A história de “Transformer”, visionário álbum de Lou Reed

Músico conseguiu o sucesso que sempre quis graças a David Bowie - e passou o resto da carreira se ressentindo do maior hit

Lou Reed revolucionou o rock por meio de seu trabalho com o Velvet Underground. O grupo nova-iorquino redefiniu a apresentação do rock’n’roll pela influência de compositores avant-garde como John Cage e LaMonte Young.

Entretanto, Reed também queria ser um compositor pop. Após John Cale ter deixado a formação, o Velvet Underground deu uma guinada para uma sonoridade mais tradicional, ainda preservando a temática mais sombria de seus primeiros dois discos.

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Mesmo assim, não parecia ser o suficiente para Lou ficar satisfeito em seu sonho de ser uma estrela. Precisou da ajuda de seu maior discípulo para isso acontecer, algo que ele próprio pareceu depois se incomodar, mas aproveitou do mesmo jeito.

Essa é a história de “Transformer” e como Lou Reed se juntou a David Bowie para fazer um dos maiores álbuns de todos os tempos.

Lou Reed em Long Island

Quando deixou o Velvet Underground em 1970, durante as gravações do disco “Loaded”, Lou Reed estava de saco cheio da indústria musical. Chegou ao ponto de retornar à casa de seus pais, em Long Island, e arrumar emprego como datilógrafo na firma de contabilidade da família.

Em uma entrevista para a Rolling Stone, em 1989, Reed relembrou o período sabático:

“Será que eu queria fazer eu mesmo? Será que eu queria ter uma banda? Será que eu queria só compor, sem sequer subir no palco? Eu sou a última pessoa no mundo que eu próprio achava que deveria estar num palco. Algumas pessoas realmente gostam de ter um holofote nelas. Eu não gosto.”

Isso não durou muito tempo, pois ele assinou um contrato com a RCA Records em 1971 e viajou até Londres, onde gravou sua estreia solo homônima. Sua banda de apoio nesse disco consistiu de alguns dos melhores músicos de estúdio disponíveis na cidade, incluindo dois integrantes do Yes, Rick Wakeman e Steve Howe, talvez a banda mais oposta possível ao Velvet.

O álbum, lançado em abril de 1972, teve críticas mornas e foi amplamente ignorado pelo público. Contudo, ele tinha um fã prestes a se tornar a maior estrela do mundo do rock.

David Bowie

Em julho de 1972, David Bowie despontou junto ao público jovem inglês graças a “The Rise and Fall of Ziggy Stardust and The Spiders From Mars”, seu disco mais bem-sucedido até então. 

Calhou de ele ser um fã de Lou Reed desde o lançamento do primeiro disco do Velvet Underground. O cantor refletiu no episódio da série Classic Albums (transcrito pela Ultimate Classic Rock) a respeito de como a influência de Reed o ajudou a encontrar sua voz:

“Só o zeitgeist verbal e musical que Lou criou, a natureza de como ele escrevia letras era até então desconhecida no rock, eu acho. Ele nos deu o ambiente em que podíamos colocar nossa visão mais teatral. Ele nos deu as ruas e a paisagem, e nós as habitamos.”

Os dois chegaram a se conhecer durante as primeiras excursões de Bowie pelos EUA, nas quais visitou a Factory de Andy Warhol. A exposição à Reed e também Iggy Pop deu ao inglês os ingredientes necessários para começar a bolar a persona de Ziggy Stardust. E quando o sucesso chegou, ele quis retribuir a inspiração.

Calhou, também, de Bowie ser um dos poucos fãs do primeiro disco solo de Lou Reed, assim como Mick Ronson, guitarrista de sua banda. Os dois vieram com a proposta de ajudar o cantor a tentar fazer um álbum de sucesso, o que para ele não parecia de todo ruim.

Mesmo assim, Reed estava tão passivo quanto à ideia de ser um artista bem-sucedido após o fracasso de seu primeiro álbum a ponto de entregar todo o controle criativo para Bowie. O “camaleão” interpretou isso como confiança, segundo um depoimento para a série American Masters (transcrito por Ultimate Classic Rock): 

“Eu fiquei aterrorizado que ele disse sim, ele queria meio que trabalhar comigo como produtor dele. Porque eu tinha tantas ideias e me sentia tão intimidado pelo meu conhecimento da obra que ele já tinha feito. E, apesar de haver pouco tempo entre nós, parecia que Lou tinha esse legado enorme, o que ele tinha de fato… Mas ele entregou o projeto todo nas minhas mãos e eu esperava não o decepcionar.”

