Por que John Lennon disse que os Beatles eram mais populares que Jesus

Declaração passou despercebida na imprensa britânica, mas caiu como uma bomba no Bible Belt, região mais conservadora do sul dos Estados Unidos

A ocasião em que John Lennon disse que os Beatles são mais populares do que Jesus Cristo ficou marcada na história da banda. Embora tenha sido divulgada de forma descontextualizada, sendo esclarecida ainda naquela época, a declaração trouxe consequências para a banda – e pode ter sido decisiva até mesmo no assassinato de Lennon, em 1980.

A frase foi dita por Lennon em março de 1966, durante uma entrevista à repórter Maureen Cleave, do jornal The Evening Standard, de Londres. Cleave era uma das poucas jornalistas com acesso total aos Beatles e acabou desenvolvendo uma amizade com Lennon, que costumava se abrir mais com ela. Foi nesse contexto que o músico fez a famosa declaração, apresentada abaixo:

“O cristianismo irá acabar. Vai encolher e sumir. Eu não preciso discutir sobre isso; estou certo e serei provado certo. Somos mais populares que Jesus agora; eu não sei qual acabará antes – o rock ‘n’ roll ou o cristianismo. Jesus era bom, mas seus discípulos eram cabeças-duras e ordinários. Eles distorcem isso e é o que estraga tudo para mim.”

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Trecho do jornal London Evening Standard onde John Lennon faz sua polêmica declaração sobre Beatles e Jesus

Na época, os Beatles estavam em uma rara época de descanso e Lennon estava começando a estudar sobre religiões orientais, o que também colaborou para seu pensamento crítico em relação ao cristianismo.

A fala teve praticamente nenhuma repercussão na Inglaterra. Porém, tudo mudou quando a mesma matéria saiu na revista americana Datebook, em julho daquele ano, pouco antes de uma turnê da banda pelos Estados Unidos.

Queima de discos e críticas aos Beatles

Disparada como uma bomba em território americano, a declaração de John Lennon foi principalmente sentida no chamado “Bible Belt”, que corresponde ao sudeste do país. Ali vivem os protestantes mais ferrenhos, que começaram a fazer diversos protestos – com direito a rádios locais organizando grandes queimas de discos e materiais relacionados aos Beatles.

Era uma época complicada em solo americano. O conservadorismo da sociedade era grande, o racismo era abertamente defendido por alguns grupos e a Ku Klux Klan ainda tinha força. A famosa organização também participou de protestos contra os Beatles, fazendo ameaças por telefone e e também na TV aberta. Uma cruz com álbuns da banda foi queimada como parte das manifestações.

Ainda assim, a banda não tinha muita noção do tamanho do problema. O empresário Brian Epstein chegou a viajar para Nova York, de onde acompanhou melhor a situação, e pediu que Lennon se retratasse – o que ele se negou a fazer inicialmente.

Outro país que aproveitou para se manifestar contra os Beatles, mas dessa vez por conta da declaração de Lennon sobre Jesus Cristo, foi o Vaticano, com direito a uma nota do Papa.

Fala antirracista de Ringo Starr

Enquanto isso, os Beatles seguiam irritando os grupos conservadores até mesmo de outras formas. Na mesma revista Datebook, foi publicada uma fala antirracista do baterista Ringo Starr, dizendo.

“Segregação é uma grande bobagem. Até onde entendemos, pessoas são pessoas, sem diferenças entre si. Nós nunca tocaríamos na África do Sul se isso significasse tocar para um público segregado. Isso é uma grande porcaria.”

A citação de Ringo à África do Sul tem relação com o regime do Apartheid, que dividia a população entre negros e brancos, restringindo o acesso dos primeiros a locais e serviços, entre outros problemas. O governo local repudiou a declaração do baterista, assim como a Espanha, então governada pelo ditador fascista Francisco Franco.

O que John Lennon realmente quis dizer

No fim das contas, a situação estava ficando bem mais complicada do que John Lennon e qualquer um podia prever. Uma retratação seria necessária se a banda quisesse realizar a turnê em solo americano.

Já em solo americano, um apavorado Brian Epstein conseguiu convencer Lennon a pedir desculpas publicamente. O empresário já havia tentado explicar a fala do Beatle e estava disposto até mesmo a cancelar a turnê caso a segurança da banda não fosse garantida.

