Quando os Stooges ganharam o toque de David Bowie em “Raw Power”

Iggy Pop e cia tiveram uma última chance de fazer sucesso graças a seu maior fã - e acabaram inventando o punk

Os Stooges não eram muito bem o ideal platônico do rock. Eram mais como o ideal profano. Uma bola implacável de impulsos apresentados a partir de música quase neandertal em sua sensibilidade.

A banda de Detroit era punk antes do movimento sequer ser uma opção no horizonte. Odiado por grande parte da crítica e ignorados pela gravadora, o grupo chegou a terminar em 1971 quando seus integrantes se afundaram em drogas para afogar as mágoas de serem largados pela Elektra Records.

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Contudo, um fã viu uma oportunidade de ajudar um de seus ídolos.

Essa é a história de como os Stooges retornaram com a ajuda de David Bowie.

Rock das cavernas

Liderados por James Newell Osterberg Jr. – conhecido por quase todo fã de rock pela alcunha Iggy Pop –, os Stooges tiveram uma origem generosamente categorizada como avant-garde.

O cantor era acompanhado por três delinquentes que mal sabiam tocar seus instrumentos – Ron Asheton na guitarra, Dave Alexander no baixo e Scott Asheton na bateria – e fazia experimentos sonoros com eletrodomésticos e feedback de microfone. Enquanto isso, o resto da banda martelava um ou dois acordes.

Aos poucos, assim como neandertais descobrindo ferramentas, os Stooges foram desenvolvendo canções e uma identidade da banda. Iggy desenvolveu uma persona imprevisível no palco, inspirado em parte em memórias de assistir palhaços na TV quando criança. 

Outra figura televisiva influente na abordagem do cantor foi o comediante Soupy Sales, como ele conta no documentário “Gimme Danger: The Story of the Stooges”, dirigido por Jim Jarmusch:

“Ele encorajava crianças a escrever pra ele. Mas ele dizia: ‘Quando você escrever a carta, 25 palavras ou menos’. Isso sempre ficou comigo, e quando quis começar a escrever canções pro nosso grupo, esse é um caminho bom. Tentar usar 25 palavras diferentes ou menos. Eu não achava que era Bob Dylan… blá blá blá… Deixe bem curto e nada será a coisa errada.”

Os Stooges rapidamente foram abraçados pelo principal grupo de Detroit da época, o MC5. Tanto que quando um representante da Elektra Records foi para a cidade na esperança de assinar o quinteto, o guitarrista Wayne Kramer recomendou que contratassem a banda irmã.

Foram dois álbuns de Iggy e cia. pela Elektra, “The Stooges” (1969) e “Fun House” (1970). Venderam quase nada e a crítica especializada da época os odiou. Citavam o niilismo do som e letras como um obstáculo para que pessoas gostassem deles.

Uma exceção, contudo, era o lendário Lester Bangs. Para a Creem Magazine, o jornalista mencionou o niilismo justamente como um atrativo de “Fun House”.

“Como a maioria dos autênticos originais, os Stooges aguentaram uma dose cavalar de abuso, insultos, condescendência crítica e até mesmo hostilidade aberta…. À primeira vista, a música deles parece tão simples que qualquer um com treinamento rudimentar conseguiria tocar (o fato de tão poucos conseguirem criar uma fac símile razoável, independente das habilidades, ninguém fala). Enquanto críticos se esbaldam creditando a John Cale o sucesso de seu primeiro disco (como eu fiz) e os relegando ao status de nada mais que um fenômeno adolescente semi-humorístico, música tema para estudantes colegiais pirando com comunismo e puberdade e fantasias de apocalipses niilistas, a maioria do público parece vê-los com despeito… Quem precisa de canções assim, que passam vibes ruins?”

Nas mãos da Elektra

Antes de serem largados pela Elektra, os Stooges sofreram uma baixa quando Dave Alexander foi expulso devido ao seu alcoolismo. Ele foi substituído pelos roadies Zeke Zettner e Jimmy Recca durante a turnê de “Fun House”. Eventualmente, a banda também incorporou um segundo guitarrista à formação, com o amigo de infância dos Ashetons, James Williamson.

A nova formação já havia começado a trabalhar nas músicas do que viria a ser o terceiro álbum da banda, “Raw Power”. Nessa época, o empresário Jim Silver havia largado de mão deles, forçando Danny Fields, quem os havia assinado para a Elektra, a assumir a posição.

