Como “Abbey Road” marcou o “fim” dos Beatles

Fab Four estava prestes a se separar, mas ainda arrumou forças para um álbum derradeiro que mostrava todas as suas forças

Após seis anos de sucesso comercial e criativo sem precedentes na história da música popular, os Beatles estavam no fim da corda. Conflitos internos devido ao império corporativo construído pelo quarteto minaram a relação entre os integrantes.

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Além disso, comparado ao começo, quando havia apenas John Lennon, Paul McCartney, George Harrison e Ringo Starr, agora havia esposas, namoradas e vidas completamente separadas. A maior banda de todos os tempos estava prestes a terminar.

Mesmo assim, eles arranjaram tempo de criar mais uma obra-prima. Um álbum que parece encapsular a grandeza e a intimidade, o espírito experimental e o tradicionalismo, o escrachado e o sentimental. Todas as contradições no âmago dos Beatles. Essencialmente, aquilo responsável por torná-los memoráveis.

Vamos falar de “Abbey Road”.

Beatles sob nova direção

O começo de 1969 foi tumultuado para os Beatles. O que era para ser um retorno triunfal na forma do especial de TV ao vivo “Get Back” caiu por terra durante os ensaios. Ao fim das sessões de gravação — que renderiam Let It Be (1970) —, os integrantes basicamente abandonaram o projeto. Entregaram as fitas ao engenheiro de som Glyn Johns com a instrução de tentar encontrar um álbum ali.

Naquele momento, o grupo estava ocupado com assuntos tangenciais à música. Brian Epstein havia morrido em agosto de 1967; desde então, eles estavam tomando conta dos próprios negócios. Isso não corria bem. A situação financeira da Apple Corps se encontrava em caos e era necessário alguém para botar ordem na casa.

A esse ponto de 1969, Paul McCartney se encontrava numa relação com a fotógrafa americana Linda Eastman. O pai dela, Lee Eastman, era advogado especializado em show-business nos Estados Unidos. O baixista o contratara para gerenciar suas finanças pessoais. Logo, lhe pareceu natural sugerir que o resto da banda o seguisse.

Entretanto, John, George e Ringo tinham outros planos. Os Beatles tinham certa inveja dos Rolling Stones desde 1965 devido aos acordos nos quais a banda conseguiu uma divisão consideravelmente melhor de royalties. Isso ocorreu graças ao então novo empresário deles, Allen Klein.

Conhecido anteriormente por agenciar o cantor americano Sam Cooke, Klein se embrenhou na cena britânica através de seu trabalho com o produtor Mickey Most. Isso lhe abriu portas, pelas quais negociou acordos melhores para os Animals, Kinks, Donovan, Herman’s Hermits, Pete Townshend e eventualmente os Stones. Mas ele tinha olhos para um peixe ainda maior. O empresário queria os Beatles.

No livro “A Batalha Pela Alma dos Beatles”, de Peter Doggett, o assessor de imprensa do grupo, Derek Taylor, falou:

“Eu o trouxe à Apple, mas fiz questão de alertar solenemente os Beatles quanto a ele. Eu lhes disse para pedirem opiniões, disse que ele tinha variadas reputações e que poderia arranjar a eles bons acordos financeiros, mas que talvez não fosse alguém de se levar pra casa pra conhecer sua mãe.”

Klein havia tentado contratar os Beatles para a RCA Records em 1964 com uma oferta até então sem precedentes na indústria musical, mas esbarrou em Brian Epstein. Quando o contrato entre a banda e a EMI seria renovado, o americano tentou atravessar as negociações. Entretanto, não conseguiu sequer uma reunião para fazer uma proposta. 

Após a morte de Epstein, o empresário viu sua oportunidade no horizonte e ficou à espreita. Ele começou sua aproximação com John Lennon. Os dois se deram bem de cara porque Klein também havia perdido a mãe quando jovem e demonstrava uma apreciação genuína pelo trabalho do músico. Algo que não passou batido também foi o fato de ele mostrar respeito por Yoko Ono.

George e Ringo também foram com a cara do americano. Paul virou voto vencido. Allen Klein ficaria encarregado de executar uma auditoria nas finanças da Apple Corps, enquanto Lee e John Eastman – pai e irmão de Linda, respectivamente – seriam os consultores jurídicos.

A nova direção briga

O pente fino pelos livros de contabilidade dos Beatles revelou um monte de situações nas quais a banda era prejudicada por contratos desfavoráveis Mesmo assim, dado o tamanho do sucesso do White Album (1968), nada impossível de ser renegociado. Entretanto, Klein descobriu algo que causou uma fissura na relação entre John e Paul.

