marcelo Vieira
Marcelo Vieirahttp://www.marcelovieiramusic.com.br
Marcelo Vieira é jornalista graduado pelas Faculdades Integradas Hélio Alonso (FACHA), com especialização em Produção Editorial pela Universidade Estadual Paulista (UNESP). Há mais de dez anos atua no mercado editorial como editor de livros e tradutor freelancer. Escreve sobre música desde 2006, com passagens por veículos como Collector's Room, Metal Na Lata e Rock Brigade Magazine, para os quais realizou entrevistas com artistas nacionais e internacionais, cobriu shows e festivais, e resenhou centenas de álbuns, tanto clássicos como lançamentos, do rock e do metal.

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