Luto volta a virar combustível para o Foo Fighters em “But Here We Are”

Em seu álbum mais ousado desde “Wasting Light” (2011), Dave Grohl coloca para fora tudo o que sentiu ao perder o baterista Taylor Hawkins e especialmente a mãe, Virginia

Aqui estamos. Quase trinta anos depois, perdas trágicas voltam a servir de combustível para o Foo Fighters de Dave Grohl. O cara mais gente boa do rock, o labrador da música internacional, o sujeito que todo mundo (exceto o baterista William Goldsmith) adora.

É tão curioso que o sujeito boa-praça tenha feito alguns de seus melhores trabalhos durante momentos de maior instabilidade emocional. A começar pelo álbum de estreia do Foo Fighters, lançado em 1995: embora todas as músicas tenham sido compostas antes do suicídio de Kurt Cobain, em abril de 1994, o exercício de gravar tais canções em uma performance tão única – e solitária – serviu para Dave como forma de lidar com o luto.

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O disco seguinte do agora (e instável) grupo, “The Colour and the Shape” (1997), foi inspirado pelo processo em que se divorciava da fotógrafa Jennifer Youngblood. Até os momentos de ternura do registro, como “Everlong” (que referencia o romance com a vocalista do Veruca Salt, Louise Post), trazem melancolia. O terceiro álbum, “There is Nothing Left to Lose” (1999), quando Dave precisou montar ele próprio um estúdio para impedir interferência de executivos de gravadora em seu trabalho, chama-se literalmente “Não há mais nada a perder”. Em “One by One” (2002), ele quase perdeu o baterista Taylor Hawkins para uma overdose – e quase pôs fim a sua própria banda porque se divertia mais com o Queens of the Stone Age. E todos os materiais citados são ótimos.

Mesmo quando o Foo Fighters se tornou uma entidade estável, nasceram músicas como a visceral “I Should Have Known” (do álbum “Wasting Light”, de 2001), parcialmente inspirada pela ainda atormentadora perda de Kurt Cobain, ou “Waiting on a War” (do disco “Medicine at Midnight”, de 2021), sobre literalmente passar a vida esperando que uma guerra acabe com todos nós. Sofrimento é combustível artístico para Grohl há muito tempo.

Duas perdas irreparáveis

É seguro dizer, porém, que David Eric Grohl nunca passou por perdas tão traumáticas como as de 2022. Todos sabem o que aconteceu em março: dias antes de se apresentar com o Foo Fighters no Brasil, Taylor Hawkins morreu, aos 50 anos, em um hotel na Colômbia; a causa não foi divulgada, mas exames encontraram substâncias indo de THC (maconha) a opioides em seu sangue e seu coração estava com o dobro do tamanho normal. E até pouco tempo atrás ninguém sabia o que havia acontecido em julho: Virginia, mãe de Dave, faleceu aos 84 anos.

Em quatro meses, o frontman do Foo Fighters perdeu aquelas que muito provavelmente foram as duas pessoas mais importantes de sua vida. Virginia, professora de inglês por boa parte da vida, criou os dois filhos (Dave e a irmã dele, Lisa) sozinha após se separar do pai das então crianças, James. Foi a primeira pessoa a enxergar o potencial artístico de seu caçula, permitindo que ele abandonasse a escola para correr atrás de um sonho que, anos depois, o levou a Taylor, frequentemente citado pelo parceiro de banda como seu “melhor amigo” e, entre outros clichês fraternos, o “irmão de outra mãe”.

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Como lidar com perdas tão grandes em um período curtíssimo de tempo? Bem, a história de fundação do Foo Fighters mostra o caminho. Grohl o seguiu, ainda que de outra forma: se o álbum de 1995 não lida diretamente com a morte de Kurt Cobain (apesar de tantas especulações e até críticas ao trabalho na época), “But Here We Are” referencia os falecimentos de Taylor e – especialmente – Virginia o tempo todo. Ainda bem que, desta vez, Dave e sua banda são entidades fortes a ponto de ninguém se arriscar a criticar essa iniciativa.

Colocando para fora

Ninguém é capaz de negar o quão terapêutico é colocar suas angústias para fora. Desde que não faça mal a ninguém, não importa o jeito. E uma das formas mais belas é por intermédio da música.

