Por vezes lido com pessoas que levam o heavy metal como estilo de vida. Tudo bem, é escolha de cada um. Contudo, tratar um gênero musical a exemplo deste como algo além pode fazer com que se deixe de aproveitar uma de suas principais características: a diversão. É aí que entram bandas como Helloween e Hammerfall. São dois nomes que nos ajudam a lembrar vez ou outra que o metal é divertido – seja com suas músicas, apresentações ou entrevistas.
Ambos os grupos realizaram sábado (8) o primeiro de seus dois shows no Espaço Unimed, casa em São Paulo com capacidade para oito mil pessoas. A noite inaugural estava com ingressos esgotados – e tudo indica que a apresentação de domingo (9), ainda que sem bater a marca “sold out”, também vai lotar.
A passagem atual pelo Brasil, que também teve show em Ribeirão Preto na última quinta-feira (6), faz parte da turnê “United Forces”. O título já entrega: as bandas uniram forças para excursionar juntas e tocar para um público bastante similar em preferências. O giro já percorreu a Europa e passará pela América do Norte em breve. Os dois grupos divulgam álbuns novos – o disco homônimo do Helloween, que saiu em 2021, e “Hammer of Dawn”, disponibilizado pelo Hammerfall no início deste ano –, mas os repertórios são marcados pelos clássicos. Afinal de contas, a diversão está em primeiro plano.
*Fotos de Gustavo Diakov / Sonoridade Underground
Let the Hammerfall
Não dá para saber se houve atraso de verdade ou erro na divulgação. Fato é que o Hammerfall subiu ao palco exatamente meia hora após o prometido: às 20h30, em vez de 20h.
Isso só deixou mais ansioso o público, que já se aglomerava no Espaço Unimed e pontualmente às 20h começou a gritar o nome do grupo formado por Joacim Cains (voz), Oscar Dronjak (guitarra), Pontus Norgren (guitarra), Fredrik Larsson (baixo) e David Wallin (bateria). Quem não tem cão, caça com gato: pouco antes das 20h30, os fãs cantaram a plenos pulmões “Run to the Hills”, clássico do Iron Maiden que rolava pela discotecagem da casa.
Não demorou muito após o hit da Donzela de Ferro até que o quinteto sueco, enfim, aparecesse. E mesmo em uma posição nem sempre grata – atração de abertura, ainda que disfarçada sob o título “convidada especial” na divulgação –, os músicos fizeram um show irretocável.
Como é de costume quando se trata de Hammerfall, vários álbuns foram representados no setlist. E nada de “forçar” músicas de um determinado disco: todas as escolhidas para aquela curta apresentação, com 11 faixas distribuídas em exatos 60 minutos, fizeram sentido ali.
“Brotherhood”, oriunda do novo álbum “Hammer of Dawn”, foi escolhida para abrir os trabalhos. Serviu muito mais para aclimatar o público do que os músicos, extremamente confortáveis no palco – a ponto de fazerem movimentos sincronizados e se movimentarem por todo o espaço, sem “lugares fixos”. A cadenciada “Any Means Necessary”, representante do disco “No Sacrifice, No Victory” (2009), contou com vários punhos cerrados na plateia e zero baixo de Fredrik Larsson. Felizmente o problema foi corrigido na seguinte, a acelerada “The Metal Age”, que, como Joacim Cans prometeu, levou os fãs de volta ao registro de estreia “Glory to the Brave” (1997).
Com o fim das três canções supracitadas, que foram tocadas em emenda, sem intervalos, Cans enfim pôde conversar um pouco com o público. Disse que sentiu falta do Brasil, perguntou se os fãs também estava com saudades e citou o novo álbum do grupo, introduzindo a faixa-título. Pouco empolgou, mas muito impressionou, visto a fidelidade de sua performance na comparação ao material gravado.
Em uma escolha acertada, a banda tocou na sequência “Renegade” em vez de optar por “Blood Bound”, como havia feito em shows na Costa Rica e no México. Faixa bastante conhecida, não merecia ficar de fora. O público correspondeu e manteve-se enérgico também na semibalada “Last Man Standing”, que talvez representou o momento de maior interação até aqui.
Outra boa sacada, apresentada na sequência, foi um medley que reuniu trechos de quatro músicas do álbum “Crimson Thunder” (2002): “Hero’s Return”, “On the Edge of Honour”, “Riders of the Storm” e a faixa-título. A última citada acabou sendo um pouco sacrificada, já que provavelmente agradaria mais se fosse tocada na íntegra, mas o formato convenceu. E é esse pot-pourri que confirma aquilo que já dava para notar: o Hammerfall é uma banda muito afiada. Não há nota, batida, canto ou mesmo fio de cabelo fora do programado. Méritos de quem ensaia seu show de forma bem profissional.
No momento de maior diálogo com o público, Joacim Cans desfilou carisma. Perguntou quantos estavam assistindo ao Hammerfall pela primeira vez (e quantos já haviam os visto), cobrou respostas efusivas dos presentes (“não estou ouvindo; estamos em um show de heavy metal, não na escola”), brincou com um cidadão que levantou a mão para gritar em ambas as questões e introduziu, também de modo empolgado, a faixa seguinte: “Let the Hammer Fall”, marcada por um longo momento de coro ao meio.
