A história de “Lick It Up”, o primeiro disco do Kiss de cara limpa

Décimo primeiro álbum de estúdio marcou início de nova fase para banda, conhecida até então por sempre se apresentar com maquiagem

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Em junho de 1983, o Kiss veio ao Brasil e tocou para 180 mil fãs no Estádio do Maracanã, no Rio de Janeiro. Era a maior plateia de sua carreira.

Apesar do êxito na América do Sul, o clima era de instabilidade na América do Norte. Gene Simmons e Paul Stanley sabiam que precisavam reconstruir o grupo do zero.

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De volta aos Estados Unidos, Paul insistiu para que Gene concordasse em fazer a coisa mais radical que podiam: tirar a maquiagem. “Teríamos que descobrir se éramos uma banda boa o suficiente para existirmos sem a maquiagem”, afirmou Stanley.

Assim começa a história de “Lick It Up”, o primeiro disco do Kiss de cara limpa.

“Éramos considerados cafonas”

A etapa norte-americana da turnê de “Creatures of the Night” (1982) teve bilheterias horrendas na maioria dos lugares. Às vezes, havia apenas mil pessoas em uma arena com capacidade para 18 mil. Nada podia preparar o Kiss — Simmons, Stanley, o guitarrista Vinnie Vincent e o baterista Eric Carr — para o choque de grandes espaços vazios.

O público não havia minguado por acaso. Para Stanley, o Kiss estava pagando o preço do mais pop e comercial “Unmasked” (1980) e do conceitual e experimental “Music from ‘The Elder’” (1981), que desapontaram muitos dos fãs mais ardentes da banda. Na autobiografia “Uma Vida Sem Máscaras” (Belas Letras, 2015), ele escreve:

“Estávamos de volta nos trilhos com ‘Creatures’, mas os fãs não perdoariam assim tão facilmente. Levaria anos para recuperarmos nossos fãs e arranjar alguns novos. Havíamos traído eles. As pessoas que nos deram as costas não voltariam só porque pedimos desculpas. Precisávamos provar que sentíamos muito e isso levaria muito tempo. ‘Creatures’ sozinho não seria o suficiente.”

Paralelo a isso, o cenário musical tinha mudado; a maior mudança sendo o crescimento da MTV. Em “Kiss: Por Trás da Maquiagem” (Belas Letras, 2021), Simmons explica:

“Sempre fomos uma banda visual, mas nossas figuras extravagantes não se encaixavam tão bem no mundo rock and roll dos anos 1980, que era dominado por bandas de hair metal, que davam aos adolescentes — especialmente às garotas — acesso a um tipo de música que antes era considerado perigoso para eles. Garotas de 13, 14 anos começavam a desenvolver sua sexualidade; suas primeiras paixões eram bandas como Bon Jovi e Poison. Descobrimos que tínhamos um integrante perfeito para essa transição: Paul Stanley.”

Até aquele momento, a MTV sempre havia ignorado o Kiss. Embora precisasse desesperadamente de espaço após o fiasco de “Music from ‘The Elder’”, o canal optou por não lhe dar nenhum. Stanley conta:

“O clipe que havíamos gravado para ‘I Love It Loud’ não entrou na programação. Éramos considerados cafonas por um canal cujo gosto era definido por um grupo de universitários.”

Tudo estava para mudar.

“Vinnie tocava como se estivesse vomitando”

“It ain’t a crime to be good to yourself” (“Não é um crime ser bom consigo mesmo”), diz a letra da faixa-título de “Lick It Up”, composição de Paul Stanley e Vinnie Vincent que se tornaria a oitava música mais tocada ao vivo pelo Kiss.

Embora houvesse certa empolgação com a retirada da maquiagem, nem as letras nem a música sofreram alterações drásticas. O som mais pesado e voltado para o hard rock de “Creatures of the Night” foi mantido. Ainda que composições como “A Million to One” possuíssem um elemento melódico muito forte, a ausência de baladas — uma constante nos álbuns do Kiss desde o sucesso de “Beth” em “Destroyer” (1976) — sinaliza o compromisso da banda em reconquistar os fãs perdidos com “Unmasked” e “Music from ‘The Elder’”.