Cada faixa de “But Here We Are”, gravado com Dave Grohl também na bateria e produzido por Greg Kurstin (o mesmo dos dois últimos trabalhos), aborda a morte de uma forma diferente. A sensação imediata da perda, reflexões sobre o luto prolongado, considerações a respeito de como a vida será daqui para frente, decisão de seguir adiante, momentos em que lembranças são revividas. Está tudo aqui, em uma jornada de 10 passos.

A abertura “Rescued” traz a mencionada sensação imediata da perda. É como se Dave traduzisse em música tudo pelo o que passou ao descobrir, imediatamente, ambos os falecimentos. Isso gerou uma canção tipicamente Foo Fighters, com potencial para fazer parte do aclamado “Wasting Light” e virar clássica, mas ao mesmo tempo intrigante por seu andamento, especialmente no final, ter momentos de luz em meio à escuridão. Não pela letra, mas pela forma calorosa como a melodia se desenvolve no caos dos segundos finais.

Em “Under You”, o recado é claro: “não há como superar isso”. Com versos que parecem referenciar mais Taylor, a canção traz uma melancolia tão característica da era “The Colour and the Shape” que até preenche uma saudade que tantos fãs tinham daquele som, raras vezes emulado nos trabalhos do grupo no século 21. Por falar em saudade, “Hearing Voices” explora esse sentimento na letra enquanto mergulha numa influência ligeiramente gótica, quase inclinada ao The Cure. Quem diria: algo soando fresco e inédito em um disco que tinha todas as razões para transitar apenas em território conhecido.

Na faixa-título “But Here We Are”, começa-se a cair na real: “te dei meu coração, mas aqui estamos”. A vida continua. E é quase poética essa percepção na música onde o conjunto melhor funciona. As guitarras afiadas de Chris Shiflett e Pat Smear, o baixo onipresente de Nate Mendel, uma das linhas de bateria mais dinâmicas do próprio Dave Grohl por aqui… este é um álbum do Foo Fighters, afinal de contas. Por outro lado, é claro que o protagonista assume os holofotes muitas vezes – como na linda balada “The Glass”, que bombaria no “Disk MTV” se saísse duas décadas atrás até por soar também como uma canção de amor, a depender da interpretação.

Um respiro antes do profundo mergulho

Com reflexões sobre continuar mesmo após tanta tragédia, a despojada “Nothing at All” pode até parecer um pouco deslocada, já que se encaixaria melhor no álbum anterior “Medicine at Midnight”. Contudo, é bem-sucedida ao oferecer respiro antes da densa segunda metade do trabalho – iniciada com “Show Me How”, cujos versos a respeito da mortalidade são entoados calmamente por Dave com a filha, Violet, sob um instrumental tão inspirado pelo shoegaze que cada poro de arranjo grita “My Bloody Valentine!”.

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Os vocais de “Beyond Me” são literalmente sussurrados em seu início, guiado por piano – algo raro no catálogo do Foo Fighters, tão notório pelas guitarras. Outra balada encantadora, que, como na faixa anterior e nas seguintes, parece falar mais de Virginia. “The Teacher”, aliás, não deixa dúvidas: a “professora” é referenciada já no título daquela que agora ostenta o título de canção mais longa da carreira da banda. Com direito a quarteto de cordas ao fundo em algumas passagens, a composição tem sua beleza e até funciona no contexto do disco, mas os 10 minutos de duração não se justificam.

“Rest”, outra música que se encaixa apenas na audição integral do álbum, conclui a tracklist com um recado ainda mais claro: cicatrizes permanecem mesmo após o período de luto, mas conforta pensar que o ente querido está, enfim, descansando após tanto sofrimento. Surpreende, ainda, como esta faixa soa bem mesmo parecendo-se com uma demo, seja na primeira metade como canção de ninar, seja no restante na maior pegada “banda de garagem usando o software Audacity para se autoproduzir”.

