Bruce Springsteen encanta por 3h na cidade dinamarquesa dos contos de fadas

Lendário músico americano comandou sua vitaminada E Street Band e público de mais de cinquenta mil pessoas em Odense

Era a parte intermediária da clássica “Backstreets”, do seminal disco “Born to Run” (1975). Bruce Springsteen, de olhos fechados e marejados, praticamente fez uma oração ao contar às mais de 50 mil pessoas na cidade dinamarquesa de Odense como vai se recordar do amigo George Theiss, o último colega que sobrara de sua primeira banda, The Castilles, falecido em 2018.

Quando se iniciou a parte final mântrica da música sobre uma amizade interrompida, Springsteen estava com a voz embargada e seu fiel escudeiro, o guitarrista “Little” Steven Van Zandt, levantou o tom do vocal de apoio e praticamente assumiu a linha de frente até ela se encerrar.

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Na música anterior, praticamente sozinho ao violão, Springsteen havia tocado “Last Man Standing”, faixa do mais recente disco de inéditas, “Letter to You” (2020). Ao introduzi-la, ele contou a história toda sobre o amigo recém-perdido. Com legendas na língua local tanto para a canção quanto para o discurso no telão, claramente o músico improvisou um pouco, a julgar por como as palavras quase indecifráveis se moviam e paravam.

As duas músicas, em sequência, vêm sendo repetidas em todos os shows do Bruce Springsteen na atual turnê com sua E Street Band. É difícil dizer o quanto o lendário músico já tinha tudo ensaiado e o quanto foi o calor do momento. Para o público, isso pouco importou. Quando terminou “Backstreets”, era difícil achar alguém que não estivesse pelo menos com aquele nó na garganta.

A terra natal dos contos de fadas

Odense é a terceira maior cidade dinamarquesa, com uma população de pouco mais de 180 mil habitantes num país com quase seis milhões. O local tem registro de habitação humana há mais de quatro mil anos e seu nome originado como “santuário de Odin” ao ser estabelecido ainda antes do ano 1000.

Apesar disso, ela é famosa mesmo por ser a terra natal de Hans Christian Andersen (1805-1875), autor de contos de fadas posteriormente pasteurizados por uma certa empresa do ratinho. O turismo local gira em torno literalmente dos passos do escritor e de sua obra — é possível seguir sua trajetória por pegadas espalhadas pelo chão.

Foto: Thiago Zuma
Foto: Thiago Zuma

Difícil pensar num local mais inusitado para um show de Bruce Springsteen, que, se apresentando constantemente na Dinamarca desde 1981, nunca havia tocado na cidade. Desde o dia anterior, ela girava em torno do evento. O escritório de turismo local montou estandes em alguns pontos de Odense para orientar o público, que chegava aos montes pelos trens e esgotara a rede hoteleira local. Nos bares da região turística, o inglês era a língua oficial e as camisetas das mais diversas turnês do “Boss” eram vistas em todos os lugares.

Piquenique no parque para ver Bruce Springsteen

Obviamente, com uma população de tal porte, Odense não possui um estádio apto a receber tanto público — o time de futebol local, Odense BK, atualmente joga no Nature Energy Park, com capacidade para pouco além de 15 mil pessoas. O show de Bruce Springsteen ocorreu num parque, Dyrskueplads, daqueles integrados à cidade, algo comum na Europa. O local estava devidamente cercado para controlar o acesso à pista, então, algumas pessoas montaram suas cadeirinhas nos arredores para pelo menos ouvir a apresentação de ingressos esgotados.

Ao entrar na enorme pista do show, fora do setor premium, a sensação era de um piquenique no parque. Os portões foram abertos três horas antes da apresentação e as pessoas se sentavam e deitavam na área gramada, lotada de bares, opções de comida e banheiros. A caminhada desde a entrada do setor mais popular até o palco beirava 1 km e era difícil evitar pisar nas pessoas ou em suas bebidas espalhadas pelo chão.

Foto: Thiago Zuma

Poucos minutos antes das 20h, horário marcado para o início da apresentação, já estavam todos em pé. Um público bem variado, com alguns jovens usando seu recém adquirido chapéu de marinheiro típico dos formados no ensino médio local — assistam ao filme “Druk” em plataformas de streaming para ter uma noção —, mas a maioria era composta por pessoas bem mais velhas, algumas com dificuldade de locomoção. Algo parecido com o de um show de Paul McCartney no Brasil.

