Paul Di’Anno faz show emocionante em SP, onde mais se ouve Iron Maiden no mundo

Banda afiada e público dedicado compensaram falta de voz do cantor, que retribuiu com carisma e diversas demonstrações de gratidão

O Iron Maiden não teria chegado onde chegou com Paul Di’Anno – mas também não conseguiria atingir o patamar alcançado sem ele. As entradas do cantor em 1978 e do baterista Clive Burr no ano seguinte foram cruciais para dar forma à ideia musical que o baixista Steve Harris tinha em mente, mas não conseguia materializar. O comportamento errático de Di’Anno certamente impediria o grupo de se tornar um gigante a longo prazo, mas sua interpretação enérgica ajudava e muito a colocar pequenas casas noturnas de cabeça para baixo nos “early days” do Maiden.

Após seus efêmeros três anos como parte do Iron, Paul pouco conseguiu fazer de sua carreira. O já mencionado comportamento errático também comprometeu sua vida pessoal, o que justifica suas amplamente comentadas questões de saúde. Durante o show realizado no último sábado (4) no Carioca Club, em São Paulo, como parte da turnê “The Beast is Back” / “The Beast Resurrection”, o cantor chegou a dizer que, em função dos problemas físicos, foi impedido de viajar para o Brasil – país onde morou e tanto se apresentou – por oito anos.

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Paul está em uma cadeira de rodas, ainda que em etapa final de recuperação de uma bem-sucedida cirurgia no joelho. Visivelmente fora de forma, também foi acometido por uma reação alérgica após chegar ao país – algo confirmado pelo próprio ao justificar sua voz rouca e falha, ainda mais prejudicada por ele não abdicar de bebidas alcoólicas e cigarro. Uma parte desses problemas já eram conhecidos do público já quando a tour nacional de 31 datas foi anunciada; a outra foi descoberta conforme as apresentações se desenrolavam.

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Diante de tudo isso, como explicar o fato de que o já citado Carioca Club, com capacidade para 1,2 mil pessoas, esteve tão cheio para ver Di’Anno em carne, osso e rodas – sobre as quais, parafraseando Herbert Vianna, também bate um coração? Uma das justificativas se dá por meio de dados: de acordo com o Spotify, São Paulo é a cidade que mais ouve Iron Maiden em todo o planeta. E sem distinção. Aqui se escuta os discos com Paul, com Bruce Dickinson e até com Blaze Bayley.

O Maiden faz parte da cultura paulistana e, por que não, brasileira de modo que qualquer pessoa por aqui conhece a banda, mesmo que de nome. Não são raros os relatos de fãs que viram sujeitos aparentemente aleatórios – de médicos a ambulantes, de políticos a moradores de rua – com camisetas do grupo.

Fora isso, brasileiro costuma adorar e se identificar com histórias de superação. Todo mundo sabia que não veria a melhor versão de Paul na noite do último sábado (4). Porém, ao acompanhar toda a luta do cantor ao arrecadar fundos para o tratamento relacionado à sua cirurgia, cada fã que se fez presente sentiu-se na obrigação de colaborar de alguma forma, já que Di’Anno precisa da renda obtida com a tour para continuar seus procedimentos de saúde. Ele, afinal de contas, sempre deu tanta moral ao nosso renegado país. Se músicos e produção estão fazendo de tudo para garantir um bom evento, por que não apoiá-lo?

*Fotos de Jeff Marques / @mulekedoidomemo. Caso as imagens apareçam pequenas, atualize a página.

Mais elétricos do que ciganos

Todas as 31 apresentações da “The Beast is Back” trazem duas bandas de abertura: de início, o ainda jovem grupo mineiro de hard rock Electric Gypsy; na sequência, o cascudo Noturnall, liderado pelo vocalista Thiago Bianchi (ex-Shaman) e responsável por praticar um som que vai do metal progressivo ao groove metal num estalo de dedos.

