Como o New Order se estabeleceu como pioneiro do dance rock em “Power, Corruption & Lies”

Ex-integrantes do Joy Division deixaram fama depressiva da antiga banda para trás e abraçaram a pista de dança

Imagine ser uma banda à beira do sucesso. Um grupo responsável por moldar uma sonoridade completamente nova, tão influente a ponto de ser citado décadas depois como vitais para a história não apenas do rock, mas da música ocidental.

E aí o seu vocalista comete suicídio.

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A decisão tomada por Bernard Sumner, Peter Hook e Stephen Morris de continuar após a morte de Ian Curtis foi corajosa. Felizmente para eles, rendeu uma das carreiras mais bem-sucedidas do rock inglês.

Exploremos como o Joy Division se tornou o New Order.

Folha em branco

Ian Curtis morreu no dia 18 de maio de 1980. Em 29 de julho, os três integrantes sobreviventes do então promissor Joy Division se apresentaram em Manchester, sem usar o nome da banda. 

Ao mesmo tempo que decidiram continuar após a morte do vocalista, respeitaram uma decisão tomada pelo quarteto enquanto Curtis ele ainda vivo, de deixarem de usar o nome Joy Division caso qualquer um deles deixasse o grupo.

O nome New Order foi escolhido por Rob Gretton, empresário do grupo, a partir de uma reportagem do The Guardian sobre o Camboja intitulada “The People’s New Order of Kampuchea”. 

Entretanto, essa alcunha esbarrava em outra herança infeliz do passado. Desde o primeiro lançamento, o grupo era acusado de fazer alusões a nazismo. Segundo o livro “A Casa das Bonecas”, de Yehiel De-Nur, Joy Division era o local em campos de concentração onde mulheres judias ficaram mantidas para exploração sexual.

O primeiro single da banda também fazia uso de imagens de propaganda nazista, o que acabou atraindo um contingente neonazista aos shows. Os integrantes do Joy Division frequentemente se manifestaram contra fascismo, mas a escolha de New Order, outro termo associado ao Terceiro Reich, garantiu uma continuação da polêmica.

Durante ensaios iniciais, todos os integrantes tentaram a sorte nos vocais. No final, Sumner foi escolhido pelo simples motivo de ser o único capaz de tocar e cantar ao mesmo tempo. A formação foi completa com Gillian Gilbert, namorada de Stephen Morris, tocando teclados e guitarra.

Nos primeiros shows do New Order, eles já estavam tocando canções novas, deixando o legado do Joy Division em grande parte para trás. Duas exceções foram “In a Lonely Place”, que o grupo havia feito uma demo em estúdio enquanto Ian Curtis estava vivo, e o single de estreia da nova banda, presença constante nos últimos sets do grupo, “Ceremony”.

Numa entrevista para o site VW Music, Peter Hook falou sobre “Ceremony”:

“Depois que Ian morreu, nós estávamos desesperados tentando descobrir como que essa unidade ia funcionar e se ia funcionar. Mas a música de ‘Ceremony’ foi escrita por Stephen, e ele até juntou os vocais e o refrão, talvez com um pouco de encorajamento e ajuda vindos do resto de nós. Foi mais ou menos gravada exatamente que nem era tocada pelo Joy Division. Tentamos colocar Gillian Gilbert nela. acho que pra justificar a entrada nela na banda, mas pra ser honesto, a versão do New Order soa mais ou menos a mesma da original do Joy Division. Então, ‘Ceremony’ é, por natureza, uma canção do Joy Division tocada pelo Joy Division sem o Ian, então a gente precisou mudar os vocais.”

“Ceremony” saiu em janeiro de 1981, chegando ao topo das paradas independentes do Reino Unido. O primeiro disco do New Order, “Movement”, saiu em novembro daquele ano para críticas mornas, devido ao peso do legado do Joy Division.

Por mais que estivessem apontando para um caminho além da antiga banda, os integrantes do New Order ainda soavam semelhantes o suficiente para a imprensa inglesa os caracterizarem como derivativos. 

O fato do disco ter sido produzido por Martin Hannett, responsável por criar a atmosfera opressora dos álbuns do Joy Division, também não ajudou. Banda e produtor estavam em pé de guerra, e o resultado é visto como aquém do possível até recentemente, como Peter Hook falou ao NME:

“Por mais que eu goste de ‘Movement’ musicalmente, o processo todo foi horrível. Metade das coisas eram sobras do Joy Division, e a outra metade era a gente desesperadamente tentando aprender como ter a metade do talento de Ian Curtis. Foi um processo tenso, pra dizer o mínimo.”