Os Beatles haviam estabelecido em 1963 a editora Northern Songs para gerenciar o catálogo deles. A empresa era uma sociedade entre Lennon, McCartney, Brian Epstein e Dick James. No entanto, Paul estava secretamente comprando ações da companhia.

Em “The Beatles – A biografia”, de Bob Spitz, o ex-assistente de Brian Epstein, Peter Brown, contou sobre ser encarregado de fazer essas aquisições. Ele descreveu o confronto entre John e Paul quando foi descoberto o esquema:

“Eles se enfrentaram frente a frente no escritório e John ficou muito nervoso. Em determinado momento, pensei que fosse de fato bater em Paul, mas John conseguiu se acalmar antes de atacá-lo. ‘Você é um idiota! Finge ser um cara honesto e direito, mas não é!’.”

Os embates entre a facção Klein e a família Eastman nas reuniões de estratégia empresarial se tornaram cada vez mais ferrenhos. John não confiava mais em nada vindo de Paul, então Allen viu sua chance de minar completamente qualquer sugestão feita pelo outro lado.

Lee Eastman era o retrato do privilégio. Filho de judeus de Belarus, o advogado mudou seu nome para evitar preconceito profissional. Ele nasceu Leopold Epstein, como o falecido empresário dos Beatles. 

Durante uma reunião em Londres, John passou o tempo inteiro se referindo ao futuro sogro de Paul pelo seu sobrenome judeu. Uma provocação elaborada junto com Allen Klein. Após uma série de provocações, Lee Eastman explodiu e começou a xingar seu colega americano. Era tudo que Lennon queria para se recusar a trabalhar com ele.

Allen Klein assumiu o controle total da Apple.

“Abbey Road” — harmonias no caos

Em 12 de março, Paul e Linda se casaram em um cartório em Marylebone. Nenhum outro Beatle foi convidado. George passou o dia no escritório de Derek Taylor na Apple por causa de uma batida policial na sua casa – estavam procurando drogas.

Alguns dias depois, John e Yoko se casaram em Gibraltar. O casal não queria oficializar a união na Inglaterra por causa da ausência de privacidade. A cerimônia de Paul e Linda havia sido antecipada por rumores e cercada de fãs dos Beatles em prantos e fotógrafos. O rochedo que separa o Mediterrâneo do Atlântico foi então escolhido por ser longe o suficiente para evitar isso e não exigir residência anterior para realizar um matrimônio.

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Ainda assim, a imprensa estava lá. Eram os Beatles em 1969. Sempre haveria imprensa.

Enquanto isso, Allen Klein realizou uma limpa completa na Apple. Despesas supérfluas foram cortadas e figuras que poderiam ameaçar seu poder receberam o bilhete azul. John e Yoko estavam em Amsterdã fazendo seu ato de lua-de-mel, deitados numa cama aos olhos do mundo, pedindo paz.

A reestruturação das finanças dos Beatles logo bateu num muro fortíssimo. A banda havia feito uma oferta a Dick James para comprar a Northern Songs, mas o empresário vendeu sua participação para a ATV, fundada por Lew Grade. Sequer ofereceu ao grupo a oportunidade de cobrir o valor de 1,2 milhão de libras pago.

As negociações para atravessar essa venda só aprofundaram os conflitos entre os Beatles ainda mais. E foi nesse ambiente que eles entraram no estúdio. Ainda com o gosto ruim de “Get Back” na boca, o grupo decidiu fazer algo bom novamente.

A primeira decisão foi recrutar George Martin novamente. O produtor havia sido substituído durante as sessões de “Get Back” sem a menor cerimônia e julgava seu trabalho com os Beatles encerrado. Ao ser contatado, ficou surpreso deles ainda quererem seus serviços.

Martin aceitou produzir. Todavia, apenas se fosse como antes.

Por mais que estivessem brigando, John e Paul ainda se entendiam no estúdio. Os dois gravaram “The Ballad of John and Yoko” sozinhos em Abbey Road durante uma sessão de sete horas no dia 14 de abril de 1969. George estava nos Estados Unidos e Ringo, filmando com Peter Sellers. Lennon estava animado para gravar um álbum novo dos Beatles.

Em uma entrevista ao NME em maio de 1969, John demonstrou estar louco para trabalhar em música. Ele falou:

“Se tivesse tempo pra mim no momento, ao invés de todo esse Banco Imobiliário e assuntos financeiros da Northern Songs, acho que poderia compor 30 músicas por dia. Do jeito que está, poderia em média fazer 12 por noite. Paul também… ele está louco pra trabalhar. É algo que tá no sangue. Tenho coisas na minha cabeça agora e assim que sair daqui vou pra casa do Paul trabalhar com ele.”

