Inferno na terra: a história de “Odyssey”, de Yngwie Malmsteen

Único álbum de estúdio com Joe Lynn Turner nos vocais veio na sequência de duas experiências traumáticas para o guitarrista sueco; extensa turnê incluiu datas e disco ao vivo gravado na antiga União Soviética

“Este foi o início de um período muito sombrio na minha vida”, escreve Yngwie Malmsteen no capítulo da autobiografia “Relentless” (Wiley, 2013) dedicado a “Odyssey”, seu quarto álbum de estúdio.

Por mais que os anos anteriores tenham sido de pura selvageria e falta de controle — chegada a Los Angeles, álbuns e turnês com Steeler, Alcatrazz e, finalmente, solo —, não chegavam aos pés do que estava por vir.

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“Que fim levou Joe Lynn Turner?”

No começo de 1987, enquanto trabalhava sozinho em muitas músicas que acabariam em “Odyssey”, Malmsteen decidiu que queria um vocalista diferente em seu quarto trabalho de estúdio. Embora ele e Jeff Scott Soto, que gravou “Rising Force” (1984) e “Marching Out” (1985) e fez a turnê de “Trilogy” (1986), ainda fossem bons amigos, o guitarrista estava decidido a não usá-lo novamente.

Na mesma época, ele se perguntou que fim teria levado Joe Lynn Turner, uma vez que o Rainbow, banda na qual cantava, havia se desmantelado. Dessa forma, resolveu entrar em contato.

Depois de “Bent Out of Shape” (1983), seu derradeiro álbum no Rainbow, Turner se lançou solo, com “Rescue You” (1985), e fez um sucesso apenas moderado graças à balada “Endlessly”. Juntar-se aos irmãos Anders (bateria) e Jens Johansson (teclados) na banda de Malmsteen, à época afiliado a uma grande gravadora — a Polydor, curiosamente, antigo lar do Rainbow —, lhe pareceu a melhor das opções para seguir em evidência.

Logo de saída, Malmsteen percebeu que Turner era adepto das noitadas e de tudo de ilícito que elas poderiam oferecer. Ele conta:

“Eu nunca tinha conhecido alguém capaz de encher a cara tanto como ele.”

Por mais pé-de-cana que Joe fosse, era temente ao “se dirigir, não beba”; ao contrário de seu mais novo patrão.

“Parecia o fim do mundo, o apocalipse”

Em 22 de junho de 1987, cerca de uma semana antes de completar 24 anos, Malmsteen passou o dia bebendo com os amigos e fazendo coisas idiotas de bêbado, como subir no telhado e pular na piscina. A certa altura, ele decidiu que precisava ir comprar mais cerveja, então entrou em seu Jaguar E-Type V12 conversível. Mas a poucos metros de casa, o carro subiu o meio-fio e bateu de frente em uma árvore.

Como não estava com o cinto de segurança, Malmsteen bateu com a cabeça no volante com tanta força que quebrou o volante ao meio. Ele foi levado de helicóptero para um hospital, onde ficou em coma por quase uma semana, chegando a ser considerado clinicamente morto por um minuto. Em “Relentless”, ele afirma não se lembrar de nada disso; mas confia naquilo que testemunhas e os médicos lhe disseram:

“Lembro-me vagamente de sair de casa, e é isso. Eu simplesmente não conseguia acreditar no que todos me contavam sobre o acidente, porque não conseguia me lembrar de nada. Não sei a que velocidade o carro estava quando bateu na árvore, mas bateu nela a toda velocidade. O que é realmente um milagre é que o impacto não tenha quebrado meu pescoço ou me deixado tetraplégico. Os médicos disseram que eu tive uma forte concussão com sangramento dentro do cérebro, então era difícil dizer se eu acordaria e, caso acordasse, se ficaria em estado vegetativo ou se conseguiria me recuperar. Não foi nada bom. Foi o mais próximo da morte que já estive.”

Como não há nada tão ruim que não possa ficar pior, três meses após o acidente quase fatal, um terremoto sacudiu a região onde Malmsteen vivia, no sul da Califórnia. O tremor, que ficou conhecido como terremoto Whittier Narrows, ocorreu às 7h42 do dia 1º de outubro de 1987 e atingiu 6,9 graus na escala Richter. Desse episódio ele se lembra com nitidez:

“Fui acordado com um barulho penetrante no ouvido. Então percebi que o chão estava levantando debaixo de mim. Foi o momento mais assustador da minha vida, parecia o fim do mundo. Tentei me levantar, mas o quarto todo estava balançando, e eu meio que caí enquanto tentava sair antes que a casa inteira desabasse em cima de mim. Li que o terremoto durou apenas alguns minutos, mas pareceu durar uma eternidade. A rua subia e descia cerca de dois metros e meio. Carros foram jogados para o alto conforme o chão ondulava, como num desenho animado horripilante. Achei que era o fim. Realmente parecia o apocalipse.”