Ao ouvir o novo material, Fields ficou empolgado, como contou no livro “Mate-me por favor: A história sem censura do punk”, de Legs McNeil e Gillian McCain:

“Eu trabalhava com eles à distância, já que estava trabalhando pra Atlantic Records em Nova York. Os Stooges tinham as canções prontas pro seu próximo álbum – que viria a ser ‘Raw Power’ – e eu adorei. Fiquei todo empolgado. Então liguei para Bill Harvey, o executivo da Elektra que tinha me despedido – a gente continuava se odiando, mas eu ainda tinha que ter um relacionamento com ele, uma vez que os Stooges ainda eram contratados pelo selo dele –, e disse: ‘é hora de retomar a opção.”

A opção em questão era referente ao contrato. Os Stooges tecnicamente haviam cumprido sua obrigação junto à Elektra graças aos dois discos lançados. Agora a gravadora tinha a escolha de trabalhar com eles ou não nesse terceiro álbum.

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Bill Harvey foi com Danny Fields para a casa onde os integrantes moravam em Ann Arbor, um subúrbio de Detroit, escutar o material. Banda e empresário estavam empolgados, cientes da força das novas canções.

Após a sessão, Fields retornou com Harvey ao hotel onde estavam hospedados. Quando perguntou ao representante da Elektra o que achou, a resposta foi desoladora, como contou em “Mate-me por favor: A história sem censura do punk”:

“Francamente, não ouvi coisa nenhuma.”

Os Stooges foram largados pela Elektra.

Iggy Pop aproveitou esse baque para tratar seu vício de heroína, conseguindo metadona através de um farmacêutico amigo de seus pais. Aos poucos, o cantor foi se recuperando, a ponto de poder passar alguns dias sem precisar tomar o remédio para abstinência.

Ele aproveitou para passar um tempo em Nova York com Danny Fields.

Um encontro “fortuito”

Nessa época, David Bowie estava em Nova York para assinar com a RCA e queria conhecer seus ídolos, Lou Reed e Iggy Pop. Em “Mate-me por favor: A história sem censura do punk”, Danny Fields contou como fez um desses encontros acontecer:

“Lisa Robinson ligou do Max’s [Kansas City, bar famoso em NY] uma noite. Ela estava lá com David Bowie, e David queria conhecer Iggy. Por acaso, Iggy estava vendo TV na minha casa, então eu disse: ‘você tem que ser legal com ele, ele te citou na Melody Maker, numa lista dos cantores novos favoritos dele’. Fiquei espantado por alguém ter ouvido falar de Iggy na Inglaterra. Então eu disse: ‘Seja legal com esse tal de David Bowie. Além do mais, ele é bonito e quero conhecê-lo. Então vamos nessa’.”

Imediatamente os dois ficaram amigos. Houve um entendimento estabelecido entre ambos e o empresário de Bowie, Tony Defries, que o americano iria para Londres gravar algo, como Iggy contou no documentário “Gimme Danger: The Story of the Stooges”:

“Eles tinham, de algum jeito, me assinado para algo, e graças a isso fecharam um acordo onde recebiam dinheiro da Columbia pelos meus serviços. Tipo aquela mulher Pebbles, que assinou o TLC, ou Lou Pearlman com a boy band *NSYNC. Era um daqueles contratos, demandas de trabalho insanas, divisão de dinheiro ridículas. Eu não entendia direito quem era dono de quê, com quem eu estava assinado. Eu estava no mundo cruel agora. Não era mais um comunista adolescente.”

Em uma tentativa de ter alguém do seu lado e manter suas origens sonoras, Iggy exigiu levar para a Inglaterra com ele James Williamson, que o havia impressionado por ser mais habilidoso na guitarra que Ron Asheton. Na época em que a dupla fez a viagem, David Bowie estava trabalhando na produção do segundo disco solo de Lou Reed, “Transformer”. Então, parecia haver um plano de uma invasão americana com o aval do astro inglês.

Parte dessa ideia incluía cercar Pop e Williamson de músicos profissionais ingleses. Contudo, nenhum dos nomes sugeridos agradavam os americanos, que eventualmente convenceram Bowie e Defries a importar os irmãos Asheton para o Reino Unido.