Foto: Thiago Zuma

Às oito da “noite” em ponto, Bruce Springsteen subiu ao palco de gravata e coletinho, rindo ao tentar saudar em língua local a cidade de nome de pronúncia irreconhecível perto de sua grafia, ainda com o sol escondido sob as nuvens de um verão apenas no nome. A temperatura amena piorava a cada rajada de vento, mas era ótima para se acompanhar um longo show lotado.

A primeira música da ainda tarde sem sinal algum de escurecimento foi “Lonesome Day”. A faixa de “The Rising” (2002) vem tradicionalmente sendo utilizada como abertura na atual turnê de Springsteen com sua legendária E Street Band, em versão big band, estendida com backing vocals e naipe de metais.

Na sequência, o acelerado hit “No Surrender”, de “Born in the USA” (1984), e a clássica “Prove It All Night”, de “Darkness on the Edge of Town” (1978), mostravam nas embromações finais o baterista Max Weinberg empolgado nos pedais de seu bumbo como se fosse o filho Jay, ex-Slipknot e atual Suicidal Tendencies. Mas o uber-cool baixista Garry “W” Tallent seguia percorrendo o palco tranquilamente com seus óculos escuros, não muito úteis no tempo encoberto de Odense.

Enquanto os três telões, nas laterais e atrás do palco, mostravam o público do setor premium empolgado, o povo acompanhava pelo resto da pista de forma mais contida, cada um cantando mais para si. As danças eram tímidas, ainda que a atual formação da E Street Band executasse de forma mais suingada as músicas com um naipe de metais composto por Barry Danielian, Ed Manion, Ozzie Melendez, Curt Ramm ao lado do perene Jake Clemons e Weinberg tivesse a ajuda de Anthony Almonte na percussão.

Isso não mudou com a desenterrada e animada “My Love Will Not Let You Down”, gravada na época de “Born in the USA”, mas lançada apenas na coletânea de canções perdidas “Tracks” (1998), nem no rock rocambolesco de “E Street Shuffle”, a quase faixa-título do segundo álbum “The Wild, The Innocent and the E Street Shuffle” (1973).

“Reason to Believe” foi executada com início mais roqueiro em relação à original de “Nebraska” (1982), aos poucos se tornando mais próxima da versão original. O público, claramente mais frio, mas inegavelmente composto por fãs da carreira de Springsteen, parecia ainda se aquecendo para uma maratona, como se aguardassem a hora de se soltar.

E o público finalmente se deixou levar por Springsteen

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Poderia ter acontecido após Springsteen com sua gaita duelar em solo ao lado de Clemons no saxofone em “The Promised Land”, a primeira de “Born to Run” na ainda tarde dinamarquesa. Porém, as coisas começaram a mudar, por coincidência, quando este que vos escreve atraiu olhares curiosos ao gritar alto os primeiros versos de “Hungry Heart”, hit de “The River” (1980) cujo início é tradicionalmente deixado para ser cantado pelo público.

Springsteen já descia uma plataforma que o deixava no vão entre o palco e o público para cumprimentá-lo, especialmente às crianças acompanhadas dos pais (ou avós?) na fila do gargarejo, todos com seus tradicionais cartazes pedindo músicas, entre outras mensagens como “Bruce for President”.

“Spirit in the Night”, do primeiro disco “Greetings from Asbury Park, NJ” (1973), manteve a trajetória de “liberação” do público antes de “Trapped”, cover de Jimmy Cliff, ser executada pela banda atendendo ao pedido de um dos cartazes.

A partir daí, virou passeio. A ode ao rockabilly sessentista de “Working on the Highway”, com Springsteen dançado com seu violão à la Elvis ou Eddie Cochrane, e o cadenciado hit “Darlington County” mantiveram o público aceso.

E Springsteen fez o que quis. Primeiro, baixou os ânimos com as baladas “My Hometown” e “The River”, acompanhadas em belo e melancólico uníssono pelo público. Depois, elevou o astral com o cover do Commodores em “Nightshift”, presente no recente disco de regravações “Only the Strong Survive” (2022).

Foi o momento de dar holofotes às suas vocalistas de apoio Lisa Lowell, Michelle Moore e principalmente Ada Dyer, a dona do show enquanto o chefão mostrava todo o suingue de um ítalo-neerlandês de Nova Jersey ao lado do cantor Curtis King, que completou o time.

