A história de “Rocka Rolla”, o disco que apresentou o Judas Priest ao mundo

Gravado de madrugada e finalizado às pressas, álbum de estreia da banda sofre em razão de sérias restrições orçamentárias

“Kill ‘Em All” (Metallica), “Show No Mercy” (Slayer), “Melissa” (Mercyful Fate) e os homônimos de Black Sabbath (1970) e Iron Maiden (1980) são exemplos perfeitos de álbuns de estreia arrasadores que, passadas décadas de seus lançamentos, ainda soam incríveis e tanto despertam o fascínio quanto instigam a imitação. O mesmo não pode ser dito de “Rocka Rolla”, disco que apresentou o Judas Priest ao mundo.

Embora dotados de muita obstinação, os cinco integrantes do grupo — todos na casa dos vinte e poucos anos e três deles recém-chegados — não foram capazes de lidar com as condições adversas impostas pela gravadora. O resultado foi um trabalho que, se muito, detém o mero status de cult, pois não antecipa em praticamente nada o heavy metal pelo qual a banda ficaria conhecida e do qual se tornaria um dos principais expoentes.

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“Como Robert Plant e Ian Gillan em um só”

27 de dezembro de 1972. Na manhã seguinte de um show em Birmingham, abrindo para a banda de rock progressivo Family, o Judas Priest sofreu duas baixas. Crendo estarem dando murro em ponta de faca, o vocalista Al Atkins — já casado e pai de dois filhos — e o baterista Chris “Congo” Campbell deixaram os colegas K.K. Downing (guitarra) e Ian Hill (baixo) a ver navios, mas a deriva não durou muito tempo.

Foi Carol, então namorada de K.K., que sugeriu à dupla conhecer um tal de Rob Halford, da banda Hiroshima; por acaso, irmão de Sue, que namorava Ian. “Ele é como Robert Plant e Ian Gillan em um só”, disse Carol. Bastou isso para os dois demonstrarem interesse.

Munidos da cara e da coragem, Downing e Hill bateram à porta de Halford, que os recebeu vestindo jeans da cabeça aos pés, segurando uma gaita e cantando junto do rádio que tocava uma música da cantora Doris Day.

Na autobiografia “Confesso” (Belas Letras, 2021), Rob relembra como foi esse primeiro encontro:

“O fato é que eu já conhecia um pouco do Judas Priest. A banda existia havia uns três ou quatro anos. Eu conhecia um pouco da história da banda e que houvera altos e baixos. Cheguei até a ver um show deles, mais ou menos um ano antes. Lembro-me de pensar que eles definitivamente tinham alguma coisa diferenciada. Me parecia uma banda muito mais profissional do que o Hiroshima, que ia do nada para lugar nenhum. K.K., Ian e eu nos sentamos na sala e batemos um papo, nos demos muito bem logo de cara. Nossos gostos musicais em geral eram bem parecidos. K.K. era muito obstinado em relação ao Judas Priest, o que me agradava. Não parecia desanimado por ter perdido o vocalista, e falava em termos otimistas sobre o que ele queria que a banda conquistasse.”

Como o Judas havia perdido também o baterista, quando K.K. e Ian convidaram Rob para “fazer um som”, ele sugeriu levar seu camarada John Hinch com ele. Rapidamente, os quatro estabeleceram uma rotina de ensaios aos fins de semana e à noite durante a semana

“Quanto mais pensava em ter dois guitarristas…”

Antes mesmo de um contrato de gravação ser uma possibilidade, o Judas Priest teve a sorte de fazer uma extensa turnê pelo Reino Unido abrindo para o Budgie e para o Thin Lizzy. Os trinta e tantos shows feitos certamente deixaram a banda na ponta dos cascos.

Foi no Marquee de Londres que David Howells, dono de uma pequena gravadora independente da cidade chamada Gull, viu o grupo em ação pela primeira vez. Imediatamente arrebatado pelo som, ele começou a demonstrar interesse em oferecer o tal contrato de gravação.

A princípio, Howells tentou moldar a banda conforme as próprias preferências. Primeiro, sugeriu um saxofonista. Depois, um tecladista. Por fim, acabou sugerindo o ingrediente que faltava para a receita vitoriosa: um segundo guitarrista.

Na The Flying Hat Band, o Judas encontrou a peça faltante. Glenn Tipton não pensou duas vezes antes de aceitar o convite irrecusável de se juntar ao grupo.

Em “Heavy Duty: Minha Vida no Judas Priest” (Estética Torta, 2021), K.K. Downing atesta:

“Por mais que eu o conhecesse pouco como pessoa, sabia o suficiente sobre Glenn para reconhecer que ele era um bom músico. Mesmo então, senti que tínhamos criado nosso próprio nome. Estávamos fazendo shows, conquistando alguns novos fãs; eu sabia que seríamos uma opção atraente para qualquer músico local no momento. Além disso, quanto mais eu pensava, mais eu gostava da ideia de termos dois guitarristas. Sejamos sinceros, o timing não poderia ter sido melhor. Foi uma oportunidade fantástica para Glenn também: encontrar não apenas uma banda estabelecida, mas uma que tinha acabado de assinar com uma gravadora.”