Após apresentar seus colegas de banda – incluindo Oscar Dronjak, que “pesa 250 quilos”, Joacim anuncia o próximo número: “(We Make) Sweden Rock”. O quase-hard rock do álbum anterior, “Dominion” (2019), parece ter chegado para ficar no setlist. Ao fim, o vocalista brinca que começaria ali o momento do bis, já que eles não arriscariam sair do palco só para que gritassem pedindo pelos retornos dos músicos.
A primeira do “encore”, “Hammer High”, chamou atenção por dois elementos. O primeiro foi o uso aparente de faixas pré-gravadas nos backing vocals, prática bastante comum nos dias de hoje e que, curiosamente, mostrou-se efetiva aqui. A segunda consistiu em Oscar Dronjak empunhar no início e no fim da canção sua guitarra em formato de martelo como se fosse a própria ferramenta.
Ao apresentar o número final do repertório, “Hearts on Fire”, Cans pede muito barulho para o Helloween e deixa claro: sem eles, não existiria Hammerfall. A faixa conclusiva do set foi, talvez, a melhor recebida por um público que parece ter sido convencido ao longo da noite. Era nítido que muitos ali não conheciam o grupo sueco tão bem, mas deu para notar que o carisma de Joacim – que estendeu uma bandeira do Brasil nos momentos derradeiros no palco –, a performance beirando a perfeição dos instrumentistas, a entrega do quinteto em geral e o quê de “Manowar divertido” das composições conquistaram muita gente cujo objetivo inicial era só conferir a atração principal.
Hammerfall – ao vivo em São Paulo
- Local: Espaço Unimed
- Data: 8 de outubro de 2022
- Turnê: United Forces
Repertório:
- Brotherhood
- Any Means Necessary
- The Metal Age
- Hammer of Dawn
- Renegade – substituída na Costa Rica e no México por Blood Bound
- Last Man Standing
- Hero’s Return / On the Edge of Honour / Riders of the Storm / Crimson Thunder
- Let the Hammer Fall
- (We Make) Sweden Rock
- Hammer High
- Hearts on Fire
Happy Happy Helloween
Nem mesmo o curto intervalo de 30 minutos entre Hammerfall e Helloween deixou os fãs se esquecerem de que a premissa básica daquela noite era a diversão. Enquanto aguardava e até escutava a passagem de som ser feita ali mesmo naquele período de tempo, o público foi presenteado com uma série de balões em cor alaranjada para atirar e brincar. Era necessário passar o tempo como antigamente, visto que o sinal de internet / telefone deixou de pegar lá para umas 20h.
Pontualmente às 22h, o telão reproduziu uma vinheta ao som da instrumental “Orbit” que mesclava artes inspiradas nas capas de “Keeper of the Seven Keys Part I” (1987) e “Helloween” (2021). Havia chegado a hora do show, parte da terceira turnê do grupo pelo Brasil desde as voltas de Michael Kiske (voz) e Kai Hansen (guitarra e voz). A formação é completa pelos cinco que já estavam ali desde antes da reconciliação: Andi Deris (voz), Michael Weikath (guitarra), Sascha Gerstner (guitarra), Markus Grosskopf (baixo) e Dani Löble (bateria).
Transformar o Helloween num septeto, incluindo os dois velhos integrantes sem dispensar ninguém, foi uma das tacadas mais geniais da história do heavy metal. Todo mundo saiu ganhando. Os fãs ficaram felizes. Os shows estão mais cheios. Os repertórios ganharam diversidade. As guitarras ficaram mais encorpadas. As vozes ganharam fôlego – especialmente a de Deris, que não estava em seu melhor momento nos anos finais pré-volta de Kiske.
Ao mesmo tempo, não é fácil apresentar um show desse tipo. É preciso estar afiadíssimo. Felizmente, os envolvidos estavam – e isso fica claro logo na primeira música, “Skyfall”, que parece reunir tudo o que os fãs querem ouvir de uma música do Helloween (inclusive as vozes de Michael, Andi e Kai). Curioso é que não gostei tanto da versão em estúdio, mas ao vivo a faixa funciona de modo incontestável. Seu refrão foi cantado a plenos pulmões pelo público e as demais passagens foram admiradas ou bangueadas por quem se fez presente. Já não dá mais para pensar num show do grupo sem essa longa, mas cativante canção.
Diferentemente do show do Hammerfall, o Helloween contou com telão próprio e iluminação caprichada, capaz de mudar o semblante do show rapidamente. Foi o que ocorreu na faixa seguinte, “Eagle Fly Free”, cuja performance foi embalada pela cor vermelha, além de chuva de papel picado. Ouvir Kiske cantar este clássico tão bem quanto na década de 1980 em meio a toda aquela atmosfera é um daqueles momentos para se guardar na memória pelo resto da vida. Difícil segurar a maturidade numa situação dessas (spoiler: não segurei e cantei junto com os braços abertos, como se estivesse abraçando tudo aquilo).
