Como Bobby Gillespie descobriu o acid house e criou “Screamadelica”, obra-prima do Primal Scream

Músico escocês detalha no livro "Garoto do Cortiço" o ponto de virada da banda e o surgimento de um dos discos mais revolucionários dos anos 1990

A profusão de autobiografias no mercado editorial nem sempre é garantia de uma boa leitura. No nicho específico da música, aliás, é até corriqueiro se deparar com alguns embustes. Esse, definitivamente, não é o caso de “Garoto do Cortiço”, livro de memórias de Bobby Gillespie, fundador e líder do Primal Scream.

Publicado originalmente em 2021 com o título de “Tenement Kid”, ele saiu no Brasil no fim do ano passado (via editora Terreno Estranho) e perpassa a vida do músico desde sua infância até o lançamento de “Screamadelica” (1991), obra-prima da banda e um dos discos que ajudaram a “inaugurar” a década de 1990.

Screamadelica e ‘Nevermind’ foram lançados no mesmo dia, em 23 de setembro de 1991. Para alguns, foi o dia em que os anos 1990 realmente começaram.”

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A frase cunhada por Gillespie – e presente nos finalmentes do livro – pode soar pretensiosa, mas não é. Ao longo da narrativa, ele tece o panorama histórico que permite entender como “Screamadelica” foi, de fato, uma ruptura drástica com o que veio antes ou estava em voga, inclusive o início de carreira claudicante do próprio Primal Scream.

Do punk ao acid house

“Garoto do Cortiço” detalha momentos de inflexão que foram definidores para Bobby Gillespie, como:

  • o despejo do cortiço em que morava com a família na infância;
  • os preceitos da luta de classes, aprendidos com o pai comunista;
  • a epifania do rock ‘n’ roll, ouvindo os discos de David Bowie ou materializada com a ida ao primeiro show na vida, do Thin Lizzy;
  • a descoberta dos Sex Pistols na aurora do punk;
  • a viagem inaugural de LSD;
  • o convite para se tornar baterista do Jesus and Mary Chain.

No entanto, a guinada artística de Bobby Gillespie e sua trupe ocorre quando o músico trava contato com a cena de acid house no Reino Unido do fim dos anos 1980. A banda já havia lançado dois álbuns – “Sonic Flower Groove” (1987) e o homônimo “Primal Scream” (1989) –, mas ambos passaram praticamente despercebidos, apesar de terem alguns bons momentos.

Voltados para um tipo de som que pode ser definido como indie/folk neo-psicodélico, os dois discos empacaram e desapontaram o próprio Gillespie, que, por sua vez, também já estava entediado com a estética que sucedera o punk, seu habitat natural na adolescência.

“Até aquele momento, a música e as cenas nas quais eu me envolvera, do punk ao pós-punk e à cultura do rock ‘n’ roll em geral, eram conduzidas por raiva, fúria, niilismo e desespero. Eu adorava tudo aquilo porque é como eu me relacionava com o mundo. Tinha uma boa dose salubre (ou insalubre) de negativismo no meu caráter. Adorava música que falava de mágoa, luta e dor e adotava uma visão cínica das relações humanas e da política.

O indie do Reino Unido era presunçoso, elitista e preconceituoso, com regras demais e uma estética puritana segundo a qual tudo o que fosse glamoroso ou abertamente sexual era visto como fortemente suspeito. (…) Havia sempre uma fleuma no ar nos shows indie. O público, em geral, se vestia de um jeito terrivelmente utilitário, ao passo que a cena acid tinha muita energia e era repleta de garotas lindas e estilosas. (…) As pessoas pareciam revigoradas e limpas, e todo mundo era mais amigável, devido à droga da comunhão da cena, o ecstasy.”

O fator Weatherall

Todavia, para além da droga e do novo tipo de comportamento estético, faltava um elemento que seria preponderante — que atendia pelo nome de Andrew Weatherall. O DJ e produtor inglês, oriundo do acid house, foi peça-chave para a desconstrução do rock de guitarra praticado pelo Primal Scream até então. Com ele, a música da banda sofreu a transmutação decisiva.

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O capítulo em que Gillespie conta como conheceu Weatherall em 1989 e sobre como ele exerceu impacto, nas raves da época ou na formatação do novo Primal Scream, talvez seja um dos mais poderosos de “Garoto do Cortiço”. “Loaded”, para muitos o ápice de “Screamadelica”, foi a primeira a contar com a magia (mixagem) do novo “integrante”. A partir daí, nunca mais o grupo escocês foi o mesmo.

“Uma música abrangente, desconstruída, inventiva, futurista. Estar presente quando Andrew Weatherall tocava uma faixa nova, nunca ouvida, pela primeira vez, era como ser iniciado numa sociedade secreta ocultista. Não era música de careta, era um acontecimento verdadeiramente underground, e estávamos ligados na viagem; uma psicodelia moderna, se preferir.”

Depois vieram outros monumentos em forma de canções: “Come Together”, “Don’t Fight It, Feel It”, “Slip Inside This House”, “Higher than the Sun” e “Movin’ On Up”, essas duas últimas as únicas que não tiveram o dedo de Weatherall na produção.

“‘Screamadelica’ não é apenas um disco pop, tampouco somente um disco de rock ou dance, é tudo isso e mais. Ao longo de todo aquele ano de 1990, nos debruçamos no estúdio e escrevemos canções. (…) Ficou claro que o álbum que estava por vir não seria um álbum de rock. Seria um álbum de canções. É isso que ‘Screamadelica’ realmente é. Ele tem a reputação de ser um disco dance, mas talvez só metade das músicas sejam dançantes. Tem um pouco de tudo, muitos climas, é isso o que o torna um álbum interessante.”

“O Underground Vira Overground”

“Screamadelica” vendeu mais de três milhões de cópias e levou o Primal Scream ao segundo lugar na parada de discos independentes no Reino Unido. Nos Estados Unidos, chegou à 31ª posição da Billboard, algo inimaginável em relação aos tempos dos primeiros lançamentos da banda.

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A influência do disco, no entanto, vai além dos números. “Screamadelica” quebrou barreiras entre o rock e a música eletrônica. Entre indies e clubbers. Entre os anos 1980 e a nova década que começava.

“Essas coisas maravilhosas não teriam acontecido sem o acid house, que, como o punk rock, inspirou o ‘faça você mesmo’. Foi uma época libertadora, e é por isso que canções como ‘Don’t Fight It, Feel It’ e ‘Higher Than the Sun’ capturaram o espírito utópico daqueles dias no underground acid. Ambas são hinos hedonistas, e aqueles eram tempos hedonistas. Muita gente descobriu sua própria criatividade por meio do acid house, fosse fazendo pôsteres para as raves, discotecando, fazendo pequenos filmes ou camisetas.”

“O acid house fez, sim, uma diferença. Nunca teríamos discos de sucesso sem o acid house. ‘Screamadelica’ nunca teria surgido sem o acid house. A banda não teria uma carreira de 30 anos sem o acid house.”

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Guilherme Gonçalves
Guilherme Gonçalves
Guilherme Gonçalves é jornalista formado pela Universidade Federal de Goiás (UFG). É repórter do Globo Esporte e atua no jornalismo esportivo desde 2008. Colecionador de discos e melômano, também escreve sobre música e já colaborou para veículos como Collectors Room e Rock Brigade. Atualmente revisa livros da editora Estética Torta e é editor do Morbus Zine, dedicado ao death metal e grindcore.

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