A história de “Carnival of Souls”, o álbum maldito do Kiss

Banda estava na estrada com maquiagem e formação original quando, para superar a pirataria, teve que lançar álbum sombrio que estava engavetado

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O grande “elefante na sala” na discografia do Kiss é “Music From ‘The Elder’” (1981), mas existe um álbum tão fora da curva na carreira dos mascarados que acaba até esquecido. Uma aura “maldita” cerca “Carnival of Souls: The Final Sessions” (1997), talvez não só pela sonoridade mais dark e próxima do grunge, mas por ele fechar um ciclo de maneira tão estranha.

Contexto

Os anos 1980 não foram fáceis para o Kiss. Mudanças de formação, retirada das maquiagens e dificuldade em se adaptar ao mercado da época eram algumas das lutas do período. A banda pareceu ganhar estabilidade no álbum “Hot in the Shade” (1989), mas logo perderia um de seus pilares da época: o baterista Eric Carr, que morreu de câncer em 1991.

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O clima pesado na virada da década se refletiu no ótimo disco “Revenge” (1992), onde o Kiss claramente busca renascer ao mesmo tempo em que deseja relevância. Mas os anos 1990 trouxeram na bagagem dois elementos que seriam decisivos na história do grupo naquele período: o grunge e a nostalgia.

O Kiss e o grunge

Subgênero nascido na cidade americana de Seattle, o grunge começou a dominar o mundo em 1991, quando o Nirvana lançou “Nevermind” e assinou a sentença de morte do chamado hair metal, o hard rock oitentista do qual os ex-mascarados conseguiram se desvencilhar antes. A era “Revenge” já trazia uma estética nada colorida, mas ninguém imaginava que o Kiss daria um passo tão grande nessa direção.

Foi o vocalista e baixista Gene Simmons quem sugeriu a guinada em direção ao grunge para aquele que seria o 17º álbum de estúdio do grupo. A sonoridade mais melancólica e pesada combinava com sua antiga persona do “Demon”, dos tempos de maquiagem. Logo, era um encaixe natural.

Por outro lado, a proposta desagradava ao guitarrista e também cantor Paul Stanley – que acabou sendo voto vencido. No livro “Kiss: Por Trás da Máscara”, o Starchild revelou seus pensamentos sobre o vindouro disco.

“Eu era totalmente contra fazer aquele tipo de álbum, mas há momentos na banda quando alguém tem que ceder ou concordar com alguém, porque essa pessoa tem uma opinião mais forte sobre alguma coisa. Aquele álbum foi ideia do Gene, que acreditava que deveríamos fazê-lo. Nunca acreditei que o mundo precisasse de um Soundgarden, Metallica ou Alice in Chains de segunda classe. Foi uma tentativa muito elaborada de fazer algo que eu achava ser um grande erro.”

A inclinação a mudar a sonoridade era tão grande que até mesmo o produtor contratado para a nova empreitada, Toby Wright, relata ter tido discussões com Simmons sobre o direcionamento.

“Eu e Gene tínhamos discussões em que ele dizia: ‘Quero ser como o Billy Corgan!’. Tivemos um pequeno desentendimento e eu lhe disse que não. ‘Você não quer ser como o Billy Corgan, você mesmo já é uma lenda. Seria muito bom se você fosse fiel a si mesmo. Você mesmo pode abrir seu caminho, não é preciso seguir o Billy Corgan porque ele está no topo das paradas’. Meu ponto de vista era: ‘Sejamos criativos sendo nós mesmos’. Ele perguntou: ‘Bom, e se os fãs não gostarem disso?’. Respondi: ‘Você não pode controlar o gosto das pessoas’ [risos], e ele sabe disso.”

Na época, Stanley e Simmons contavam com os fiéis escudeiros Bruce Kulick (guitarra) e Eric Singer (bateria), o competente substituto de Eric Carr. Sem muita voz ativa, os dois apenas seguiram o direcionamento dado e entregaram o que era pedido.

Kulick, principalmente, teve bastante envolvimento nas sessões. Não à toa, gravou todas as guitarras de oito das 12 faixas – e assumiu o baixo de seis delas.

Enquanto isso…

Ao mesmo tempo em que procurava soar como as bandas mais modernas, o Kiss sofria também outro efeito da época: a nostalgia.

Em 1994, a banda havia lançado um tributo, “Kiss My Ass: Classic Kiss Regrooved”, com antigas músicas regravadas por artistas como Lenny Kravitz, Garth Brooks, Anthrax e Dinosaur Jr.