A saída encontrada pelo New Order para se desvencilhar da sonoridade do seu passado foi se apoiar em música eletrônica. O grupo visitou Nova York em 1981, e se mergulharam nos movimentos surgindo na cidade, seja disco-punk, electro ou a cena hip-hop. 

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Após anos sendo vistos como a banda mais soturna do planeta, eles estavam se divertindo. E aprendendo a programar baterias eletrônicas.

Os singles “Everything’s Gone Green” e “Temptation”, lançados após “Movement”, faziam uso de sequenciadores junto com a bateria de Morris, criando uma cama ritmíca onde o baixo de Hook criava melodias.

Segundo Morris ao NME, a reação do público a esses lançamentos os assegurou de que era o caminho a seguir:

“O momento mesmo foi quando fãs do Joy Division não gostaram do que estávamos fazendo, como em ‘Everything’s Gone Green’ e ‘Temptation’, que a gente soube termos acertado.”

Brincadeira que deu sucesso e prejuízo

O New Order agora queria distância de qualquer interferência de produtores. Eles se mudaram para Londres e se puseram a adquirir qualquer equipamento possível, explorando todas as possibilidades.

Em maio de 1982, a Factory Records – gravadora do New Order – inaugurou em Manchester a lendária boate The Haçienda. A abertura foi comemorada pelo grupo com uma faixa instrumental de 23 minutos composta por Bernard Sumner e Stephen Morris chamada “Prime 5 8 6”.

A faixa, lançada 15 anos depois sob o nome “Video 5 8 6”, serve hoje como uma pedra de Roseta do que compreendemos como o New Order dali em diante. Não só continha elementos da canção “5 8 6”, lançada no disco “Power, Corruption & Lies”, mas também apresenta pedaços de “Ultraviolence”, presente no mesmo álbum, e do single responsável por lhes marcar na história do rock.

No livro “Manchester, England: The Story of the Pop Cult City”, Dave Haslam escreve que Sumner lhe explicou as quatro maiores influências por trás de “Blue Monday”:

“O arranjo veio de ‘Dirty Talk’, de Klein & MBO, a batida veio de uma faixa de um LP da Donna Summer, tinha um sample de ‘Radioactivity’ do Kraftwerk, e a influência geral no estilo da canção foi ‘(You make me feel) Mighty Real’, do Sylvester.”

A banda usou vários equipamentos hoje em dia considerados lendários em “Blue Monday”. Uma bateria eletrôncia Oberheim DBX providenciou o ritmo, enquanto o sampler Emulator 1, que Sumner e Morris aprenderam a usar gravando os próprios peidos, foi usado para roubar o coral da faixa “Uranium”, do Kraftwerk. 

A linha de baixo, criada num sintetizador Moog e passada por um sequenciador, contém um erro, segundo Gillian Gilbert ao site Far Out Magazine:

“A melodia do sintetizador é um pouco fora de sincronia com o ritmo. Isso foi um acidente. Era meu trabalho programar a canção inteira, do começo ao fim, e isso precisava ser feito manualmente colocando cada nota na máquina. Eu tinha a sequência toda escrita em várias folhas de papel A4 grudadas juntas com durex, do comprimento do estúdio, como uma colcha de retalhos. mas eu acidentalmente deixei uma nota de fora, que mexeu com a melodia.”

“Blue Monday” saiu em 7 de março de 1983 no Reino Unido. A arte do single, criada por Peter Saville, fazia o vinil de 12” parecer um disquete, com buracos na capa externa revelando um interior prateado. Normalmente, tais tratamentos eram reservados apenas a LPs, tamanho seu custo, mas Tony Wilson decidiu que era mais importante fazer uma declaração artística, mesmo perdendo 5 centavos de libra por cada cópia vendida.

O single acabou se tornando o 12” mais vendido da história do Reino Unido, atingindo o top 10 britânico e o Top 5 da Billboard Hot Dance Club Play.

