Roger Waters reafirma discurso político na 1ª de duas noites em São Paulo

Show da turnê “This is Not a Drill” reinventa clássicos do Pink Floyd para realinhá-los com os tempos atuais

Há uma regra sagrada para qualquer show do Roger Waters: se trata de algo que vai muito além da música. É um verdadeiro ato político. Foi exatamente o que aconteceu no Allianz Parque, no último sábado (11), primeira das duas datas do músico em São Paulo — e sexta das sete no Brasil — com sua turnê “This is Not a Drill”.

Logo na abertura, um aviso: um texto narrado por ele mesmo e traduzido em português no telão dizia que quem gosta de Pink Floyd mas não quer ver o discurso politizado do músico, pode dar o fora e ir para o bar. Ele até disse em entrevista que a introdução é só uma piada, mas é daquelas com fundo de verdade.

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A primeira música foi o clássico “Comfortably Numb”, de “The Wall” (1979), que ganhou uma versão mais lenta, densa, enquanto os enormes telões na frente do palco projetavam a animação de uma cidade em que as pessoas só olhavam para os seus celulares. Roger cantava os versos sentado em uma cadeira e vestido com um jaleco branco, como se fosse um médico. O recado estava dado: estamos todos “confortavelmente entorpecidos”.

Foto: Marcos Hermes / divulgação

Seguiram-se “The Happiest Days of Our Lives” e um medley de “Another Brick in the Wall” partes II e III, todas de “The Wall”, em versões mais próximas das originais. Agora, os telões exibiam palavras de ordem e imagens impactantes. Era a música como pano de fundo para algo maior: um grande discurso político.

Os fãs que acompanharam a turnê anterior, “Us + Them”, de 2018, já estavam calejados. Naquele show, realizado no mesmo estádio pouco antes da até então mais polarizada eleição presidencial brasileira, um “Ele Não” gigantesco no telão e o nome do futuro presidente na lista de quem o músico considera fascista foram o estopim para uma confusão generalizada que envolveu vaias e xingamentos. Ao que tudo indica, quem nunca se deu ao trabalho de ler com calma as letras do Pink Floyd descobriu naquela noite que Roger Waters tem um posicionamento à esquerda do espectro político. 

Um olhar atento ao redor mostrava que, se o propósito de conscientização política não deu resultado – aliás, o candidato que ele chamou de neofascista ganhou a eleição –, pelo menos serviu para selecionar renovar o seu público. Em todo o estádio, o que se via eram pessoas jovens, majoritariamente entre 30 e 40 anos, muito diferentes das cabeças brancas que predominavam em 2018. Pelo visto, quem gosta de Pink Floyd, mas não suporta a política de Waters, preferiu aproveitar a noite de calor escaldante para ficar no bar – ou em casa.

Quem estava lá, já era convertido. Era possível ver até gente com boné do Movimento dos Trabalhadores Sem-Terra (MST) justamente na pista VIP, onde os ingressos custavam quase R$ 1 mil.

Contradição? Bem, talvez essa seja a marca do artista. Parte do conceito de “The Wall” foi criado justamente para criticar os shows em grandes arenas, obrigatórios depois que a banda explodiu para a fama com “The Dark Side of the Moon”, de 1973. E os shows daquela turnê eram realizados em… grandes arenas. 

Foto: Marcos Hermes / divulgação

Waters se afirma como pró-direitos humanos, mas já demonstrou se alinhar ao presidente russo, Vladimir Putin, um contumaz perseguidor de adversários políticos e minorias, na invasão à Ucrânia. Fez críticas em função da guerra, mas apresentou contrapontos nem sempre justificáveis. Aqui, o músico ainda comprou uma nova briga com David Gilmour, guitarrista do Pink Floyd, que chegou até a tirar a banda de um hiato de décadas para gravar uma música em solidariedade aos ucranianos – com o dinheiro revertido às vítimas da guerra.

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Ao lado da questão política, a rixa entre os dois músicos, iniciada ainda nos tempos de Pink Floyd, foi o segundo pano de fundo para o show. O guitarrista foi simplesmente “esquecido”. Logo em “Comfortably Numb”, os solos de guitarra, dos melhores da história do rock, foram cirurgicamente removidos. Mais para frente, imagens dos membros do Pink Floyd foram exibidas no telão. Estavam lá Waters, o tecladista Richard Wright, o baterista Nick Mason, o gênio-fundador Syd Barrett, que se afastou do grupo ainda da década de 1970 – todos, menos Gilmour. Enquanto isso, no fundo, ouvia-se clássicos como “Shine on You Crazy Diamond (Parts VI-IX)” e “Wish You Were Here”, compostas em parceria com… David Gilmour.

Como dito: contradições.

Ao mesmo tempo, coragem. É preciso muita coragem para mexer em clássicos absolutos do rock. Ao modificar melodias, ou simplesmente exibir determinadas imagens no telão enquanto essas canções tão emblemáticas eram executadas, o músico dava um novo significado às letras escritas décadas atrás. Ele chegou até a gravar uma releitura de “The Dark Side of the Moon”, justamente no aniversário de 50 anos do álbum — nenhuma delas tocada nesse show. Tudo para alinhar música e letras aos tempos atuais. Esse talvez seja o grande mérito de Waters: faz o que for necessário para que sua mensagem seja ouvida.