Mas nem tudo foi um mar de rosas.

“Mesmo nas nossas primeiras interações meio desajeitadas, Glenn nunca me pareceu alguém fácil de conviver. Logo de cara tomei ciência das condições limitadas sob as quais ele operava: se você fosse se relacionar com ele, faria isso inteiramente nos termos dele.”

Apesar de o santo dos dois guitarristas não ter batido de imediato, não houve um segundo em que K.K. não reconhecesse que Glenn era um músico cujas habilidades complementariam massivamente não apenas seu próprio jeito de tocar, como também dariam uma bem-vinda versatilidade ao som da banda.

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Com Glenn a bordo, a banda pôde finalmente entrar em estúdio para gravar um álbum que, teoricamente, já estava todo composto.

“Gravávamos até o sol nascer, como vampiros”

Na segunda quinzena de junho de 1974, quando chegou a hora de entrar em estúdio e gravar o álbum, David Howells deu ao Judas Priest um adiantamento de 2 mil libras, reservou para a banda o Basing Street, estúdio na zona oeste de Londres, e arrumou também o produtor Rodger Bain, que havia produzido os três primeiros discos do Black Sabbath e os dois primeiros do Budgie – todos eles com sérias restrições orçamentárias.

Em entrevista a Martin Popoff reproduzida em “Judas Priest: Heavy Metal Painkillers” (2007), o baterista John Hinch comenta a escolha do produtor:

“Estávamos muito animados [com a escolha]. Rodger esteve em muitos ensaios em Birmingham para ajudar a dar forma às músicas, quase que como um guru. Nós gostávamos muito dele porque ele tinha uma história de sucesso com bandas como o Black Sabbath. Então sentimos que ele era o cara certo para produzir o álbum.”

O currículo de Bain intimidou, bem como o Basing Street com seu aparato que, segundo Rob Halford, “parecia a nave de Star Trek”. Mas o que mais dificultou a gravação foram outras circunstâncias desafiadoras. O vocalista comenta:

“A Gull não tinha dinheiro para pagar por sessões durante o dia, então trabalhamos à noite, começando às 20h, quando as bandas maiores, com contratos de peso, iam embora. Gravávamos até o sol nascer, como vampiros.”

Em seu livro, K.K. Downing descreve uma noite em que Bain foi vencido pelo sono:

“Durante a última sessão de gravação de 36 horas, nosso produtor apagou no sofá enquanto trabalhávamos. Pareceu ter entrado em coma. Não ouviu nada, uma nota que seja. Eu não o culpo de jeito nenhum; estávamos todos completamente destruídos.”

Deviam ser cinco ou seis da manhã quando a banda terminou e Rodger acordou. Como o tempo de estúdio havia se encerrado e o álbum precisava ser masterizado ainda, com os olhos lacrimejando de cansaço, o produtor se virou nos trinta e fez o melhor que pôde.

“Nenhuma força, nada de especial”

Obviamente, os resultados da masterização às pressas não foram a contento. Rob Halford afirma:

“Quando o ouvimos [o álbum] parecia fraco e diluído, não como o disco que achávamos que estávamos fazendo. No estúdio, fomos com tudo, comigo gritando a todo volume e com K.K. e Glenn disparando riffs como se fossem balas de metralhadoras duplas. No entanto, a produção de Rodger subtraiu essa força e deixou o som morno.”

K.K. Downing comunga da mesma opinião:

“O que mais nos irritou foi que o som do disco não se parecia em nada com o que pensávamos ter feito em estúdio. Em vez de deixar claras as nossas intenções, ‘Rocka Rolla’ infelizmente não tinha nenhuma força, nada de especial. Simplesmente não soava enérgico ou revigorante. Com isso, aprendemos uma lição crucial da indústria fonográfica: você pode estragar um bom disco se não masterizá-lo corretamente.”

Mas não foi só o som que desagradou. Aparentemente, a capa também não caiu no gosto dos integrantes do Judas Priest, como exemplificado por Halford em poucas palavras — “Uma m#rda, nada a ver com heavy metal” — e Downing em algumas mais:

“Apelo comercial sempre esteve, compreensivelmente, em primeiro lugar na mente da Gull. Era uma maneira de cobrirem suas apostas. Sei que eles viram uma oportunidade de vendas com a capa do álbum. O artista John Pasche ganhou prêmios por essa capa da qual eu, honestamente, nunca gostei muito. Acho que pensaram que haveria alguma vantagem comercial nela por causa do jogo de palavras com Coca-Cola. No fim das contas, a capa não acrescentou nenhum apelo comercial ao disco simplesmente porque, no fundo, ‘Rocka Rolla’ não era um bom álbum na forma e com o som como foi lançado.”

