Dallas Green é um de nós, tão humano quanto você, e as inquietações que o afligem são comuns a qualquer pessoa. Para reforço da tese, um breve relato: até o meio da pandemia, este escriba jamais havia ouvido falar nele, Alexisonfire ou City and Colour, ignorância superada numa tarde de limpeza caseira com o Canal Bis ligado e um episódio do Guitar Center Sessions gravado em novembro de 2013 rolando como barulho de fundo.
Eis que brotou uma transição de “As Much as I Ever Could” para “Sorrowing Man” no programa capitaneado por Nic Harcourt, maravilhosa a ponto de suspender a arrumação e gerar um “Mas o que é isso?” na cabeça. A curiosidade virou obsessão e ouvir os seus álbuns lançados virou necessidade, salvo registros ao vivo, poupados para não quebrar a magia de quando eventualmente ele viesse para cá.
Você pode questionar a relação entre o que foi assistido na TV naquela tarde com a citada humanidade do artista. Pois bem: era um misto de show com entrevista, com revelações mundanas surgindo, sendo impossível inexistir identificação. Daremos um único exemplo e pense se você conhece alguma outra pessoa da indústria do entretenimento musical que soe assim honesto:
“Tocar numa banda é a coisa mais legal do mundo, mas, como tudo, há dias bons e ruins. Em alguns dias você não quer ir trabalhar, não importando o quão legal seja o seu trabalho. Em alguns dias, não quero ir para o palco. Simplesmente não quero! E não é por causa das pessoas ou porque não ame tocar minha guitarra. Em alguns dias, apenas não quero fazê-lo. E você tem que fazer. E tem que fazer parecer que esteja interessado.”
Simplificando, sabe onde o bicho pega mesmo? Em versos como “They’re all I have” (“São tudo o que tenho”) em “Day Old Hate”. Afinal de contas, quem nunca se apegou a um sentimento ou vício como se fosse tudo que restasse? Podendo se estender ao que for, um trabalho, ou à própria música, pois às vezes é tudo que possuímos para curar agruras da alma. Ou, quem sabe, uma relação ou se sentir como se houvesse apenas uma pessoa em quem confiar e estivesse prestar a perdê-la.
E quem nunca se perdeu na vida conforme descrito em “Oh, how you have lost your way” (“Oh, como você se perdeu no caminho?”), em “Sorrowing Man”? Nesta sacada indireta, as pessoas se identificam justamente com a exposição de se despir emocionalmente registrada em estúdio e noite após noite num palco ou em entrevistas. E manter a sanidade, ainda por cima, passa a ser para poucos músicos.
Agora… aceita um alerta de spoiler? Ambas foram preteridas tanto no Rio de Janeiro, na seta (14), quanto em São Paulo, domingo (16). Foi o único pecado de um repertório que passeou por todos os sete álbuns gravados, com maior destaque para “Little Hell” (2011) e o recente “The Love Still Held Me Near” (2023), com cinco faixas de cada.
Para além do “cantinho de autoexpressão”
Programada para 20h e iniciada no Tokio Marine Hall, sem banda de abertura, com um minuto de antecedência, “Meant To Be” veio com som alto e tão cristalino quanto a voz de Dallas, ainda melhor ao vivo do que em estúdio, objetivo apontado anteriormente por ele mesmo, tão associado à cena emo/post-hardcore, devido à sua origem no Alexisonfire, mas também à música folk pelos temas acústicos. Na plateia, impressionava a imensa quantidade de casais curtindo um efeito rebote do Dia dos Namorados. Dependendo da perspectiva, quem foi sozinho pode ter se sentido como um peixe fora d’agua ou, pior: um solteiro num show do Roupa Nova em pleno mês de junho…
Ironicamente, o que nasceu como um “cantinho privado de autoexpressão” em “Sometimes” (2005), evoluiu até o álbum atual e, gradativamente, se transformou – vejam só – numa… banda! A prova? Somente três composições no bis, ao longo de duas horas e quatro minutos que voaram, foram feitas fora do formato em quinteto, sendo duas apenas com Dallas em voz e violão e uma em parceria com Matt Kelly na guitarra e, adiante, formalmente apresentado como “Matthew James Kelly”.
Ambos, aliás, possuem uma dinâmica interessante: o primeiro sempre toca violão ou guitarra; em função disso, o segundo ou vai para os teclados ou fica nas seis cordas; e nada impede que ambos formem uma parede sonora de riffs juntando forças ao também guitarrista John Sponarski, se necessário, como em “Northern Blues”, graciosamente grafada como “Northern Boots” no setlist de palco. Aliás, vá gostar de “Northern” nos batismos de músicas lá no Canadá: “Northern Blues”, “Northern Wind”, além de “The Northern”, do Alexisonfire… Enfim, a título de curiosidade, deixaremos as indicações de quem tocou qual instrumento no setlist abaixo do time inteirado pelo baixista Erik Nielsen e pelo baterista Leon Power.
A devoção dos fãs é tamanha que não faltaram gritos em demonstrações de carinho como “Dallas, eu te amo, p#rra!”, “Gostoso!”, “Delícia!” e “Lindo!”, fora um pedido que arrancou risadas de tão ousado, envolvendo partes traseiras do próprio cidadão a berrar e impublicável num site de respeito com audiência de menores de idade. Se você esteve por lá e ouviu, gargalhou!
Naturalmente, canções mais antigas sofreram leves graus de mutação ao longo dos anos, deixando de ser tocadas meticulosamente iguais aos discos, ainda que sem descaracterizá-las, tais como “We Found Each Other in the Dark”, “Little Hell” e especialmente “Hello, I’m in Delaware”. Em contrapartida, talvez ainda criando experimentações, as novas “Meant To Be”, “Underground” e “Hard, Hard Time” soaram bem similares ao material encontrado no play em divulgação.