O sucesso deu ao grupo a oportunidade de tocar no “Top of the Pops”, onde fizeram questão de apresentar “Blue Monday” ao vivo e recusar playback. A performance foi um desastre, com os sequenciadores fora de sincronia com tudo e a mixagem de som do programa dando a tudo um som estranho.

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Falando à Mojo Magazine (via Trash Theory) em 2008, Peter Hook falou sobre a performance:

“A gente achou engraçado. Era anarquia. Dito isso, um dos destaques da minha vida foi aparecer no ‘Top of the Pops’. Foi a única vez que pessoas como minha mãe ou parentes, pessoas que tinham nada a ver com a gente, disseram que a gente havia chegado lá.”

Além disso, a aparição na TV serviu para mostrar ao Reino Unido e o mundo que o New Order havia deixado qualquer vestígio do Joy Division para trás. Uma parte importante para isso foi Bernard Sumner se encontrando como letrista e vocalista, adotando uma voz mais humana e despretensiosa comparada à de Ian Curtis.

Numa entrevista ao NME, Stephen Morris fala sobre o companheiro:

“Foi a primeira vez que Bernard escreveu todas as letras e se encontrou como cantor. Em ‘Movement’, todos nós fizemos das tripas coração tentando escrever letras profundas juntos, e falhamos miseravelmente. Em ‘Power, Corruption & Lies”… Bernard encontrou um jeito de cantar e um estilo que combinava com ele. Quem mais colocaria ‘You caught me at a bad time / So why don’t you piss off’ [Você me pegou numa hora ruim/Então porque não vai à merda] no final de uma canção como ‘Your Silent Face’? Dá perceber que não somos muito sérios.”

Arte pertence ao povo

Como todo lançamento da Factory, a arte de “Power, Corruption & Lies” ficou a cargo de Peter Saville, responsável pelas lendárias capas do Joy Division. Inicialmente interessado em colocar a imagem de uma pintura renascentista sombria para ilustrar os temas do disco, o designer foi convencido por acaso pela namorada a usar a pintura “A Basket of Roses” do francês Henri Fantin-Latour após uma visita à National Gallery em Londres.

Numa entrevista ao Guardian, Saville explicou seu raciocínio por trás da escolha:

“Flores sugerem os meios pelos quais poder, corrupção e mentiras inflitram nossas vidas. São sedutoras.”

Saville continuou, contando sobre o processo de conseguir a autorização de uso:

“Tony Wilson teve que telefonar para o diretor da galeria para conseguir permissão de usar a imagem. Durante a conversa, ele falou, ‘Senhor, a quem essa pintura pertence?’ Ao que a resposta foi, ‘Pertence ao povo da Grã-Bretanha’ A resposta de Tony foi, ‘Eu creio que o povo a quer’. E o diretor disse, ‘Se você coloca desse jeito, Sr. Wilson, estou certo que podemos fazer uma exceção nesse caso’.”

“Power, Corruption & Lies” saiu dia 2 de maio de 1983, atingindo o topo da parada independente e o quarto lugar geral de vendas no Reino Unido. Além disso, marcou o início real de uma das carreiras mais bem-sucedidas e influentes na música britânica. O New Order lançando mais oito álbuns de sucesso e no meio tempo até compondo “World in Motion”, hino oficial da seleção inglesa na Copa do Mundo de 1990.

A capa de “Power, Corruption & Lies” é considerada uma das mais importantes da história do rock, sendo imortalizada como selo postal no Reino Unido em 2010. A imagem da pintura de Latour ainda foi utilizada de maneira proeminente por grifes como Raf Simons e Supreme em coleções.

Entretanto, o maior legado do álbum foi criar um casamento entre rock e eletrônica há muito tentado por diversos artistas, sem sucesso. Peter Hook resumiu o impacto de “Power, Corruption & Lies” ao NME:

“Aquele casamento de rock e sequenciadores, instrumentos acústicos e eletrônicos – isso é 90% da música ouvida no rádio hoje, de rap a dance e qualquer tipo de música que você queira citar. Muitas das bandas que não soam como Joy Division soam como New Order.”

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Pedro Hollanda
Pedro Hollanda
Pedro Hollanda é jornalista formado pelas Faculdades Integradas Hélio Alonso e cursou Direção Cinematográfica na Escola de Cinema Darcy Ribeiro. Apaixonado por música, já editou blogs de resenhas musicais e contribuiu para sites como Rock'n'Beats e Scream & Yell.

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