Nada de hinos, tampouco de rebites

Deixando de lado a opacidade resultante de correria na reta final do processo, o Judas Priest que se ouve em “Rocka Rolla” e se vê nas fotos da contracapa do LP — repare o bigode de Glenn Tipton e Rob Halford creditado como Bob Halford — está milhas e milhas distante daquele que nos anos 1980 foi o protótipo perfeito de uma banda de heavy metal, com músicas que se tornaram verdadeiros hinos do gênero e visual apelativo, repleto de couro e rebites.

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Embora soubessem estar se inserindo no mesmo clube do Black Sabbath, os cinco tinham por objetivo não soar como eles. Daí “Rocka Rolla” possuir músicas de caráter mais progressivo, como “Run of the Mill” — em cuja letra escrita por Halford um velho reflete sobre ter levado uma vida medíocre — e o medley “Winter / Deep Freeze / Winter Retreat / Cheater”, uma das três faixas escritas por Al Atkins.

A Martin Popoff, o ex-vocalista detalha suas contribuições:

“Escrevi ‘Winter’ em 1969 durante uma turnê pela Escócia, quando a primeira formação do Judas Priest ficou presa em meio a uma nevasca. Deus, estava o maior frio e nós estávamos sem um centavo. Já ‘Never Satisfied’ é sobre ganância, mudanças repentinas na vida e levanta o questionamento: ficaremos um dia satisfeitos com aquilo que temos?”

Atkins também recebe um crédito por “Caviar and Meths”, a breve instrumental que encerra o álbum. A versão completa dela, incluindo a letra que conta a história de dois amigos, um muito rico e outro muito pobre — por isso “Caviar e Metanfetaminas” —, só veria a luz do dia em 1988 em “Heavy Thoughts” do cantor.

E se parte das músicas carece de conteúdo lírico aprofundado — “One for the Road” e faixa-título, lançada como single, por exemplo —, “Dying to Meet You” trata da guerra de uma perspectiva pacifista que em pouco dialoga com a raiva, sobretudo da segunda parte, imbuída na canção; talvez o prenúncio solitário da sonoridade a ser adotada e que consagraria o grupo em trabalhos futuros.

“Só queríamos que ficasse pronto logo”

Uma resenha publicada na revista Sounds quando da chegada de “Rocka Rolla” às lojas no dia 6 de setembro de 1974 recomendava aos membros do Judas Priest: “Não larguem seus empregos regulares”. Nas palavras de Rob Halford, o álbum “se consolidou como um prego na areia”. Ele relembra:

“Demos um punhado de entrevistas que não nos ajudaram em nada. [O álbum] não chegou nem perto das paradas e [o single] praticamente não foi tocado no rádio.”

Mesmo assim, o vocalista consegue atribuir certa ternura às lembranças:

“Era empolgante ter um álbum lançado. Lembro da minha única cópia em vinil chegar pelo correio. Foi maravilhoso ver o quão orgulhosos meus pais ficaram ao segurar o disco. Eu também estava orgulhoso… mas ainda sentia que fora uma oportunidade perdida.”

A análise de K.K. Downing é razoavelmente menos emotiva:

“‘Rocka Rolla’ foi o típico primeiro álbum no que diz respeito a estar disposto a certa prostituição, já que finalmente havíamos conseguido um contrato de gravação e nos esforçado muito até o ponto em que só queríamos que a coisa ficasse pronta logo e chegasse às lojas. Se as pessoas começam a meter o bedelho ao longo do caminho por isso ou aquilo outro, você apenas concorda para fazer com que as vendas comecem o quanto antes. E é isso que eu acho que aconteceu.”

Apesar de tudo, o Judas caiu na estrada e deu o sangue, como sempre fez, começando pelo Reino Unido nos meses restantes de 1974 antes de seguir para a Holanda e para a Escandinávia no início de 1975. Ao término do giro, e na esteira de mais uma mudança na formação, a banda daria início aos trabalhos num dos maiores clássicos do heavy metal que se tem notícia.

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Marcelo Vieira
Marcelo Vieirahttp://www.marcelovieiramusic.com.br
Marcelo Vieira é jornalista graduado pelas Faculdades Integradas Hélio Alonso (FACHA), com especialização em Produção Editorial pela Universidade Estadual Paulista (UNESP). Há mais de dez anos atua no mercado editorial como editor de livros e tradutor freelancer. Escreve sobre música desde 2006, com passagens por veículos como Collector's Room, Metal Na Lata e Rock Brigade Magazine, para os quais realizou entrevistas com artistas nacionais e internacionais, cobriu shows e festivais, e resenhou centenas de álbuns, tanto clássicos como lançamentos, do rock e do metal.

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