New Model Army demonstra intensidade e integridade intactas em show no Rio

Encerrando intervalo de 33 anos sem tocar na cidade, banda inglesa conclui turnê nacional com apresentação vigorosa para público vibrante

Após dois shows em São Paulo e um em Curitiba, o New Model Army concluiu sua turnê nacional com apresentação no Rio de Janeiro, no último domingo (9). O Circo Voador, palco mais democrático e representativo da cidade, foi a escolha perfeita para receber o poder de fogo de Justin Sullivan (voz, guitarra e único membro original), Michael Dean (bateria e vocal), Dean White (guitarra e voz), Ceri Monger (baixo, voz e percussão) e Nguyen Green (teclado e voz).

Foto: Paty Sigiliano @paty_sigilianophotos

Foram precedidos pelo Salnaveia, grupo local competente em desfilar um repertório apenas de covers, que incluiu Foo Fighters, Franz Ferdinand, White Stripes, Queens of the Stone Age, entre outros. Banda do tipo não autoral só faz sentido no circuito de bares, onde antepasto requentado cai melhor.

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Foto: Paty Sigiliano @paty_sigilianophotos

Felizmente, a noite tinha uma proposta mais inteligente e interessante.

Formado em 1980, na cidade de Bradford, Inglaterra, o New Model Army trilha um caminho muito particular, o que dificulta qualquer tipo de categorização. O som único — mistura de folk, punk e pós-punk — arrebatou uma legião de adoradores fiéis ao longo das mais de quatro décadas de existência.

Muitos seguem a banda por países diversos quando uma turnê tem início. Algo tribal mesmo. Como discorre a letra de “Vagabonds”, infelizmente não tocada: “We are old, we are young, we are in this together / Vagabonds and children, prisoners forever” (“Somos velhos, somos jovens, estamos nisso juntos / vagabundos e crianças, para sempre prisioneiros”). Entre erros e acertos em sua trajetória, permanecem íntegros em suas crenças, pagando o preço por não aceitarem o jogo das grandes corporações.

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Segundos até o estouro

Sem muito — ou nenhum — alarde, apenas uma discreta introdução instrumental, os músicos tomam seus lugares. Justin circula pelo palco como uma fera enjaulada até encarar fixamente Michael nos olhos. Segundos até a explosão da poderosa “Coming or Going”, uma das melhores faixas de “Unbroken” (2024), álbum responsável por emprestar mais quatro músicas como base do show.

Bandas com muitas décadas de estrada, e com boa discografia, nem sempre entram no ciclo “álbum novo, tour nova”. Alguns saem em tour apenas amparados pelo farto número de clássicos em sua trajetória e montam setlists repetitivos e sem vida. Outros, quando lançam álbum novo escolhem tocar uma ou duas músicas. Não é o caso aqui. A força dos seus três últimos discos, “Winter” (2016), “From Here” (2019) e o já citado “Unbroken”, os mantêm relevantes sem se renderem a modismos e sem a maldição de se tornarem uma pálida lembrança de áureos tempos. Produzido pela própria banda e entregue a Tchad Blake para mixar ou para “não soar tão ruim como fizemos”, segundo Sullivan me confessou, ele soa mais forte e pesado que seu antecessor, mas sem perder a emoção tão característica do legado.

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“First Summer After” e “Language” (“uma música sobre palavras”, de acordo com o frontman) comprovam isso. Músicas novas com ótima recepção. Há tantas décadas sem visitar a cidade, ter suas novas oferendas musicais cantadas foi o passo para comunhão com público.

Mesmo com alguns celulares erguidos — não há mais como escapar dessa prática — o público estava bem participativo, entoando os clássicos e as novatas acima. Houve roda, banho de cerveja e muito suor. Tudo dentro das características mais básicas de um grande show de rock. Em tempos onde backing tracks corrompem o sentido de “música ao vivo” e movimentos coreografados ditam ritmos de uma performance, encontrar a espontaneidade e a ligação quase telepática desses soldados de uma velha batalha é reconfortante.