Em uma das coletivas mais estranhas que a banda deu em sua história, um John Lennon visivelmente nervoso explicou que nunca quis comparar os Beatles a Jesus Cristo. Segundo ele, a ideia por trás da declaração era de que para muitos jovens, a música era mais importante do que a religião, especialmente na Inglaterra, onde a Igreja Anglicana, estatal, estava perdendo espaço.

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“Não sou contra Deus, contra Cristo ou contra a religião. Não estava dizendo isso. Eu não disse que éramos melhores ou maiores, ou nos comparando como Jesus Cristo enquanto pessoa ou com Deus como uma coisa ou o que quer que seja. Eu estava falando com uma amiga e usei a palavra ‘Beatles’ como uma coisa remota – ‘Beatles’, como as outras pessoas nos veem. Eu disse que eles estavam tendo mais influência nos jovens e nas coisas do que qualquer outra coisa, incluindo Jesus. Eu disse dessa forma, que foi a forma errada.”

Minutos antes, nos bastidores, John havia percebido o tamanho do problema e desabou em choro, quando concordou em fazer o pedido de desculpas sob orientação de Epstein e dos outros Beatles. No entanto, o pedido oficial veio de maneira bem menos submissa, após uma nova pergunta de um repórter.

“Eu não disse o que eles disseram que eu disse. Lamento por isso – de verdade. Nunca quis que soasse como uma coisa vil e antirreligiosa. Se isso os deixa feliz, peço desculpas. Ainda não sei exatamente o que fiz. Tentei dizer a vocês o que eu fiz, mas se querem que eu peça desculpas, se isso os deixará felizes, então ok: me desculpem.”

A tensão da última turnê e a repercussão futura

Com a retratação, os protestos diminuíram nas rádios e na mídia de um modo geral. Ainda assim, conservadores ligados a grupos religiosos e à KKK continuassem tentando evitar que os shows acontecessem.

Uma das apresentações era particularmente preocupante. A cidade de Memphis, no Tennessee, terra de Elvis Presley, fica localizada diretamente no chamado Bible Belt e estava na rota da banda.

Houve tensão desde a chegada dos músicos, que foram escoltados até um ônibus para evitar os manifestantes. Eles ainda tiveram que fazer parte do trajeto agachados, com medo de um possível atirador. A morte do presidente John F. Kennedy, três anos antes, serviu como lembrança macabra para tomar as devidas precauções.

Durante o show, realizado no Mid-South Coliseum sob protestos da KKK do lado de fora, a banda ainda passou um último momento de terror: um rojão foi estourado na plateia. Os músicos chegaram a pensar que se tratava de um tiro e toda a preocupação ficou em torno de John Lennon. Felizmente, ninguém se feriu.

O problema com as turnês e as manifestações – contrárias e a favor dos Beatles – certamente contribuiu para que a banda decidisse parar de fazer shows ao vivo. Lennon era o mais preocupado e evitou turnês mesmo em carreira solo, após o fim da banda. Sua declaração é usada até hoje por fundamentalistas religiosos para atacar os músicos, especialmente após o fim trágico que ele próprio teve.

Assassinato de John Lennon

O assassinato de John Lennon, em 8 de dezembro de 1980, é tido por fanáticos como um “castigo divino” pela declaração dada 14 anos antes e tirada de contexto.

Mark David Chapman, o assassino, tornou-se um fundamentalista religioso em 1970, tempos após a declaração de Lennon. Porém, relatos apontam que ele ficou extremamente irritado quando soube da fala do músico após ter se tornado cristão.

Foi quando a obsessão por John teve início. Na época, além de definir como “blasfêmia” a declaração do artista, o assassino demonstrou incômodo com as letras das músicas solo “God” e “Imagine”, onde, de uma forma ou de outra, o Beatle questiona religiões como um todo.

No fim das contas, John Lennon só queria paz.

* Texto por André Luiz Fernandes, com pauta e edição por Igor Miranda.

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André Luiz Fernandes
André Luiz Fernandes é jornalista formado pela Universidade Metodista de São Paulo (UMESP). Interessado em música desde a infância, teve um blog sobre discos de hard rock/metal antes da graduação e é considerado o melhor baixista do prédio onde mora. Tem passagens por Ei Nerd e Estadão.

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