Então veio “Last Man Standing”, dedicada a uma mulher da plateia que sinalizara ter seu marido falecido recentemente, com Springsteen acompanhado apenas de Barry Danielian no trompete. E o “professor” Roy Bittan, bem estático atrás de seu piano, introduziu “Backstreets” no momento mais emocionante do que começava a parecer um entardecer.

O show se aproximava das duas horas quando “Because the Night”, com Nils Lofgren girando feito uma broca com sua guitarra no solo, eletrizou novamente o público, que acompanhou nas palmas “She’s the One”.

Depois da dupla de faixas-títulos recentes “Wrecking Ball” (2012) e “The Rising” terem recepções dignas de clássicos, a reta final da primeira parte do show veio com os hinos “Badlands” e “Thunder Road”, cantados a plenos pulmões pelo público em geral, como esperado.

Reta final de clássicos encerra show de 3h

Não foi longa a espera para a banda voltar ao palco e botar a terra para tremer com uma sequência “enviagrada” de clássicos que fizeram história. O megahit “Born in the USA” veio emendado a uma “Born to Run” cada vez menos corrida. “Bobby Jean”, com sua melodia acompanhada pelos braços do público, antecedeu “Dancing in the Dark” sem nenhuma Courteney Cox local subindo ao palco para dançar com Springsteen. Após a sua sempre empolgada introdução dos músicos da E Street Band, veio “Tenth Avenue Freeze Out”, com direito às já tradicionais homenagens aos falecidos Clarence Clemons e Danny Federici.

Estávamos próximo das 23h, finalmente havia algo parecido com uma noite em Odense e o cover para “Twist and Shout”, que já havia recebido uma pequena menção durante “Dancing in the Dark”, veio inteira com Springsteen e Van Zandt discutindo se o público deveria voltar pra casa.

Apesar dos clamores do público para que a E Street Band permanecesse, sua participação acabou nela mesmo, com todos músicos da banda saindo do palco cumprimentados um por um por Bruce Springsteen. Sozinho no palco com seu violão e gaita, ele se despediu com “I’ll See You in My Dreams”, de “Letter to You”, cuja letra também apareceu no telão.

Apesar de prometer ver o público novamente em breve, com os cancelamentos que se tornaram rotina na atual turnê — uma excursão pelos Estados Unidos no segundo semestre de 2023 fora reagendada enquanto algumas datas no atual giro foram adiadas para 2025 —, talvez a próxima vez que vejamos Bruce Springsteen seja apenas nos nossos sonhos.

Por pouco mais de três horas, porém, o lendário artista pareceu imortal no auge dos seus 74 anos ao escrever mais um conto de fadas para a cidade dinamarquesa de Odense.

Bruce Springsteen & the E Street Band — ao vivo em Odense, Dinamarca

  • Local: Dyrskuepladsen
  • Data: 9 de julho de 2024
  • Turnê: Springsteen & E Street Band 2024 World Tour

Repertório:

  1. Lonesome Day
  2. No Surrender
  3. Prove It All Night
  4. My Love Will Not Let You Down
  5. The E Street Shuffle
  6. Reason to Believe
  7. The Promised Land
  8. Hungry Heart
  9. Spirit in the Night
  10. Trapped (Jimmy Cliff cover)
  11. Working on the Highway
  12. Darlington County
  13. My Hometown
  14. The River
  15. Nightshift (Commodores cover)
  16. Last Man Standing (acústica)
  17. Backstreets
  18. Because the Night (Patti Smith Group cover)
  19. She’s the One
  20. Wrecking Ball
  21. The Rising
  22. Badlands
  23. Thunder Road

Bis:

  1. Born in the U.S.A.
  2. Born to Run
  3. Bobby Jean
  4. Dancing in the Dark
  5. Tenth Avenue Freeze-Out
  6. Twist and Shout (The Top Notes cover)

Bis 2:

  1. I’ll See You in My Dreams (acústica; solo)

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Thiago Zuma
Thiago Zuma
Formado em Direito na PUC-SP e Jornalismo na Faculdade Cásper Líbero, Thiago Zuma, 43, abandonou a vida de profissional liberal e a faculdade de História na USP para entrar no serviço público, mas nunca largou o heavy metal desde 1991, viajando o mundo para ver suas bandas favoritas, novas ou velhas, e ocasionalmente colaborando com sites de música.

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