De tão pontual, o Electric Gypsy começou seu show 1 minuto antes do anunciado. Guzz (vocal), Nolas (guitarra), Pete (baixo) e Robert Zimmerman (bateria) convenceram o público presente com um hard rock que até pecava pela falta de identidade, mas não deixava faltar em técnica e entrosamento de seus integrantes.

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A cadenciada “More Than Meets the Eye”, a groovada “Nine Lives” e a pesada “Heads or Tails” iniciaram o set do quarteto como a melhor prova da definição supracitada. Eram excelentes músicos tocando canções apenas boas, que poderiam ser ótimas não fosse a insistente tentativa de emular os ídolos (deles e meus) do glam metal. Chegava ao ponto de Guzz se comunicar em inglês com o público, no maior estilo Supla. Quem se propõe a ser retrô precisa de cuidado redobrado para não soar caricato.

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Até a escolha fora da curva do cover “Hot for Teacher”, clássico do Van Halen, foi mais efetiva para provar a incontestável competência dos instrumentistas do que para engajar o público presente. “The Devil Made Me Do It”, talvez a mais clichê do set, ao menos antecedeu o melhor momento do set, com outro cover ao mesmo tempo inusitado e impecável – “Bad Boys”, do Whitesnake – e o pegajoso número de encerramento “Shoot ‘em Down”, que gruda sem abdicar do peso.

Caso opte por soar mais como si e adote uma personalidade mais “cigana” do que meramente “elétrica”, o Electric Gypsy poderá ter um caminho brilhante pela frente. O grupo dispõe de um vocalista cheio de energia, um guitarrista habilidoso, um baixista que sabe como preencher o som e um baterista que rouba a cena – haja pulmões para tocar tudo aquilo e ainda fazer backing vocals. Não lhes falta material humano.

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A coesa noite do Noturnall

Também pontual e sempre profissional, o Noturnall subiu ao palco às 21h para dar início a um show que prometia ser tecnicamente impecável como o do Electric Gypsy. Infelizmente, o microfone de Thiago Bianchi falhou e o público teve que ouvir quase metade de “Try Harder” em uma versão instrumental. Levou um tempo até que o grupo, completo por Léo Mancini (guitarra), Saulo Xakol (baixo) e Henrique Pucci (bateria), interrompesse a canção para arrumar o problema. As cortinas se fecharam e, cinco minutos depois, o quarteto pôde retornar de vez.

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Tanto a faixa de abertura quanto a seguinte, “No Turn at All”, trazem a identidade sonora do Noturnall muito bem definida – é heavy metal com influências do progressivo, do thrash/groove, do alternativo e até do power –, pecando apenas no excesso de informação. Dono de competência incontestável, Bianchi explora mais técnicas vocais diferentes nessas duas canções do que muitos cantores o fazem em uma discografia toda. A bateria reproduzida por Pucci, por sua vez, abusa da habilidade. Impressiona, mas às vezes compromete o resultado final.

Ainda bem que, no restante do set, tudo se equilibra. “Fight the System” mescla versos em português com refrão em inglês sem soar caricato. Por sua vez, “Wake Up” até engana com a fritação de Léo Mancini nos segundos iniciais: é o tipo de faixa que tem êxito ao balancear peso com fortes ganchos melódicos. Uma versão para “Thunderstruck”, clássico do AC/DC, destoou um pouco da proposta do show como um todo, mas foi bem-sucedida na função de levantar o público.

Após Thiago anunciar que estava lançando um novo álbum – “Cosmic Redemption”, título que não chegou a ser mencionado na hora –, duas faixas do trabalho foram apresentadas: “Reset the Game”, acelerada e quase inclinada ao power tradicional, e “Scream! For!! Me!!!”, gravada com Mike Portnoy (Sons of Apollo, The Winery Dogs, ex-Dream Theater, etc) e mais orientada ao que se chama de metal alternativo.