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Mais ou menos na mesma época, os músicos começaram a participar de convenções com fãs. Além de revisitar canções antigas em formato acústico, colocavam à venda itens de merchandising da década de 1970 e relembravam histórias..

Logo antigos integrantes começaram a frequentar essas convenções, o que deu origem à participação no quadro “MTV Unplugged” com Ace Frehley e Peter Criss, respectivamente guitarrista e baterista originais. A apresentação foi realizada em agosto de 1995.

https://www.youtube.com/watch?v=_Qgs8KPSzAc

Tudo isso acontecia na mesma época em que o grupo trabalhava em “Carnival of Souls”. Ficou claro que entre o passado e o presente, o primeiro era mais rentável.

Parem as máquinas!

Somente durante as sessões de mixagem de “Carnival of Souls” Bruce Kulick e Eric Singer foram informados por Paul Stanley e Gene Simmons de que o Kiss faria uma turnê de reunião com Ace Frehley e Peter Criss. A iniciativa também incluía a retomada das maquiagens e fantasias clássicas.

Isso significava, diretamente, a demissão dos dois músicos contratados. Kulick até se lembra de conversar sobre o assunto com Singer:

“Eric e eu costumávamos discutir a respeito da possibilidade ou não do reencontro do Kiss. Eu sabia que aconteceria e Eric achava que jamais aconteceria.”

O baterista, por sua vez, ficou incomodado ao receber a “bomba” em uma reunião casual, já nos últimos dias do trabalho em estúdio.

“Estávamos produzindo o disco ‘Carnival of Souls’ e, dois dias antes de terminá-lo, Gene e Paul decidiram fazer uma reunião e disseram apenas: ‘Vamos fazer uma turnê de reencontro com Ace e Peter’. Foi assim. Para mim, eu sabia que era o início do fim.”

Bruce, inclusive, culpa a reunião pelas falhas apresentadas no álbum. Ele, que fez sua estreia/despedida nos vocais na faixa “I Walk Alone”, acredita que os chefes já estavam com a cabeça na reunião enquanto produziam o disco, o que também colaborou para que o projeto fosse engavetado.

Em sessão de perguntas e respostas no YouTube, transcrita pelo Ultimate Classic Rock, o músico disse:

“Eric Singer e eu não sabíamos sobre nenhuma turnê de reunião até três quartos das gravações de ‘Carnival of Souls’. Então estávamos apenas seguindo com as novas músicas. E preciso admitir que no momento em que eles nos falaram da turnê de reunião, estavam um pouco distraídos. Talvez a mixagem pudesse ter sido melhor ou diferente, porque a atenção deles estava dividida com algo muito legal que eles iriam fazer. Mas de várias formas, fico feliz de não ter ficado sabendo antes de três quartos das gravações de ‘Carnival of Souls’.”

Pirataria e lançamento oficial

Com a turnê de reunião anunciada para começar em junho de 1996, a gravadora Mercury Records pediu para que o Kiss tocasse pelo menos uma música de “Carnival of Souls” nos shows, para que a divulgação pudesse começar. A banda recusou, já que se tratavam praticamente de dois projetos diferentes. Com isso, o disco foi engavetado. Mas não pela pirataria.

Ainda em 1996, enquanto a formação original voltava aos palcos, cópias piratas de “Carnival of Souls” circulavam, algumas até creditando Ace Frehley e Peter Criss. Para evitar o prejuízo maior, músicos e gravadora optaram por lançar oficialmente o trabalho em 28 de outubro de 1997.

“Carnival of Souls” veio ao mundo de forma bastante “largada”. Não foi divulgado com entrevistas, shows ou qualquer outra ação típica. Uma foto do grupo durante as gravações foi escolhida como capa e o encarte trazia propaganda da turnê de reunião.

Foi assim, de forma melancólica e pouco natural, que o Kiss encerrou seu período sem maquiagem e se despedia do guitarrista Bruce Kulick, que fez parte da banda por mais de uma década. Também foi o “adeus” a Eric Singer, mas temporário: ele voltou já maquiado em 2001 e a partir de 2004, na vaga deixada por Peter Criss. Kulick foi mantido como colaborador próximo e chegou a assinar faixas de “Psycho Circus” (1998), o álbum da reunião da formação original.