O cuidado com o entendimento do público era evidente quando trechos de algumas das canções eram exibidas no telão em nosso idioma. “Uma pena que eu não falo português”, disse o músico em um dos muitos monólogos que fazia para dar contexto às próximas músicas ou simplesmente para reforçar seu discurso político. Já no final da noite, antes do bis, ele leu uma folha de papel com um recado “que acabou de chegar de um amigo em Ramala (Cisjordânia)”: era a convocação para um ato pró-palestina que aconteceria no dia seguinte na capital paulista. Teve início às 11h, na praça Oswaldo Cruz.

Em alguns momentos o ativismo foi maçante. A metralhadora giratória de Waters não deu respiro um segundo sequer, algo que de certa forma acabou diluindo o discurso ao longo de toda a noite. Talvez pausas pontuais contribuíssem a fortalecer a mensagem, que ficaria concentrada em menos músicas.

Mas essa é apenas uma opinião pessoal. Apesar do calor insuportável — o primeiro de uma semana que promete bater recordes históricos na cidade —, o público se entregou de corpo e alma ao show. Aplaudia e vibrava com as mensagens no telão, principalmente quando temas mais sensíveis eram abordados, como os direitos reprodutivos das mulheres, violência policial ou a guerra do estado israelense contra o grupo Hamas, cujo braço político governa a Faixa de Gaza desde 2007 enquanto seu braço terrorista, as Brigadas de Al-Qassam, promove ataques contra civis e soldados de Israel – o mais notável matou mais de 1,2 mil pessoas em outubro, quase todas civis, e foi o estopim para o conflito atual.

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Foto: Marcos Hermes / divulgação

Os clássicos do Pink Floyd foram cantados a todo pulmão. Em “Wish You Were Here” e “Shine on You Crazy Diamond (Parts VI-IX)”, era possível ouvir nitidamente a reverberação do coro do público em todo o estádio. 

O show ia se encaminhando para o fim quando as músicas de “The Dark Side of the Moon” finalmente começaram a ser tocadas. E veio uma sequência arrebatadora, seguindo a ordem do disco em seu lado B, iniciada com “Money” (tendo os solos de guitarra) e seguida por “Us and Them”, “Any Colour You Like”, “Brain Damage” (reparem como a introdução remete a “Dear Prudence”, dos Beatles) e, finalmente, “Eclipse”, encerrada com um belo show de lasers na cor de arco-íris. O clássico “Time”, com mais um magistral solo de Gilmour, ficou para a lista dos “esquecimentos”.

O que veio a seguir foi uma espécie de anticlímax. Um octogenário Waters, nitidamente emocionado com a noite – ele não cansou de agradecer o público –, fez longos monólogos improvisados para apresentar as próximas músicas: “Two Suns in the Sunset”, do pouco conhecido álbum “The Final Cut” (1983), do Pink Floyd, e um medley de “The Bar”, de sua carreira solo, com “Outside the Wall”, que fecha “The Wall”.

Eram músicas mais lentas e menos conhecidas, que acabaram tirando o clima apoteótico criado pelos clássicos que as antecederam. Era tudo o que um público, que chegava a passar mal com tanto calor (uma pessoa desmaiou bem na minha frente minutos antes do início do show), não queria.

Como disse um amigo, é impossível sair de um show desses sem repensar no mundo em que vivemos. Nesse sentido, Waters cumpriu seu papel. Algo que deve ser muito importante para ele, que, deboche à parte, está em sua autodeclarada “primeira turnê de despedida”.

Resta saber como serão os dias seguintes das dezenas de milhares de pessoas que lotaram o estádio. Irão ao protesto contra a morte de civis na Faixa de Gaza? Irão se manifestar contra a violência policial? Irão se engajar pelos direitos humanos? Ou vão se limitar a postar os vídeos do show em suas redes sociais, ganhar likes e seguir vivendo “Comfortably Numb”?

Foto: Marcos Hermes / divulgação

Roger Waters – ao vivo em São Paulo

  • Local: Allianz Parque
  • Data: 11 de novembro de 2023
  • Turnê: This is Not a Drill

Repertório:

  1. Comfortably Numb
  2. The Happiest Days of Our Lives
  3. Another Brick in the Wall, Parte 2
  4. Another Brick in the Wall, Parte 3
  5. The Powers That Be
  6. The Bravery of Being Out of Range
  7. The Bar
  8. Have a Cigar
  9. Wish You Were Here
  10. Shine On You Crazy Diamond (Partes 6 a 9)
  11. Sheep
  12. Início do segundo ato – In the Flesh
  13. Run Like Hell
  14. Déjà Vu
  15. Déjà Vu (reprise)
  16. Is This The Life We Really Want?
  17. Money
  18. Us and Them
  19. Any Colour You Like
  20. Brain Damage
  21. Eclipse
  22. Two Suns in the Sunset
  23. The Bar (reprise)
  24. Outside the Wall

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1 COMENTÁRIO

  1. Congratulo aelegância desse texto. Narra o acontecimento permitindo a reflexão do leitor, trabalha a poética mantendo-se como figura fiável e tem posição, mas não milita. Uma abordagem difícil, sensível, mais rara do que deveria ser na área e merecedora de muito respeito. Minha sincera admiração pelo seu trabalho, Flávio Dagli. Parabéns!

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