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A versão para “O Tempo Não Para”, hit de Cazuza e que teve participação de Ney Matogrosso no registro em estúdio, se encaixou melhor à proposta do show como um todo. Nem a briga que começou a rolar no meio da plateia tirou o brilho do cover, que antecedeu o encerramento com “Nocturnal Human Side”, talvez a canção mais conhecida do grupo – com méritos, visto que convence ao mesclar groove com melodia e trouxe o melhor solo de Mancini no set, justamente por permitir maior “respiro” entre as notas.

Também amparado por recursos visuais como telão interativo e jogo de luzes sincronizado e bem bolado, o show do Noturnall é capaz de surpreender até alguém que não gosta tanto dos segmentos mais virtuosos do heavy metal, como eu. O flerte com subgêneros mais alternativos e pesados, praticado desde o álbum de estreia homônimo de 2014, traz um frescor e uma identidade mais sólida ao grupo, cujo cenário ficou ainda melhor depois do “resgate” do carismático e habilidoso Léo Mancini para a tour – como convidado, mas fica a torcida para que volte a ser efetivo.

Aventura na sala de espera

A espera até o show de Paul Di’Anno foi uma aventura de quase uma hora. Por conta do problema técnico inicial, o Noturnall encerrou seu show às 22h, horário em que o ex-Iron Maiden deveria estar subindo ao palco. Parte do período de aguardo foi preenchido por alguns recados do escritor croata Stjepan Juras, autor de livros sobre o Iron Maiden e grande responsável pela recuperação do cantor ao “adotá-lo”, trazê-lo para seu país e mobilizar diversas formas de arrecadação para bancar os tratamentos de saúde necessários.

Juras destacou que a turnê pelo Brasil, embora longa, é como uma “missão”, pois representa a parte final da recuperação do artista. “Se tem alguém que pode dar o apoio que Paul precisa, é o povo brasileiro”, reconheceu o escritor, revelando em seguida que o show estava sendo gravado para fazer parte de um futuro documentário sobre o vocalista. Conforme noticiado anteriormente, a obra será dirigida por Wes Orshoski, um dos produtores do aclamado filme “Lemmy” (2010), sobre a vida do líder do Motörhead.

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Foto: Jeff Marques

Com o recado dado, o público foi submetido a uma discotecagem aventureira que variou de Oasis a Hoobastank, provocando gritos coordenados de “ei, DJ, vai tomar no c#”. Ofensas ao jornalista e youtuber Regis Tadeu também foram proferidas, sabe-se lá por qual motivo.

A espera acabou às 22h50, quando as caixas de som começaram a tocar a instrumental “The Ides of March”. Iniciava-se, ali, o momento de catarse coletiva que só foi encerrado à 0h02.

Catarse coletiva com Paul Di’Anno

“Wrathchild” foi o número inicial real e Paul parece ter gostado tanto que, concluída a execução, disse à banda para tocar… “Wrathchild”. Provocou risos da mesma plateia que antes batia cabeça e cantava muito alto para suprir sua voz rouca e evidente falta de fôlego.

Aliás, as interações de Di’Anno com o público merecem ser resumidas em uma lista à parte. Ao longo do show, ele:

  • pediu desculpas incontáveis vezes pela situação de sua voz, que, conforme explicado pelo próprio e já mencionado anteriormente neste texto, foi afetada por uma reação alérgica;
  • disse que preferiu manter a apresentação mesmo naquelas condições do que cancelar, pois estava “com a família de São Paulo”;
  • prometeu um show gratuito na cidade (Estética Torta, você será cobrada!);
  • pontuou em ao menos duas situações diferentes que estava com vontade de chorar tamanha a receptividade dos fãs;
  • perguntou se “havia bambis” e torcedores do Palmeiras na plateia, mas deixou claro: “na Inglaterra, sou West Ham; no Brasil, sou Corinthians”.

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Fora isso, o show correu sob um script já esperado. Enquanto a banda formada por Léo Mancini, Nolas e Chico Brown nas guitarras, Saulo Xakol no baixo e Henrique Pucci na bateria mostrou-se bem mais afiada do que nos momentos iniciais da turnê, Paul precisou resgatar suas últimas forças para conseguir cantar até o fim do show. Esforçou-se tanto que, como no Rio, chegou a executar o setlist completo de 14 músicas, com a surpreendente “Iron Maiden” no fim.