Mais para se ver, menos para se falar
Diferentemente do Rio de Janeiro, por onde estivemos, aqui o grupo fez uso do telão de fundo atrás da bateria, mesmo de modo discreto, como ao projetar seu nome durante “Northern Blues” e “The Love Still Held Me Near”, enquanto “Meant To Be” ofereceu imagens que ainda estamos tentando decifrar do que se tratam, “Two Coins” mostrou filmagens em negativo de árvores em movimento feitas na vertical, do chão para o céu, e depois na horizontal e “Astronaut” trouxe olhares espaciais de nosso planeta e da galáxia – isso para ficamos na primeira metade do show. Outra diferença em São Paulo foi o frontman menos falante, estratégia para não estender a festa em demasia e assim incluir “The Girl”, não tocada na Cidade Maravilhosa.
Mesmo assim, houve interações impagáveis, como antes de “We Found Each Other in the Dark”, a primeira mais elaborada, já com meia hora de show: “É lindo estar de volta aqui. Desculpem-me por ter demorado tanto… Esta próxima música, para quem me entende, é sobre o momento de sermos mais simpáticos uns com os outros”. Esperando por alguma reação não obtida, ele se espantou e retomou brincando: “Talvez alguns não me entenderam. Ou talvez alguns de vocês não queiram ser mais simpáticos uns com os outros. Em todo caso, se a conhecem, quero ouvi-los cantando comigo, ok?”.
Quer mais? “Hard, Hard Time” foi contextualizada como sendo “uma música mais nova e se ela não fizer vocês sacudirem os quadris, não sei o que fazer por vocês”. Possível grande surpresa da noite, a depender do quanto você cavouca informações online, um cover de “Nutshell”, do Alice in Chains, escrita como “Nutschell” no setlist de palco, também teve explicação chegando à primeira hora de relógio: “Só quero dizer que é lindo privilégio vir a este país cantar estas músicas para vocês, ok? Vamos fazer uma música agora que é das minhas favoritas em todos os tempos, apenas não é uma das minhas canções”. E se ele já estava falando pouco, ameaçou dizer algo para anunciar “Waiting…”, mas foi interrompido por um presente arremessado por algum(a) fã: um belo quadro com seu rosto pintado!
“Hello, I’m in Delaware” foi classificada como uma música muito antiga dedicada a todos que o acompanhavam desde o comecinho. E teve espaço para: apresentar seus colegas destacando as estreias no Brasil de John e Leon, este vivendo seu primeiro Dia dos Pais (no Reino Unido, Estados Unidos e Canadá, a data festiva bateu com a do show!); e pedir por “máxima participação da plateia” nas duas últimas: “Lover Come Back” e “Sleeping Sickness”.
Amor, dança e sofrência
No mais, houve: músicas dançantes, como “Northern Blues” e “Hard, Hard Time”; outras para curtir o/a namorado(a), casos de “Living in Lightning” e “Northern Wind”; aulas perfeitas de sofrência de bom gosto em “Little Hell” e “Lover Come Back”; e odes ao amor nas formas de “The Girl” e “Bow Down To Love”, esta uma espécie de pérola escondida, como a décima primeira do CD. Acredite, ela veio para ficar, vai te conquistando aos poucos a cada audição e explode ao vivo!
Já a grata surpresa foi constatar encerramentos em que o pau comeu solto, evidenciando o aspecto de banda se divertindo em trechos que lembravam jams suficientes para deixar o povo de boca aberta, sem ter que improvisar tanto, mas gerando pura magia musical e significativo ganho de peso, como em: “Astronaut”, “Hard, Hard Time”, “Bow Down to Love” e, com o perdão do trocadilho, “Weightless”. Tendo o público nas mãos, a sensação era a de que qualquer coisa que tocassem seria bem-vinda.
Não poderíamos concluir sem deixar de informar a “inovadora” configuração reservada para a noite: toda a então área da pista da casa virou a pista premium; e a pista “comum” passou a ser localizada no setor coberto atrás da mesa de som. Será que a moda pega? Enquanto íamos embora com “Nowhere Again”, do Secret Machines, na discotecagem, pensávamos: com a popularidade só aumentando, o City and Colour foi do Cine Joia ao Tokio Marine em oito anos. Da próxima vez, para hipnotizar ainda mais pessoas feito encantadores de serpentes, quem sabe não aportam num Espaço Unimed? Quem compareceu deseja se emocionar novamente o mais breve possível. E haverá mais fãs!
*Mais fotos ao fim da página.
City and Colour — ao vivo em São Paulo
- Local: Tokio Marine Hall
- Data: 16 de junho de 2024
- Produção: T4F
Repertório:
Intro: Into Something (Can’t Shake Loose) [O. V. Wright]
01) Meant To Be
02) Living in Lightning
03) Northern Blues *
04) Thirst * / **
05) The Love Still Held Me Near * / **
06) Two Coins **
07) We Found Each Other in the Dark *
08) Weightless * / **
09) Underground * / **
10) Astronaut * / **
11) The Grand Optmist **
12) Nutshell [Alice in Chains] **
13) Little Hell
14) Waiting…
15) Hard, Hard Time
16) Hello, I’m in Delaware *
17) Bow Down to Love *
Bis:
18) Northern Wind [só Dallas Green em voz e violão]
19) The Girl [só Dallas Green em voz e violão]
20) Comin’ Home / This Could Be Anywhere in the World [Alexisonfire] [Dallas Green em voz e violão e Matt Kelly na guitarra]
21) Lover Come Back * / **
22) Sleeping Sickness
* Dallas Green na guitarra – as sem marcação são no violão
** Matt Kelly nos teclados – as sem marcação são na guitarra
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