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Feliz com a produção de “Creatures”, a banda se sentiu segura para trabalhar com Michael James Jackson outra vez. Em depoimento a “Kiss: Por Trás da Máscara” (Companhia Editora Nacional, 2006), o produtor relembrou o expediente no que chamou de “um disco muito especial”:

“Trabalhávamos seis dias por semana, do meio-dia até as duas ou três da manhã. Para concluir o disco, por causa dos prazos apertados, acabamos usando dois estúdios diferentes simultaneamente. Estávamos na cidade de Nova York e os estúdios [Record Plant e Hit Factory] se localizavam em partes distintas da cidade, então era um vai-e-vem interminável de táxis para conseguir terminar o trabalho.”

Apesar de, na opinião de Jackson, a pressão dos prazos apertados ter despertado o melhor em cada um…

“Havia algumas coisas que o Vinnie não conseguia tocar. Frequentemente tocava solos que exibiam uma mão esquerda notável, com um milhão de notas, mas para produzir um grande efeito era essencial também essa aptidão na mão direita, que faltava nele, o que era um problema. Trouxemos [o guitarrista] Rick Derringer para dar uma força. Foi difícil para o Vinnie, mas a qualidade do disco sempre seria a prioridade e estaria acima do ego de qualquer pessoa.”

Ego que, no caso de Vincent, já havia se manifestado durante a turnê de “Creatures” e voltaria a se manifestar na turnê seguinte. Para Stanley, Vinnie “tocava como se estivesse vomitando”:

“Ele queria mostrar como era capaz de tocar rápido e quantas notas era capaz de tocar. Isso se tornou problemático. Vinnie tinha uma compulsão infernal por usar todos os solos como uma oportunidade para se exibir. Mas não é assim que funciona. Tudo depende do contexto. Vinnie nunca pareceu entender isso.”

Aos autores David Leaf e Ken Sharp de “Kiss: Por Trás da Máscara”, o guitarrista rebate:

“Há dois lados da moeda. Os álbuns que fiz com eles eram ótimos, mas infelizmente a guitarra tocada neles não tinha nada a ver comigo. Acho que o Kiss queria mais um instrumentista da velha guarda que não interferisse em nada, ficasse sentado num cantinho e fizesse tudo o que era mandado. O amor deles pela guitarra se apoia no passado e eu amo aquilo também, mas sou um guitarrista de hoje e de amanhã. Falo pela minha guitarra, que é a minha voz. Eu sou aquela guitarra e aquela guitarra sou eu.”

As diferenças pessoais e os conflitos criativos com os outros membros da banda levariam Vinnie a ser despedido do Kiss em 1984. Sua última aparição ao vivo com a banda foi em 17 de março daquele ano, no Roberts Stadium em Evansville, Indiana.

“Parecia Dresden em 1945”

Em 18 de setembro de 1983, cinco dias antes do lançamento de “Lick It Up”, o Kiss apareceu sem maquiagem pela primeira vez na MTV num especial adequadamente denominado Kiss Unmasked. Em seu livro, Gene Simmons relembra este que foi um momento histórico para a banda:

“Decidimos nos revelar ao vivo na MTV. Primeiro, mostravam a imagem dos nossos rostos com maquiagem, numa superimposição, sobre o nosso rosto real. Conforme o VJ anunciava nossos nomes, as fotos com maquiagem se dissolviam e nossa fisionomia verdadeira aparecia.”

O evento repercutiu na imprensa. As pessoas ficaram interessadas. A MTV, que havia veiculado o desmascaramento do Kiss, finalmente o acolheria em sua programação de alguma maneira. “Achamos que, dessa vez, eles tocariam nosso clipe se fizéssemos um”, afirma Paul Stanley:

“O clipe de ‘Lick It Up’ foi o primeiro que fizemos sem maquiagem. Rodamos em uma área incendiada do Bronx. Afora uns poucos adereços, tudo era de verdade: não fizemos nada além de ir até lá. Parecia Dresden em 1945, um cenário de devastação pós-apocalíptica. Havia prédios ruindo e ameaçando cair em qualquer direção para onde se olhasse. Era a coisa mais surreal e bizarra que eu já tinha visto. No fim nós esguichávamos um negócio na boca, acho que era iogurte. Era a ideia deles [dos diretores] de alimento para a sobrevivência pós-holocausto nuclear.”