Sobras viram ouro

Parte do repertório de “Transformer” existia de alguma forma ou outra desde a época do Velvet Underground. “New York Telephone Conversation” e “Goodnight Ladies” chegaram a ser apresentadas ao vivo pela banda durante uma residência no Max’s Kansas City em 1970. “Andy’s Chest”, por sua vez, foi gravada um ano antes.

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Entretanto, o maior sucesso remanescente dos tempos do Velvet foi “Satellite of Love”. Originalmente uma demo em 1970, a primeira menção da existência da canção foi numa viagem de limousine, conforme Doug Yule contou numa entrevista em 2005 à Prism Films:

“Steve [Sesnick, empresário do grupo] estava falando sobre ‘como nós precisávamos tocar no rádio’, e Lou falou ‘Eu tenho essa canção chamada ‘Satellite of Love’, e ele mencionou o satélite que havia sido lançado naquela época, e era algo muito na mídia, por causa da corrida espacial, e Steve Sesnick falou ‘Sim, sim – isso vai adiantar!'”

Originalmente, a canção era num ritmo bem mais rápido que a versão em “Transformer”. Contudo, Mark Ronson a desacelerou, criou um piano suave como centro do arranjo e deu espaço para o conto de ciúme, paranóia e desconfiança de tecnologia florescer.

Um toque bem-humorado foi o backing vocal feito por David Bowie, fazendo “Pom, Pom, Pom” no refrão e aloprando na coda, algo elogiado por Reed em seu depoimento sobre o cantor inglês para a lista dos 100 maiores artistas da história da Rolling Stone:

“A maioria das pessoas não consegue cantar algumas de suas melodias. Ele consegue alcançar cada nota alta. Tome ‘Satellite of Love’ de meu álbum ‘Transformer’ como exemplo. Tem uma parte no fim onde a voz dele vai lá em cima no registro. É fabuloso.”

Apesar de não haver registro de ter sido composta durante seu tempo no Velvet, “Vicious” também possui uma história interessante relacionado a um desafio feito por Andy Warhol a Reed, como o próprio contou à Rolling Stone:

“Ele disse, ‘Por que você não escreve uma canção chamada ‘Vicious’ [mau em inglês]? E eu disse, ‘Que tipo de mau?’ ‘Ah, você sabe, mau tipo eu te bato com uma flor’. E eu escrevi isso literalmente.”

Embalando esse conto de malvadeza está um dos melhores riffs de guitarra criados por Mick Ronson, e a canção acabou se tornando um clássico de seu repertório.

Mas existem outros dois maiores ainda.

Beleza escondendo subversão

O hit que Lou Reed sempre quis acabou vindo da canção mais perversa de “Transformer”. “Walk on the Wild Side” foi composta inspirada, segundo o cantor, pelo livro “A Walk on the Wild Side”, escrito por Nelson Algren. Ele teria sido abordado para compor músicas a serem usadas numa adaptação teatral do romance e inseriu personagens de seus tempos frequentando a Factory na letra.

Holly Woodlawn, Candy Darling e Jackie Curtis eram três atrizes trans que estrelaram vários filmes de Andy Warhol. A segunda já havia sido musa de outra faixa de Reed: “Candy Says”, do disco “The Velvet Underground”.

Joe D’Allessandro era um ator famoso também por sua associação à Factory, apesar de não conhecer o cantor antes da música ser composta. Sugar Plum Fairy era Joe Campbell, que interpretou um personagem com esse nome no filme “My Hustler”.

A maioria das pessoas afiliadas à Factory nunca se tornou alguém fora dela. A canção acaba contando melhor a origem dessas figuras buscando estrelato que qualquer filme feito por Warhol.

Numa entrevista ao New York Times após a morte de Reed em 2016, o fotógrafo Timothy Greenfield-Sanders, documentarista da cena, resumiu a importância da canção de maneira simples:

“Se Lou não tivesse escrito essa canção, nenhum desses personagens seria lembrado.”

E o que ajudou demais a fazer da música um sucesso foi seu arranjo completamente diferente de tudo feito por Reed até então, inspirado pelo jazz. Mick Ronson recrutou Herbie Flowers para criar a famosa linha de baixo, que curiosamente é gravada tanto num contrabaixo quanto num baixo elétrico. 

A razão para essa escolha não foi necessariamente estética ou harmônica. Flowers, um músico de estúdio veterano, tinha um esquema no qual era pago por faixa gravada com seu instrumento. Dois baixos significava pagamento em dobro.

A linha de baixo é tão contagiante a ponto de ter enganado os censores. Mesmo contendo alusões a uso de drogas, travestis, homossexualidade e um eufemismo claro de sexo oral, a música, que foi o primeiro single lançado de “Transformer”, se transformou num hit mundial, atingindo o 16º lugar na Billboard 200 e a 10ª posição nas paradas inglesas.