Tudo isso, além do tinha acabado de passar com o acidente, foi realmente a gota d’água para Malmsteen, que reavaliou seus atos a partir de então:

“O recado me foi dado alto e bom som: ‘Você está se transformando em algo que não é. Você deveria parar — não agora, não amanhã, mas pra ontem!’ Eu havia retomado o trabalho no ‘Odyssey’ assim que comecei a recuperar os movimentos das mãos. Da mesma forma, havia retomado os velhos hábitos de encher a cara o tempo todo. Eu não tinha aprendido nada — até o terremoto acontecer. Isso meio que me fez fazer um balanço de onde eu realmente estava.”

Além da mudança de comportamento, os infortúnios de 1987 ocasionaram uma curiosa mudança física em Malmsteen.

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“Após meu acidente, meu cabelo liso ficou permanentemente ondulado. Não tenho explicação para isso, mas é um fato; não faço meus cachos de propósito há mais de vinte anos.”

“Joe nunca compôs para mim ou comigo”

Consta do encarte de “Odyssey” o seguinte crédito: “Todas as letras por Joe Lynn Turner”.

Em entrevista a IgorMiranda.com.br, Turner afirmou que o grosso das músicas de “Odyssey” resultou de parceria. O cantor relatou ter sido abordado pela Polydor com intuito de dar um toque mais acessível às composições:

“A gravadora veio até mim e perguntou: ‘Você poderia fazer o que fez com o Rainbow? Yngwie é um guitarrista brilhante, mas não consegue entrar nas paradas. Componham algumas músicas mais comerciais’. Foi o que fiz quando compus ‘Heaven Tonight’, que foi um sucesso nas paradas. Ainda assim, mantivemos a integridade do lado do metal, com ‘Riot in the Dungeons’, ‘Deja Vu’, ‘Crystal Ball’… E ‘Dreaming (Tell Me)’ é uma bela balada.”

Em recente postagem nas redes sociais, ele também destacou ter sido o único letrista do disco. E citou uma canção em especial:

“‘Deja Vu’ é muito especial para mim porque a letra fala sobre reencarnação, tema recorrente em toda a minha vida, seja em ‘Street of Dreams’ (Rainbow) ou em várias outras músicas do meu catálogo.”

Segundo Malmsteen, não foi bem assim. Em sua autobiografia, ele alega que cerca de 95% ou mais do repertório já estava pronto quando Joe se juntou à banda:

“O riff de ‘Rising Force’ foi composto quando eu tinha 15 anos. ‘Riot in the Dungeons’ foi composta e gravada [em demo] quando eu tinha 17. Joe nunca compôs para mim ou comigo, como vem dizendo por aí ao longo dos anos. Todas as músicas tinham riffs que escrevi antes de Joe ser contratado, então ele não pode levar o crédito por elas. Ele acrescentou versos a ‘Dreaming’, ‘Now Is the Time’ e ‘Heaven Tonight’, mas eram minhas melodias. O que ele fez foi dar uma lapidada no que já estava escrito — e dou-lhe crédito total por isso, mas só isso.”

Atendo-nos aos fatos que possam ser comprovados, as baterias de “Odyssey” foram gravadas no Cherokee, em Los Angeles, e o restante do trabalho foi feito no pequeno Studio D., em Austin, Texas. O engenheiro de som Jeff Glixman — recém-saído das sessões de “The Eternal Idol” (1987), do Black Sabbath — coassina a produção com Malmsteen. A mixagem coube ao duo Steve Thompson e Michael Barbiero, um dos mais requisitados dos anos 1980.

“Não havia lugar como a antiga União Soviética”

“Odyssey” chegou às lojas no dia 8 de abril de 1988. Dois dias mais tarde, teria início a turnê de 109 datas que manteria Yngwie Malmsteen na estrada até o ano seguinte. Embora quase metade dos compromissos tenha sido na América do Norte, o giro de levou Malmsteen de volta à Europa, ao Japão e, pela primeira vez, à extinta União Soviética.

Curiosa e aparentemente, no auge da Guerra Fria, a Polygram havia negociado os direitos de “Trilogy” para a estatal russa Мелодия — única gravadora autorizada a operar no Leste Europeu depois de 1964 — por míseros 3 mil dólares. O disco vendeu 14 milhões de cópias, conferindo a Malmsteen um status de superastro por aqueles lados. O guitarrista não recebeu um centavo por isso, mas seu então empresário, Nigel Thomas, achou que seria uma boa ideia capitalizar em cima disso por meio de uma turnê.