Quando viu o clipe completo e editado, Stanley achou legal, mas…

“Eric odiou porque tinha pernas curtas e quando caminhava dava para ver os pezinhos com sapatos pontudos e pernas grossas. E ao ver o Vinnie as pessoas perguntavam: ‘É uma mulher?’. Ele já tinha uma aparência muito estranha e naquele clipe ficou ainda mais estranho porque tentou parecer sexy para a câmera.”

“Nos transformamos numa banda de hair metal”

“Lick It Up” foi lançado em 23 de setembro de 1983 e imediatamente vendeu três vezes mais que “Creatures of the Night”, ganhando disco de platina duplo nos Estados Unidos. O sucesso confirmou que as suspeitas de Paul Stanley estavam certas. Ele diz:

“Não era que as pessoas não quisessem o Kiss. Elas queriam que o Kiss deixasse para trás o que já não parecia genuíno. Tirar a maquiagem forçou as pessoas a focarem na banda. E elas acolheram a música.”

Apesar de ter vendido muito, muito melhor, para Stanley, “Lick It Up” não era tão bom quanto “Creatures”:

“É um álbum bem bom, mas não tem o mesmo nível.”

Depois que tirou a maquiagem, o Kiss parou de usar botas de plataforma no palco, adotando um estilo mais genérico, assim definido por Paul:

“Roupas coloridas e apertadas; sexuais e espalhafatosas. Passamos para um visual bem comum para a época. Até o The Who e os Stones foram afetados; ninguém era imune ao que estava rolando. Tínhamos a mesma aparência de dúzias de outras bandas. Não havia mais espaço para ser diferente. Nos transformamos numa banda de hair metal.”

Mas a aparência homogeneizada — cabelo comprido, lycra, joias e maquiagem feminina — não era a única crítica de Stanley:

“A maioria das hair bands era horrível, musicalmente terríveis. Era incrível o quanto algumas delas eram ruins. Não tinham alma nem raízes. Guitarristas que tocavam de improviso e batiam nas cordas sem saber tocar de fato. Mas tínhamos que nos adaptar ao que estava rolando.”

Para o bem ou para o mal, ter virado uma hair band possibilitou ao Kiss se manter vivo e, segundo Gene Simmons, a plateia nos shows mudou drasticamente:

“De repente, nos tornamos populares com garotas adolescentes. Elas iam aos shows. Ficavam na primeira fileira. Gritavam. E, às vezes, parecia que queriam fazer mais que gritar.”

Voltar a lotar arenas o convenceu:

“Era uma segunda chance para nós.”

Kiss — “Lick It Up”

  • Lançado em 22 de setembro de 1983 pela Mercury
  • Produzido por Michael James Jackson, Gene Simmons e Paul Stanley
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Faixas:

  1. Exciter
  2. Not for the Innocent
  3. Lick It Up
  4. Young and Wasted
  5. Gimme More
  6. All Hell’s Breakin’ Loose
  7. A Million to One
  8. Fits Like a Glove
  9. Dance All Over Your Face
  10. And on the 8th Day

Músicos:

  • Paul Stanley (voz, guitarra rítmica, baixo na faixa 5)
  • Gene Simmons (voz, baixo)
  • Vinnie Vincent (guitarra solo, backing vocals)
  • Eric Carr (bateria, percussão, backing vocals)

Músico adicional:

  • Rick Derringer (solo de guitarra na faixa 1)

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Marcelo Vieira
Marcelo Vieirahttp://www.marcelovieiramusic.com.br
Marcelo Vieira é jornalista graduado pelas Faculdades Integradas Hélio Alonso (FACHA), com especialização em Produção Editorial pela Universidade Estadual Paulista (UNESP). Há mais de dez anos atua no mercado editorial como editor de livros e tradutor freelancer. Escreve sobre música desde 2006, com passagens por veículos como Collector's Room, Metal Na Lata e Rock Brigade Magazine, para os quais realizou entrevistas com artistas nacionais e internacionais, cobriu shows e festivais, e resenhou centenas de álbuns, tanto clássicos como lançamentos, do rock e do metal.

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