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All about the bass and drums

“Stormclouds” faz Ceri largar o baixo e assumir o pequeno kit de percussão ao seu lado. A força da composição, alicerçada na fúria percussiva de Michael Dean, com o acréscimo de Ceri, gera tremores no Circo. Como me diria Justin algumas horas mais tarde: “it’s all about the bass and drums” (“tudo se resume ao baixo e bateria”). Sempre foi assim.

Michael, aliás, é um baterista sensacional. O ex-técnico de bateria do saudoso Robert Heaton (falecido em 2004), que o indicou quando resolveu se afastar do grupo por problemas de saúde, em 1998, possui muita técnica, criatividade e vigor. Desde sua entrada, forma com o cantor a principal dupla de compositores e adiciona sua particularidade musical à receita original do grupo. Pode ser um clichê, mas ele é a verdadeira usina de força da banda. Sullivan sabe disso e a ligação entre eles é feita na base do olho no olho.

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“Never Arriving” só confirma porque “From Here” é um dos melhores álbuns da banda. Uma pena não terem incluído, pelo menos, mais uma ou duas do disco. De novo, o baixo sinuoso encaixado na levada distinta de bateria torna a explosão do refrão ainda mais bombástica.

Ceri Monger se encaixou com perfeição ao grupo em 2012, estreando no subestimado “Between Dog and Wolf” no ano seguinte. O jovem de cabelo incandescente — apenas 37 anos — é mais um excelente baixista em uma lista que tem Stuart Morrow, Moose Harris e Nelson como donos de linhas marcantes, que muitas vezes carregavam as composições sem muito auxílio de guitarra. 

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Por sua vez, Justin Sullivan é um compositor que deve ser apreciado por suas letras, e a sequência iniciada com “Here Comes the War” (“The Love of the Hopeless Causes”, 1992) comprova isso: “You screamed ‘give us Liberty or give us Death’ / Now you’ve got both, what do you want next? Here comes the war — put out the lights on the Age of Reason” (“Vocês gritaram ‘nos deem liberdade ou a morte’, agora vocês têm os dois, o que querem mais? Aí vem a guerra — apaguem as luzes na era da razão”).

Foto: Paty Sigiliano @paty_sigilianophotos

Paleta de cores variadas e inesperadas

O passado de letras fortes e diretas (“Vengeance”, de 1983, causou controvérsia por pregar justiça com as próprias mãos) foi se transformando, de forma gradativa, em observações sociais, belos líbelos pró-natureza e olhares diferenciados sobre relacionamentos, fossem amorosos ou não. “225” e “Green and Grey” pertencem ao clássico “Thunder and Consolation” (1989). A primeira antecipa as redes sociais e o uso vil que alguns fazem dela nos versos “This golden age of communication / Means everyone talks at the same time / And liberty just means the freedom to exploit / Any weakness that you can find” (“Essa era de ouro da comunicação significa que todos falam ao mesmo tempo. E liberdade apenas significa permissão para explorar qualquer fraqueza que você puder encontrar”). A segunda é uma ode àqueles que largaram cidades do interior em busca do sonho das grandes metrópoles: Is it true that the world has always got to be something / That seems to happen somewhere else?” (“É verdade que o mundo tem sempre que ser algo que parece acontecer em outro lugar?”). Uma das mais conhecidas canções de Sullivan, em parceria com Heaton, é cantada em um emocionante uníssono.

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O clássico e o novo se complementam em uma paleta de cores variadas e inesperadas. Uma das novas composições chama-se “IDUMEA”. Sua origem, como me contou Sullivan, está na leitura de um livro sobre a Guerra de Canudos — embate armado entre o exército brasileiro e os seguidores do beato Antônio Conselheiro, ocorrida nos anos de 1896 a 1897 no sertão da Bahia. Era a luta contra a fome, a miséria e a seca nordestina.

No lado musical, outra fonte de inspiração veio de um cântico religioso com cerca de 300 anos descoberto por Sullivan no YouTube. Enquanto Ceri usa a percussão novamente, o cantor larga o violão para empunhar o baixo, algo inédito na história do grupo. A beleza de tom quase sacro aliada a forte percussão é um bom lembrete de como a obra da banda se mantém relevante e vigorosa.