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https://www.youtube.com/watch?v=g_o0cl9WRo8

Antes da queda do Muro de Berlim, era muito difícil para artistas ocidentais se apresentarem na União Soviética; mesmo grupos locais tinham de passar por censores. Ainda assim, em janeiro de 1989, Yngwie e sua banda desembarcaram na capital Moscou, rumo a uma estada de cerca de dois meses na qual realizariam vinte shows, todos com ingressos esgotados, com um público total de 240 mil pessoas; o maior já registrado para um artista na história da URSS. No último desses shows, em 10 de fevereiro, foi gravado o ao vivo “Trial By Fire: Live in Leningrad”, lançado em outubro daquele ano.

A IgorMiranda.com.br, Turner revela que essa foi uma das experiências que mudaram a sua vida:

“Já estive nos quatro cantos do mundo, mas não havia lugar como a antiga União Soviética. Tocamos para mais de 20 mil pessoas por noite; onze datas em Moscou e onze em Leningrado [atual São Petersburgo]. Foi fantástico. E o choque cultural foi, uh… educativo. Eles chamam de educação tudo o que você aprende na escola; para mim, é mais doutrinação do que educação. A melhor educação é viajar. Ver pessoas diferentes, culturas diferentes. Partir o pão com os outros garante que você seja uma pessoa completa. Quando você fica em apenas um país, quanto você pode saber sobre o mundo? Muitas pessoas infelizmente não têm a oportunidade de viajar. Por ter, me sinto muito afortunado, e pessoas como eu são igualmente afortunadas.” 

https://www.youtube.com/watch?v=EdzLoH-3fzw

Não obstante o pioneirismo da empreitada, a imprensa ocidental nunca deu a Malmsteen o reconhecimento devido; algo que ele faz questão de abordar em sua autobiografia:

“Ninguém nunca falou sobre nada disso. Era só Mötley Crue e Bon Jovi, que foram para lá três anos depois [no Moscow Music Peace Festival, realizado, na verdade, também em 1989]. Eu estaria mentindo se dissesse que não me irritava sempre que ouvia todo aquele alvoroço sobre a ‘revolucionária’ ida do Bon Jovi à fortemente protegida União Soviética depois que a Cortina de Ferro caiu, enquanto eu estive lá bem antes disso.”

https://www.youtube.com/watch?v=MLpUi-2Q7nQ

“Aqueles anos foram o inferno na terra para mim”

Embora tenha sido o álbum de Yngwie Malmsteen mais bem-sucedido nas paradas — 40º lugar nos Estados Unidos e colocação entre os 50 mais em outros cinco países —, por ter sido fruto de um período dos mais sombrios, “Odyssey” não é visto com a maior das estimas por seu principal criador, que diz:

“Eu não estava inspirado, não me sentia engajado durante as gravações, não achava que minha forma de tocar estava à altura, realmente não dava a mínima se o álbum ficaria pronto. Mas a gravadora dava e muito, porque queria recuperar seu alto investimento em mim. A gravadora conseguiu seu dinheiro de volta, mas o fato de ‘Odyssey’ ter se tornado meu álbum mais vendido nos Estados Unidos não significou nada para mim. Aqueles anos foram o inferno na terra para mim, qualquer que fosse o ângulo pelo qual eu olhasse para eles.”

Turner, por sua vez, aponta “Odyssey” como um de seus melhores trabalhos; e de Malmsteen, também:

“Em termos de música, produção e performance, é muito forte. Yngwie compôs solos excepcionais e eu fiz o trabalho para o qual fui contratado.”

Veja também:

Yngwie Malmsteen — “Odyssey”

  • Lançado em 8 de abril de 1988 pela Polydor
  • Produzido por Yngwie Malmsteen, Jeff Glixman e Jim Lewis

Faixas:

  1. Rising Force
  2. Hold On
  3. Heaven Tonight
  4. Dreaming (Tell Me)
  5. Bite the Bullet instrumental)
  6. Riot in the Dungeons
  7. Deja Vu
  8. Crystal Ball
  9. Now Is the Time
  10. Faster than the Speed of Light
  11. Krakatau (instrumental)
  12. Memories (instrumental)

Músicos:

  • Yngwie Malmsteen (guitarra; Moog Taurus; baixo nas faixas 3, 4, 5, 6, 7, 10, 11, e 12)
  • Joe Lynn Turner (vocal)
  • Jens Johansson (teclados)
  • Anders Johansson (bateria)
  • Bob Daisley (baixo nas faixas 1, 2, 8 e 9)

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Marcelo Vieira
Marcelo Vieirahttp://www.marcelovieiramusic.com.br
Marcelo Vieira é jornalista graduado pelas Faculdades Integradas Hélio Alonso (FACHA), com especialização em Produção Editorial pela Universidade Estadual Paulista (UNESP). Há mais de dez anos atua no mercado editorial como editor de livros e tradutor freelancer. Escreve sobre música desde 2006, com passagens por veículos como Collector's Room, Metal Na Lata e Rock Brigade Magazine, para os quais realizou entrevistas com artistas nacionais e internacionais, cobriu shows e festivais, e resenhou centenas de álbuns, tanto clássicos como lançamentos, do rock e do metal.

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