Aqui continuamos

Considerada a peculiaridade de “But Here We Are”, fica difícil fazer qualquer comparativo em meio à cada vez mais longa discografia do grupo. É, porém, um álbum nitidamente mais ousado do que seus três antecessores – em que pese a falta de profundidade exigida em certos momentos. Além disso, traz um número mais alto de músicas individualmente fortes – as seis primeiras têm potencial para serem mantidas nos shows mesmo após a turnê atual.

Acima de tudo, “But Here We Are” é mais uma prova de que o Foo Fighters consegue marchar adiante mesmo enfrentando as mais pesadas adversidades. Se o trágico serve de combustível para a processo criativo, a vontade de viver e celebrar provavelmente guiará a banda, agora com Josh Freese na bateria, ao longo de seus compromissos na estrada – incluindo uma parada no Brasil para shows em São Paulo (The Town) e Curitiba. Aqui estamos e aqui continuamos.

Ouça “But Here We Are” a seguir, via Spotify, ou clique aqui para conferir em outras plataformas digitais.

O álbum está na playlist de lançamentos do site, atualizada semanalmente com as melhores novidades do rock e metal. Siga e dê o play!

Foo Fighters – “But Here We Are”

  1. Rescued
  2. Under You
  3. Hearing Voices
  4. But Here We Are
  5. The Glass
  6. Nothing At All
  7. Show Me How
  8. Beyond Me
  9. The Teacher
  10. Rest

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Igor Miranda
Igor Miranda é jornalista formado pela Universidade Federal de Uberlândia (UFU), com pós-graduação em Jornalismo Digital. Escreve sobre música desde 2007. Além de editar este site, é colaborador da Rolling Stone Brasil. Trabalhou para veículos como Whiplash.Net, portal Cifras, revista Guitarload, jornal Correio de Uberlândia, entre outros. Instagram, Twitter e Facebook: @igormirandasite.

3 COMENTÁRIOS

  1. É isso mesmo, mas vamos colocar as cartas na mesa – esse prog não é o estilo deles e não sei se foi realmente tão bom… não estao acostumados nesse estilo. Além disso, Chris Shiflett teve todas as oportunidades possíveis ao longo da album pra sair da sombra do Dave, mas fez questao de ficar lá. Acrescentando isso, de resto, eu concordo com o que voce comentou. Ah, e ainda não consigo entender o por que da incrivel qualidade do Concrete and Gold ser extremamente ignorada por todo mundo nesse comentário de que “o BHWA foi o melhor album nos últimos XX anos, indo até o wasting light” (pra mim é um crime dizer que But here we Are é melhor que C&G) – esse album tá envelhecendo e vem ficando cada vez melhor

    • Pior que eu não ignoro o “Concrete and Gold”. Só considero o trabalho mais fraco do Foo Fighters. Em meu gosto, claro. Nunca curti, achei talvez o ponto mais baixo da banda criativamente. Mas entendo quem curta e mesmo eu achando isso do disco, tem músicas ali no meio que eu gosto.

      Ainda assim, observe o cuidado: eu não disse que “But Here We Are” é o melhor desde “Wasting Light”. Disse que é o mais ousado. São coisas diferentes.

  2. Parabéns pelo texto e análise. Com certeza esse álbum ficou inesperadamente bom. A imersão das músicas como um todo acho que casaram muito bem, me pareceram músicas mais trabalhadas na produção e mais focadas no conjunto final da obra, tentando buscar sensações em (quase) todas as passagens e tentando dar visibilidade a todos os instrumentos. As linhas de baixo estão mais presentes e melódicas e talvez seja a primeira vez que o Hafi tem presença mais real nas músicas.
    Me parece que eles quiseram honrar o gosto diversificado e amplo pela música que o Taylor tinha.

    Mas afinal, só estou publicando comentário aqui pq ao ler o parágrafo abaixo me deu uma sensação forte. Não sou músico, mas aprecio música desde sempre e ela sempre foi muito importante em todas as fases da minha vida. Também sou fã de livros e da escrita, e há tempos que não lia algo na internet que desse uma certa revirada nas estranhas, como esse parágrafo o fez:
    “Ninguém é capaz de negar o quão terapêutico é colocar suas angústias para fora. Desde que não faça mal a ninguém, não importa o jeito. E uma das formas mais belas é por intermédio da música.”

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