Se o telão do grupo – posicionado no centro do palco – ofereceu o realce necessário a diversas músicas junto à iluminação, as telas laterais, da própria casa, decepcionaram. A transmissão era toda meio congelada. Sorte que todo o Espaço Unimed dispõe de boa visão independentemente de onde você esteja, mesmo com o palco não muito alto, pois não dava para depender do que era exibido nos lados.
Comentário técnico feito, é hora de voltar ao show. “Mass Pollution”, mais uma do novo álbum, ofereceu o momento mais hard rock da noite. Aqui e em outras canções deu para ver o quanto Andi Deris está cantando bem depois de poder abdicar da responsabilidade de cantar as músicas originalmente gravadas por Michael Kiske. Os demais talentos do vocalista, como sua habilidade inata de comandar uma plateia como um típico rockstar, seguem intactos – a exemplo do momento “make some noise”, no miolo da faixa.
Como em “Eagle Fly Free”, o público veio abaixo com as seguintes “Future World”, cantada por Kiske, e “Power”, interpretada por Deris. A sexta faixa dos shows vinha sendo alterada a depender da ocasião. Enquanto “I’m Alive” apareceu durante shows na Colômbia e Ribeirão Preto e “Angels” foi apresentada no Chile, o público paulistano (e da maior parte de localidades por onde a “United Forces” passou na América do Sul) foi presenteado com “Save Us”, uma das canções mais intensas do set.
Fora do palco na música em questão, Andi Deris retorna aos gritos de “happy happy Helloween” só para fazer a devida apresentação a Kai Hansen. Citado como “o homem que começou tudo isso no ano de 1983”, o músico deixou a guitarra de lado para focar no microfone em seu aguardado medley do álbum “Walls of Jericho” (1985). Recebeu até vinheta épica orquestrada ao som da faixa-título do disco para marcar o número, que envolveu trechos das músicas “Metal Invaders”, “Victim of Fate”, “Gorgar”, “Ride the Sky” e “Heavy Metal (Is the Law)”. A penúltima mencionada foi a que mais empolgou o público, com seu refrão mais melódico em meio a versos pesadíssimos.
O pot-pourri evidencia outra questão técnica inerente à nova formação: a dificuldade de se regular o som de três guitarras que solam e são importantes o tempo todo. Houve momentos em que o som do grupo estava mais alto que o esperado, o que deixou alguns timbres mais embolados e, por vezes, suprimiu os vocais. Nada que atrapalhasse muito, mas é algo que mostra como é complicado fazer algo do tipo funcionar dentro dos conformes.
Por outro lado, sem três guitarras, dificilmente daria para fazer o número citado, já que Kai Hansen abdica da guitarra para cantar de forma mais concentrada. Além disso, tanto aqui quanto em outros momentos, Sascha Gerstner se mostra muito importante. É visivelmente a referência técnica da banda. Cuida de dedilhados, preenche o som, faz alguns dos solos mais complexos, cria dobras para dar liga quando necessário, oferece um timbre de guitarra delicioso de se ouvir… que não demitam jamais este homem.
Em um raro momento mais calmo, “Forever and One (Neverland)” é interpretada naquele mesmo formato das turnês anteriores: com Michael Kiske e Andi Deris esbanjando carisma, entrosamento e saúde vocal. A sofrência do power metal foi apresentada por Kiske naquele que foi, talvez, um de seus únicos diálogos com o público. O reservado cantor da fase mais popular do grupo lembrou que o DVD “United Alive” foi gravado parcialmente naquela mesma casa de shows e pediu que os fãs tentem reproduzir o momento que foi captado pelas câmeras, com muita interação e luzes de celular. Talvez os presentes não tenham conseguido emular todo aquele sentimento de 2017 – afinal, eram alguns dos primeiros shows da formação estendida –, mas não faltou tentativa.
Um breve solo de Sascha Gerstner para servir de descanso à máquina impiedosa chamada Dani Löble antecedeu “Best Time”, uma música que é a cara do guitarrista: feliz e triste ao mesmo tempo. Não à toa, o traz como coautor. Operou de forma inversa a “Skyfall”, a faixa do álbum homônimo funcionou muito bem na versão gravada, mas representou um ligeiro anticlímax no setlist, já que a sequência para a balada parecia pedir algo mais agitado. Ainda assim, nova performance irretocável, com as três vozes se entrelaçando bem.
Hora de colocar todo mundo para pular com “Dr. Stein”, onde fica visível o quanto os músicos têm se divertido durante esses shows. Nem precisa ser fã para achar legal demais ver aquele tanto de sorriso no palco. “How Many Tears”, que veio a seguir, foi antecedida por gritos de “olê olê olê olê” pedidos por Michael e “Kiske, Kiske” completos pelos fãs. Para evitar ciúmes, os mesmos admiradores gritaram “Deris, Deris, Deris” – que, com seu carisma que não cabe numa caixa, agradeceu com um “muito obrigado” em português. A peça power metal tocada é outra do tipo onde todos s integrantes brilham. Nos segundos finais, dá para ver Kiske girando o braço num movimento típico de Elvis Presley, seu grande ídolo no fim das contas.