Uma benção pode trazer em si uma maldição. Quando uma música de um artista o torna conhecido, ele pode ficar escravo dela. Precisa tocá-la em todos os shows, esperando uma reação esfuziante do público.  “51st State” é o grande hino do grupo. Ao menos no Brasil. Conseguiu a proeza de abrir a primeira roda da noite e aumentou o volume da cantoria em muitos decibéis.

Durante um longo período, a formação da banda pulou do trio inicial para um potente quinteto. Nessa configuração, Dean White era o tecladista. Apesar de ser guitarrista, perdeu a vaga para Dave Bloomberg, em 1994, e acabou no teclado e na ocasional segunda guitarra. Bloomberg foi substituído por Marshall Gill, em 2006. Quando este foi cortado do grupo em 2022 — a versão não oficial dá conta de um posicionamento antivacina —, a banda passou a ser um quarteto e White, finalmente, ocupou seu instrumento de formação.

Diferente em estilo de Marshall, Dean vem ocupando a função com perfeição. A fúria de riff pesado chamada “Angry Planet” (Between Wine and Blood”, 2014) dá lugar à “música mais verdadeira que já compusemos”. “Purity” (“Impurity”, 1990) emociona e ainda soa mais atual do que nunca: “The battle against corruption rages in each corner / There must be something better, something pure / And the call it is answered from the caves to the cities / Come the dealers of Salvation on Earth” (“A batalha contra corrupção assanha-se em cada região / Tem que existir algo melhor, algo puro / E o chamado é atendido das cavernas até as cidades / Chegam os mercadores da salvação na terra”). De lavar a alma.

Foto: Paty Sigiliano @paty_sigilianophotos

O bis

“Wonderful Way to Go” (“Strange Brotherhood”, 1998) seria, pelo título, o final perfeito, caso não houvesse um bis a seguir.

Se é verdade o quão difícil fica classificar o tipo de som do New Model Army, é fácil identificar que o bis trará clássicos. “Get Me Out” (“Impurity”, 1990) pega muitos de surpresa com sua levada mais forte, assentada em um pujante bumbo duplo.

Por sua vez, a clássica “The Hunt” (“The Ghost of Cain”, 1986) faz a alegria de quem queria trazer a rodinha de volta. Virou um hit cult quando o Sepultura a regravou no álbum “Chaos A.D.” (1993). Max e Iggor Cavalera são fãs de longa data do grupo.

O final, quase uma marca registrada, ficou por conta de “I Love the World” (“Thunder and Consolation”, 1989) e o desejo de “confiem um no outro, isso vai ferrar os caras lá de cima, é tudo que eles não querem”, disse um Justin esperançoso ao anunciá-la.

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Ao término das quase duas horas de apresentação, fica difícil acreditar que estamos diante de um cantor de 68 anos, tamanha a entrega com a qual canta e toca cada música. Ele não se ampara em truques, mas em sua potente banda, onde todos tocam e cantam, e em suas músicas sobre verdade. E o bloco que formam, apresentadas com tanta intensidade e emoção torna o show algo indissolúvel, inquebrantável, onde as partes não são mais importantes que o todo. Que não demorem tanto a retornar à cidade que os recebeu de braços abertos.

*Mais fotos ao fim da página.

Foto: Paty Sigiliano @paty_sigilianophotos

New Model Army — ao vivo no Rio de Janeiro

  • Local: Circo Voador
  • Data: 9 de junho de 2024
  • Turnê: Unbroken — Latin America Tour 2024
  • Produção: Liberation MC

Repertório:

  1. Coming or Going
  2. Long Goodbye
  3. First Summer After
  4. Language
  5. Winter
  6. Stormclouds
  7. Do You Really Want to Go There?
  8. Never Arriving
  9. Here Comes the War
  10. 225
  11. Green and Grey
  12. Idumea
  13. 51st State
  14. Angry Planet
  15. Purity
  16. Wonderful Way to Go

Bis:

  1. Get Me Out
  2. The Hunt
  3. I Love the World
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Claudio Borges
Claudio Borges
Jornalista, DJ, Produtor, Apresentador, Editor e o que mais ele encontrar pelo caminho da música. Descobriu Rock em 1982 e só ampliou gosto e conhecimento. Começou a tocar bateria aos 16 anos e guitarra aos 17.

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