O delírio americano de David Bowie em “Aladdin Sane”, seu disco mais icônico

Álbum que o alçou ao estrelato surgiu na estrada e desnudou artista atormentado pela aura decadente dos EUA; dicotomia levou à morte do alter ego Ziggy Stardust

Ao longo de quase cinco décadas de carreira, David Bowie inventou e reinventou a roda que movia sua arte diversas vezes. Naturalmente, especular sobre o maior ou melhor trabalho do músico britânico se torna um exercício de subjetividade. No entanto, parece plausível – e até um consenso – apontar “Aladdin Sane” como a mais icônica de suas obras, pois foi a que o alçou ao estrelato dos dois lados do Atlântico.

Lançado em abril de 1973, o sexto álbum de Bowie retratou com exatidão e fidelidade a figura andrógina que se erguia imponente sobre a cultura pop. Desde a arte de capa, feita à sua imagem e semelhança, tornando-se quase um sinônimo visual do artista, até a sonoridade mais urgente e assertiva, estrategicamente americanizada.

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Foi o disco que cristalizou o mito, numa fase em que ele ainda se atrelou a outros dois clássicos: coproduziu “Transformer”, de Lou Reed, e mixou “Raw Power”, dos Stooges.

Pouco antes, “The Rise and Fall of Ziggy Stardust and the Spiders from Mars” (1972) já havia sido um salto de notoriedade para David Robert Jones, sobretudo na Inglaterra. Mas o David Bowie globalizado, para o bem e para o mal, nasce com “Aladdin Sane”.

“Ziggy Goes to Washington”

“Aladdin Sane” foi praticamente todo escrito enquanto David Bowie estava em turnê pelos Estados Unidos, no fim de 1972. Apesar de o antecessor, “Ziggy Stardust…”, não ter sido nenhum fenônemo nas paradas americanas (estacionou na 75ª posição), possibilitou uma extensa agenda de shows pelo país, e foi nesse período que Bowie compôs o novo álbum, impactado por tudo que via e ouvia.

Cruzando os EUA de ônibus, de costa a costa, ele se deparou com as entranhas da vida na estrada: drogas, sexo, violência, doença. Um retrato da decadência urbana das grandes cidades, algo que se tornaria uma constante em sua obra a partir de então.

Para o biógrafo Christopher Sandford, “Bowie estava simultaneamente chocado e obcecado pela América”, e esse é o panorama central de “Aladdin Sane”.

Tal dicotomia, de prazer e angústia com o novo ambiente que o cercava, se refletiu na música e foi descrita pelo próprio Bowie ao autor Nicholas Pegg:

“‘Aladdin Sane’ era minha ideia de rock’n’roll na América. Lá estava eu naquele grande circuito turístico, não gostando muito. Então, inevitavelmente, minha escrita refletia isso – esse tipo de esquizofrenia pela qual eu estava passando. Querendo estar no palco tocando minhas músicas, mas, por outro lado, não querendo realmente estar naqueles ônibus com todas aquelas pessoas estranhas. Sendo basicamente uma pessoa quieta, era difícil chegar a um acordo. Então, ‘Aladdin Sane’ estava dividido ao meio.”

É nessa época que Bowie mergulha de cabeça na cocaína. O alter ego Ziggy Stardust, um rock star alienígena enviado à Terra com uma mensagem de paz e esperança, seria aniquilado em julho de 1973, no palco do Hammersmith Odeon, em Londres.

Como um rito de passagem, a morte de Ziggy deu lugar a uma nova persona, Aladdin Sane, cujo trocadilho no nome (A Lad Insane, ou “um cara insano”) denuncia uma faceta muito mais mundana, junkie e negativista. Da socidade e do próprio Bowie.

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A Rob Sheffield, da Rolling Stone, ele explicou a metamorfose:

“Houve um ponto em 1973 em que eu sabia que tudo estava acabado. Eu não queria ficar preso a esse personagem de Ziggy por toda a minha vida. Acho que o que eu fiz em ‘Aladdin Sane’ foi tentar dar o próximo passo – mas usando uma imitação bastante pálida de Ziggy, como um dispositivo secundário. Na minha cabeça, era: Ziggy vai para Washington. Ziggy sob a influência americana.

Beleza e sujidade

Uma das proezas de David Bowie em “Aladdin Sane” foi sacar um som ríspido, cortante, sem perder a classe, num embate sofisticado entre tensão e melodias suaves. Concebidas na estrada e sem muito tempo para reparos, as músicas soam menos lapidadas, no que talvez seja seu disco mais “rocker”.

Inclusive, foi o último com sua backing band, The Spiders from Mars, ainda completa: Mick Ronson (guitarra), Trevor Bolder (baixo) e Mick “Woody” Woodmansey (bateria).

Esteticamente, há uma certa sujeira tanto na mensagem (semântica) quanto na estrutura (sintaxe) das composições, o que o permite transitar com desenvoltura entre o rock clássico, o glam e o protopunk. “Watch That Man” é a materialização disso, como num amálgama entre Rolling Stones e New York Dolls.

Ken Scott, ex-engenheiro de som dos Beatles e responsável por dividir a produção do disco com Bowie, contou a Nicholas Pegg:

“Queríamos fazer um disco mais áspero. ‘Ziggy…’ era rock ‘n roll, mas um rock’n roll polido. Bowie queria que algumas faixas de ‘Aladdin Sane’ fossem como Rolling Stones e o rock não polido.”