A coisa na cabeça de John em particular era um embrião de “Because”. Mais cedo naquele dia, Yoko Ono estava tocando no piano a “Moonlight Sonata” de Beethoven e a melodia chamou a atenção de Lennon. Paul reconheceu também a influência de “Grapefruit”, livro escrito pela artista japonesa, na composição da letra.

E no final…

De maio a julho, os Beatles se puseram a gravar em Abbey Road as faixas básicas do álbum. Começaram com “Something”, criação de George Harrison. A beleza da obra pegou todos de surpresa, pois até então o guitarrista era visto como uma força criativa inconsistente. Entretanto, a música era inegavelmente linda.

Enquanto John tirava férias na Escócia, Paul gravou “You Never Give Your Money” e a dupla “Golden Slumbers”/”Carry That Weight”, na qual desopilou o fígado com relação às suas amarguras dos últimos meses. McCartney se inspirou em uma canção de ninar composta pelo dramaturgo Thomas Dekker, que ele descobriu através de um livro de sua meia-irmã Ruth.

Ao retornar tendo sobrevivido a um acidente de automóvel, John descobriu que George havia se demitido. Não era apenas “Something”. O guitarrista havia descoberto um novo nível de composição, demonstrado por outra contribuição ao álbum, “Here Comes the Sun”. Ele não seria mais ordenado de um lado ao outro e retornou em melhores condições.

A banda começou a trabalhar em “Come Together”, inspirada no slogan de Timothy Leary para sua campanha presidencial em 1968, que John havia transposto para uma melodia bem igual a “You Can’t Catch Me”, de Chuck Berry. Após Paul apontar a semelhança durante um ensaio, os Beatles começaram a mexer na composição, fazendo o ritmo mais devagar e suingado. O baixo se tornou o instrumento predominante, Lennon antecipava as mudanças com sons no microfone. 

Geoff Emerick revelou em “The Beatles – A Biografia” que o vocalista estava cantando “shoot me”. Contudo, a segunda palavra era sempre encoberta pela primeira nota do riff de baixo. Eram as picuinhas e passivo-agressividade aparecendo novamente.

Os Beatles estavam trabalhando em vários estúdios, mas ao contrário do “White Album”, havia comunicação constante. O projeto simplesmente era complicado e necessitava vários ambientes. Um sintetizador Moog ficava localizado numa sala, e eles se tornaram o primeiro grupo pop a usar a tecnologia: no solo de “Maxwell’s Silver Hammer”, na introdução de “Because” e na segunda parte de “I Want You (She’s So Heavy)”.

As faixas básicas ficaram prontas no começo de agosto e os integrantes logo começaram a pensar em um nome para o projeto. A primeira ideia a ganhar tração foi “Everest”, porque evocava a mesma vibe oblíqua de “Rubber Soul” (1965) e “Revolver” (1966). Quando começaram a planejar uma capa e alguém sugeriu eles escalarem a montanha e serem fotografados no cume, os Beatles resolveram evitar a fadiga.

O álbum se chamaria “Abbey Road” e eles tiraram a foto de capa no cruzamento em frente ao estúdio. Pronto. O que parecia ser o último trabalho de estúdio do grupo ganhou o nome do local no qual construíram sua carreira.

É inevitável apontar o quanto “Abbey Road” parece uma despedida. A ponto de haver até uma faixa no final chamada “The End”.

Entretanto, ela não era o fim. Os Beatles no fundo sempre foram piadistas, então fecharam o álbum com “Her Majesty”, uma canção curta em que Paul canta sobre embebedar e seduzir a rainha.

“Abbey Road”, o canto do cisne

“Abbey Road” saiu no dia 26 de setembro de 1969. Seis dias antes, John Lennon comunicou a Allen Klein e aos outros integrantes que sairia do grupo. Os Beatles não gravariam outro álbum juntos.

O lançamento, contudo, foi extremamente bem-sucedido. Quatro milhões de cópias foram vendidas nos primeiros dois meses.

“Abbey Road” permaneceu em primeiro lugar nas paradas dos dois lados do Atlântico por 11 semanas consecutivas. Até 2014, o álbum havia vendido 31 milhões de cópias no mundo todo, fazendo do disco o segundo mais vendido da carreira da banda, atrás apenas de Sgt. Pepper’s Lonely Hearts’ Club Band (1967).

Nada mal para um canto do cisne. Entretanto, assim como “The End” não fechou “Abbey Road”, esse não era exatamente o fim dos Beatles.

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Pedro Hollanda
Pedro Hollanda
Pedro Hollanda é jornalista formado pelas Faculdades Integradas Hélio Alonso e cursou Direção Cinematográfica na Escola de Cinema Darcy Ribeiro. Apaixonado por música, já editou blogs de resenhas musicais e contribuiu para sites como Rock'n'Beats e Scream & Yell.

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