Diante disso, alguns momentos do set devem ser destacados. Em canções específicas como “Sanctuary” e “Drifter”, Di’Anno conseguiu cantar quase tudo sem jogar para a plateia. “Remember Tomorrow” soou tão afetada pelos problemas vocais quanto visceral em seus sentimentos, especialmente após ter sido dedicada ao guitarrista brasileiro que o acompanhou em projetos passados, Paulo Turin (“grande amigo que perdi para a Covid”), e ao lendário baterista Clive Burr, falecido em 2013 após anos sofrendo com a esclerose múltipla (“um de meus melhores amigos”).

A plateia, que cantou todas as músicas como se houvesse um Paul Di’Anno dentro de cada um, começou a se manifestar de forma mais física a partir de “Killers”. Segundos antes do início de sua execução, um cadeirante foi levantado no meio da plateia. “Não faça isso”, recomendou o artista. Em seu andamento, a canção foi marcada por rodas que foram ficando cada vez maiores na pista do Carioca Club. Foram por intermédio delas que surgiram os momentos de maior catarse coletiva, como “Charlotte the Harlot”, “Transylvania” (sim, roda durante uma faixa instrumental) e “Phantom of the Opera”, cujos solos também foram cantarolados de modo incansável.

Fora o atraso que comprometeu a volta de muitos fãs via transporte público (metrô e várias linhas de ônibus deixam de circular à meia-noite) e a voz mais rouca que o habitual de Paul Di’Anno, tudo ocorreu dentro do previsto no Carioca Club. Mesmo com os percalços, a sensação era de que estávamos fazendo parte de uma noite histórica. Quando nos lembramos que esta apresentação será eternizada em um documentário, o sentimento se confirma. Que venha o show gratuito prometido pelo integrante mais fanfarrão e acidentalmente carismático a passar pelo Iron Maiden.

*Fotos de Jeff Marques / @mulekedoidomemo. Caso as imagens apareçam pequenas, atualize a página.

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Paul Di’Anno – ao vivo em São Paulo

  • Local: Carioca Club
  • Data: 4 de fevereiro de 2023
  • Turnê: The Beast is Back / The Beast Resurrected

Repertório – Paul Di’Anno:

  1. The Ides of March (gravação)
  2. Wrathchild
  3. Sanctuary
  4. Purgatory
  5. Drifter
  6. Murders in the Rue Morgue
  7. Remember Tomorrow
  8. Genghis Khan (instrumental)
  9. Killers
  10. Charlotte the Harlot
  11. Transylvania (instrumental)
  12. Phantom of the Opera
  13. Running Free
  14. Prowler
  15. Iron Maiden

Repertório – Noturnall:

  1. Try Harder
  2. No Turn at All
  3. Fight the System
  4. Wake Up
  5. Thunderstruck (cover do AC/DC)
  6. Reset the Game
  7. Scream for Me
  8. O Tempo Não Para (cover de Cazuza)
  9. Nocturnal Human Side

Repertório – Electric Gypsy:

  1. More Than Meets the Eye
  2. Nine Lives
  3. Heads or Tails
  4. Hot for Teacher (cover do Van Halen)
  5. The Devil Made Me Do It
  6. Bad Boys (Whitesnake)
  7. Shoot ‘em Down

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Igor Miranda
Igor Miranda é jornalista formado pela Universidade Federal de Uberlândia (UFU), com pós-graduação em Jornalismo Digital. Escreve sobre música desde 2007. Além de editar este site, é colaborador da Rolling Stone Brasil. Trabalhou para veículos como Whiplash.Net, portal Cifras, revista Guitarload, jornal Correio de Uberlândia, entre outros. Instagram, Twitter e Facebook: @igormirandasite.

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