Ainda nesse espectro, se encaixam “Panic in Detroit”, sobre os tumultos de 1967 em tal cidade, e “Cracked Actor”, uma fábula sobre ascensão e queda artística na Sunset Boulevard, em Los Angeles. Dois exemplos de como o cantor/compositor britânico se deu tão bem com sujeitos como Iggy Pop. Posicionadas no miolo do tracklist, elas formam, juntamente com “Drive-In Saturday” e “Time”, a porção mais genial do álbum.

“The Jean Genie”, baseada no riff de “I’m a Man”, um blues original de Bo Diddley e também gravado posteriormente pelos Yardbirds, foi o primeiro single. “The Prettiest Star” e o cover de “Let’s Spend the Night Together”, dos Stones, pouco agregam.

Já os momentos experimentais ficam por conta da faixa-título, com um solo marcante do pianista Mike Garson, incentivado por Bowie a arriscar algo jazzístico, e em “Lady Grinning Soul”, que encerra o trabalho com ares inusitados (guitarra flamenca, piano latino), incluindo vocais à la David Byron e um clima meio Uriah Heep.

No encarte, havia a indicação do local em que cada música foi escrita, deixando explícito o impacto criativo dos EUA em Bowie naquele momento: “Watch That Man” (Nova York), “Cracked Actor” (Los Angeles), “Drive-In Saturday” (Seattle e Phoenix), “Panic in Detroit” (Detroit), “Time” (New Orleans), “Aladdin Sane” (RHMS Ellinis, o navio que o levou de volta à Inglaterra), “Lady Grinning Soul” (Londres) etc.

As gravações de “Aladdin Sane” se deram no RCA Studios, em Nova York, e no Trident Studios, em Londres. Quando lançado, o álbum já havia vendido 100 mil cópias de forma antecipada e levou Bowie pela primeira vez ao topo das paradas no Reino Unido; nos Estados Unidos, ele chegou à 17ª posição, seu melhor desempenho até então.

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“A Monalisa das capas”

James Perone, autor do livro “The Words and Music of David Bowie”, considera que “Aladdin Sane” é um grande tratado sobre “o conceito e a definição de sanidade”. E que o tema já começa a ser abordado na capa, uma das mais emblemáticas da história.

A foto foi tirada em estúdio pelo fotógrafo Brian Duffy e mostra Bowie despido, com os olhos fechados. Um raio vermelho e azul divide seu rosto em dois. Uma espécie de lágrima escorre não pela face do ser esquizoide, mas por sua clavícula.

Algumas interpretações apontam que a imagem representa a dupla personalidade do alter ego Aladdin Sane e os sentimentos mistos de Bowie sobre a turnê e o estrelato. Além de ser uma alegoria à esquizofrenia, transtorno diagnosticado em seu irmão Terry, que suicidou em 1985, e algo que sempre despertou pavor e fascínio no artista.

Mick McCann, jornalista do The Guardian, elegeu a arte de “Aladdin Sane” como “A Monalisa das capas de disco”. Henry Edwards, do The New York Times, a descreveu como “a representação mais astuta deste compositor/intérprete inglês de 25 anos com rosto de anjo: um espírito desencarnado da Era Espacial.”

Na parte interna do álbum, um novo retrato envolto em mistério trazia Bowie, desta vez de corpo inteiro, altivo e com olhos abertos. Bobby Gillespie, líder do Primal Scream e ex-The Jesus and Mary Chain, contou em sua biografia, “O Garoto do Cortiço”, sobre o choque e o poder simbólico dessa imagem em 1973:

“Era uma foto manipulada de Bowie nu na parte interna da capa dupla, parecendo um sátiro, metade homem, metade besta, de sexo indeterminado. Uma imagem totalmente acachapante (…) Eu não sabia o que era sexo, para ser sincero, mas a combinação desse ser parte homem, parte mulher e parte criatura espacial mítica fazendo referência a insanidade e sexo me infectou com uma curiosidade cultural. (…) Inspirou minha geração a desafiar as limitações da masculinidade, da feminilidade e do gênero.”

A capa de “Aladdin Sane”, bem como o álbum em si, se tornaria marca definidora do glam rock e, ao longo do tempo, passaria a se confundir com a própria imagem de seu criador, David Bowie. Não é raro ver o artista representado justamente por essa foto em objetos, locais e situações diversas, vide as plataformas de streaming.

David Bowie – “Aladdin Sane”

  • Lançado em 13 de abril de 1973 pela RCA
  • Produzido por Ken Scott e David Bowie

Faixas:

  1. Watch That Man
  2. Aladdin Sane (1913–1938–197?)
  3. Drive-In Saturday
  4. Panic in Detroit
  5. Cracked Actor
  6. Time
  7. The Prettiest Star
  8. Let’s Spend the Night Together (cover dos Rolling Stones)
  9. The Jean Genie
  10. Lady Grinning Soul

Músicos:

  • David Bowie (vocais, guitarra, gaita, saxofone, sintetizador, mellotron)
  • Mick Ronson (guitarra, piano, backing vocals)
  • Trevor Bolder (baixo)
  • Mick “Woody” Woodmansey (bateria)
  • Mike Garson (piano)
  • Ken Fordham (saxofone)
  • Brian “Bux” Wilshaw (saxofone, flautas)
  • Juanita “Honey” Franklin (backing vocals)
  • Linda Lewis (backing vocals)
  • GA MacCormack (backing vocals)

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Guilherme Gonçalves
Guilherme Gonçalves
Guilherme Gonçalves é jornalista formado pela Universidade Federal de Goiás (UFG). É repórter do Globo Esporte e atua no jornalismo esportivo desde 2008. Colecionador de discos e melômano, também escreve sobre música e já colaborou para veículos como Collectors Room e Rock Brigade. Atualmente revisa livros da editora Estética Torta e é editor do Morbus Zine, dedicado ao death metal e grindcore.

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