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No lado B do single, aparecia outra obra prima de Reed, “Perfect Day”. Um dos grandes dons do cantor e compositor sempre foi sua capacidade de destilar sentimentos em declarações simples. Nesse caso, ele conseguiu colocar em menos de 60 palavras um espectro amplo de emoções contidas numa simples ida ao parque.

Numa entrevista para o jornal inglês The Independent, Bettye Kronstad, primeira esposa de Reed, conta a história por trás da canção e como ela via seu conteúdo.

“Ele escreveu “Perfect Day” sobre um dia que passamos juntos no parque, exatamente como ele descreve na canção. Apesar de parecer uma simples canção de amor, seu brilho está na sugestão de que amor entre adultos nunca é simples, sempre complexo. Ele já disse que os versos mais importantes de ‘Perfect Day’ são, ‘You made me forget myself. I thought I was someone else, someone good’ [Você me faz esquecer de mim mesmo. Eu achei que era outro alguém, alguém bom].”

Ela continuou, apontando a escuridão por trás desse sentimento:

“Talvez eu tenha feito isso por ele, mas para mim, os versos vitais são ‘You keep me hanging on, you just keep me hanging on’ [Você me mantém aguentando, você simplesmente me mantém aguentando] – Lewis não dependia só de mim para mantê-lo sóbrio, ele precisava de sua equipe de empresários também.”

A luz do holofote queima

Apesar de bem-sucedida, a parceria entre Lou Reed e David Bowie acabou feio. Os dois tiveram uma briga tarde da noite, detalhada no livro “Lou Reed: A Life” (de Anthony DeCurtis), durante a qual o cantor inglês o repreendeu e Reed respondeu com um soco.

Bowie disse então que eles só voltariam a trabalhar juntos se Reed começasse a tomar conta de si. O americano contratou a banda nova-iorquina Tots para ser seu acompanhamento na turnê de “Transformer”, mas diversas pressões o prejudicavam.

“Satellite of Love” chegou ao 10º lugar no Reino Unido e “Transformer” foi um sucesso de vendas, algo nunca antes atingido na carreira de Reed.

Entretanto, ele era incapaz de reconhecer o sucesso como seu. Os singles não soavam como o resto de seu material, especialmente a canção que veio a se tornar para sempre sinônima com ele.

Na entrevista para o The Independent, Bettye Kronstad descreveu a relação de Reed com “Walk on the Wild Side”:

“Ele começou a ressentir ter que tocar ‘Walk on the Wild Side’, porque não refletia sua obra. Ele estava decepcionado e zangado, porque ele queria tocar suas canções suaves – suas baladas e canções de amor. Mas as plateias não queriam ouví-las. Elas queriam clássicos do Velvet Underground: ‘White Light/White Heat’, ‘Sweet Jane’, ‘Rock ‘n’ Roll’, ‘Heroin’ – e é claro, ‘Walk on the Wild Side’.

Anos depois, na década de 1990, Reed teve seu desejo de ver suas baladas reconhecidas quando “Perfect Day” ganhou uma nova vida. A canção foi utilizada no filme “Trainspotting”, servindo como trilha da cena onde o personagem interpretado pelo ator Ewan McGregor tem uma overdose de heroína.

A música acabou ganhando o status de uma das mais belas baladas já escritas. Ganhou versões cover do Duran Duran e Bono, além de ter sido regravada pelo próprio Reed com outras estrelas da música para um single de caridade organizado pela BBC.

Em 2010, a cantora escocesa Susan Boyle, que encantou o mundo no ano anterior durante sua participação no programa “Britain’s Got Talent”, regravou a faixa para seu segundo disco, “The Gift” – ironicamente também título de uma música do Velvet Underground com uma letra macabra.

A ressurreição de “Perfect Day” também possibilitou Reed aposentar “Walk on the Wild Side” de seus shows. O cantor havia passado boa parte do tempo desde seu lançamento assombrado por seu sucesso e seguiu contra ele em quase toda oportunidade, seja com seu disco seguinte, “Berlin”, ou o experimento em microfonia “Metal Machine Music”.

Ele podia finalmente aproveitar suas baladas e canções de amor. E mesmo assim resolveu gravar “Lulu” com o Metallica.

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Pedro Hollanda
Pedro Hollanda
Pedro Hollanda é jornalista formado pelas Faculdades Integradas Hélio Alonso e cursou Direção Cinematográfica na Escola de Cinema Darcy Ribeiro. Apaixonado por música, já editou blogs de resenhas musicais e contribuiu para sites como Rock'n'Beats e Scream & Yell.

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