Murro no ouvido

Em “Gimme Danger: The Story of the Stooges”, Iggy falou sobre o início dos trabalhos da versão 2.0 da banda na Inglaterra:

“Nós tínhamos uma visão. Começamos a ensaiar mesmo num porão imundo e começamos a ficar afiados. As composições ainda não estavam lá, mas os grooves, a força, estavam. Algumas das canções que a gente já havia composto eram ‘I Got a Right’, ‘Gimme Some Skin’, ‘Tight Pants’ – que apareceu como ‘Shake Appeal’ em ‘Raw Power’. Fizemos umas sessões demo num estúdio de oito faixas chamado RG Jones em Wimbledon. Essas demos ficaram boas. Depois a gente fez umas sessões mais formais no Olympic Studios com Keith Harwood, que era o engenheiro dos Rolling Stones na época. Daí que saiu a gravação de ‘I Got a Right’ que ficou popular. Rápida como um raio e chuta que nem uma mula.”

Sobre as sessões de “Raw Power”, James Williamson falou em “Gimme Danger: The Story of the Stooges”:

“Foi nosso melhor esforço para fazer um disco de sucesso. A gente queria fazer um disco de qualidade. Mas o negócio sobre a gente é que nós somos tão iludidos quanto ao que é popular de verdade, porque as únicas coisas com que nos importávamos eram as que a gente gostava.”

À medida que o segundo semestre de 1972 foi andando e “Ziggy Stardust”, álbum de David Bowie, foi se tornando aos poucos um fenômeno, os Stooges foram deixados sem supervisão no estúdio. Saiu, então, a segunda leva de músicas para “Raw Power”.

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Foi nesse período que saiu a canção mais conhecida do disco: “Search and Destroy”, imortalizada numa cena de “Quase Famosos” na qual Lester Bangs – interpretado por Phillip Seymour Hoffman – interrompe uma entrevista de rádio para tocar a música.

Entretanto, quando chegou a hora de entregar o álbum, a mixagem estéreo feita por Iggy concentrou todos os instrumentos em um lado e os vocais do outro. A companhia de Defries, chamada MainMan, encontrou com os Stooges a solução: Bowie remixaria o disco.

Em uma entrevista à International Musician em 1991, Bowie contou sobre a experiência:

“Iggy queria que eu mixasse ‘Raw Power’, então ele trouxe a fita de 24 faixas pra mim e armou tudo. Ele tinha a banda em uma faixa, a guitarra lead em outra e ele numa terceira. De 24 faixas, só usaram três. Ele disse: ‘vê o que dá para fazer com isso’. Eu disse: ‘Jim, tem nada para mixar’. Então acabamos aumentando e diminuindo os vocais um montão. Em pelo menos quatro ou cinco canções foi assim, incluindo ‘Search and Destroy’. O som dessa é tão peculiar porque tudo que fizemos foi ocasionalmente aumentar a guitarra principal ou tirá-la completamente.”

Contudo, a versão de Bowie sobre o uso das faixas é desmentida pelo documentário “Search and Destroy: Iggy & The Stooges’ Raw Power”, dirigido por Morgan Neville. Em um clipe disponível no YouTube, dá para ver e ouvir faixas isoladas dos instrumentos do disco.

Sucesso, não: legado

“Raw Power” saiu dia 7 de fevereiro de 1973, creditando a banda como Iggy & The Stooges. A capa era uma foto do vocalista durante um show tirada por Mick Rock. “Search and Destroy” e “Shake Appeal” foram lançadas como singles, mas não tiveram sucesso.

Eventualmente, a MainMan largou a banda após eles gastarem um adiantamento inteiro com drogas. A Columbia também os abandonou devido a péssimas vendas. O grupo terminou novamente em fevereiro de 1974, após uma turnê conturbada.

Os Stooges eram uma banda anticomercial. Representavam uma reação contrária a todo tipo de comercialismo vigente da época. Em termos filosóficos, eles eram o lado dionisíaco do conceito elaborado por Friedrich Nietszche. Caos completo, loucura, apelando às emoções e instintos.

Podem não ter atingido sucesso comercial, mas criaram o terreno adequado para algo novo ser construído. Os quatro integrantes dos Ramones apenas tinham em comum o fato de serem fãs dos Stooges. Os Sex Pistols começaram tocando covers do grupo americano. 

Para cada local em que a maioria da população rejeitava a banda quando passavam durante turnês, havia um rastro dos “estudantes colegiais pirando com comunismo e puberdade e fantasias de apocalipses niilistas” descritos por Lester Bangs.

O punk não existiria sem os Stooges. E por isso, o rock agradece.

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Pedro Hollanda
Pedro Hollanda
Pedro Hollanda é jornalista formado pelas Faculdades Integradas Hélio Alonso e cursou Direção Cinematográfica na Escola de Cinema Darcy Ribeiro. Apaixonado por música, já editou blogs de resenhas musicais e contribuiu para sites como Rock'n'Beats e Scream & Yell.

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