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“Muito rock, mas sem o roll”

“Carnival of Souls: The Final Sessions” é um material curioso para uma banda como o Kiss simplesmente por não soar nada com o que se espera deles. Há quem diga que o álbum traz uma qualidade sonora acima da média, já que a fonte do grunge foi bem explorada.

Gene Simmons, idealizador da empreitada, tem o trabalho em alta conta.

“Nós basicamente dissemos: ‘vamos acreditar que essa banda é novinha em folha’. Naquela altura, nós tínhamos perdido a esperança de nos reunirmos novamente com Ace e Peter. Então pensamos: ‘Vamos esquecer todas as regras, esquecer o Kiss, esquecer de tudo. Vamos tentar fazer com que o Eric e o Bruce se sintam em casa’. Em minha opinião, foi um disco muito corajoso e não me arrependo.”

Paul Stanley sempre foi contrário à ideia e a audição mostra que ele era o menos confortável com o novo direcionamento. Seus vocais, ainda em boa fase na época, soam deslocados em alguns momentos. A única faixa em que o músico diz ter encontrado algum significado foi “I Will Be There”, cuja letra é uma declaração para seu filho recém-nascido, Evan.

Já Kulick parece gostar mais do álbum, até mesmo por ter se envolvido bastante na concepção. O guitarrista coassina a autoria de 9 das 12 músicas da tracklist e ainda fecha o disco cantando em “I Walk Alone”. A balada, assim como algumas faixas mais conhecidas como “Jungle” e “Rain”, chegaram a ser tocadas por ele em projetos solo.

Bruce chega a soar triste ao comentar sobre o trabalho, comparando-o com a outra bomba da discografia do Kiss, “Music From ‘The Elder’”.

“Aquele álbum estava fadado a ser como o ‘The Elder II’, por causa da turnê do reencontro. A gravadora destruiu qualquer chance que aquele disco poderia ter. Eles o enterraram por não terem lhe dado um empurrão.”

Eric Singer parece ter uma opinião menos emocional sobre o álbum, seguindo mais a linha de Paul Stanley. Como alguém que retornou ao Kiss anos depois, talvez sua visão realmente seja diferente ao observar o material “de longe” na linha do tempo.

“É óbvio que o disco é bem executado. Era o Kiss em épocas estranhas, se arriscando. É claro que todos nós escutávamos o Alice in Chains, o Soundgarden e o Stone Temple Pilots. Se fosse o álbum de qualquer outra banda, eu diria que é um disco bem legal. Mas eu o ouço e penso: ‘não é o Kiss’. É muito rock, mas sem o roll. Dou crédito à banda por ter se arriscado e tentado fazer algo diferente. Para mim, é uma versão moderna do ‘The Elder’, quinze anos mais tarde [risos]. Saiu do caminho batido, fez uma curva à esquerda e, quando chegaram lá, descobriram que o caminho não levava aonde queriam chegar. Então, fazem outra curva e voltam à estrada principal. O Kiss voltou às raízes e, no final, à maquiagem.”

Kiss – “Carnival of Souls: The Final Sessions”

  • Lançado em 28 de outubro de 1997 pela Mercury
  • Produzido por Toby Wright, Gene Simmons e Paul Stanley

Faixas:

  1. Hate
  2. Rain
  3. Master & Slave
  4. Childhood’s End
  5. I Will Be There
  6. Jungle
  7. In My Head
  8. It Never Goes Away
  9. Seduction of the Innocent
  10. I Confess
  11. In the Mirror
  12. I Walk Alone

Músicos:

  • Paul Stanley (voz, guitarra, violão de 12 cordas e ukulele na faixa 5)
  • Gene Simmons (voz, baixo)
  • Bruce Kulick (voz, guitarra; todas as guitarras nas faixas 7, 9 e 10; baixo e solo de violão na faixa 5; todas as guitarras e baixo nas faixas 2, 6, 8, 11 e 12)
  • Eric Singer (bateria, percussão, backing vocals)

Músicos adicionais:

  • Carole Keiser (condução dos corais na faixa 4, arranjos de corda nas faixas 5 e 10)
  • The Crossroads Boys Choir (backing vocals na faixa 4)
  • Nick Simmons (backing vocals na faixa 4)

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André Luiz Fernandes
André Luiz Fernandes
André Luiz Fernandes é jornalista formado pela Universidade Metodista de São Paulo (UMESP). Interessado em música desde a infância, teve um blog sobre discos de hard rock/metal antes da graduação e é considerado o melhor baixista do prédio onde mora. Tem passagens por Ei Nerd e Estadão.

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