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Como “Bleach” mostrou a promessa e o conflito no Nirvana

Punk, metal, pop e underground estavam todos presentes na estreia promissora do grupo de Aberdeen, um fim de mundo nos EUA

Nem todo artista chega no mundo da música enfiando o pé na porta. Alguns álbuns de estreia sequer são indicadores como a carreira de um artista pode se desenvolver – pense no começo synthpop do Ministry ou o infame LP de bossa nova do Roberto Carlos. Entretanto, na maioria dos casos o primeiro disco dá uma pista do futuro. Era a situação do Nirvana.

Era praticamente impossível prever que o Nirvana viria a se tornar a banda definitiva de sua geração, e um dos artistas mais importantes da história. No entanto, havia desde a estreia os elementos responsáveis por essa ascensão, assim como a tensão entre os desejos musicais de Kurt Cobain e sua aderência ao dogma do punk.

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Vamos falar de “Bleach”.

Os C*s de Judas

O noroeste do Pacífico é um lugar ermo. Seattle fica a 13 horas de carro de San Francisco, a metrópole mais próxima. Por isso, ao longo das primeiras décadas do rock a região tinha uma certa infâmia. Era um lugar nos limites da civilização, onde os Beatles podiam pescar da janela de seu hotel e lendas urbanas sobre o Led Zeppelin envolvendo tubarões teriam ocorrido.

Tudo que chegava naquela parte dos Estados Unidos era abraçado com carinho e devoção pela dificuldade de qualquer coisa chegar. E a intensidade com a qual os locais se dedicavam à música transformava tudo. O melhor exemplo disso é o caso de um cantor de R&B chamado Richard Berry.

Berry tocou uma série de shows em Washington nos anos 1950 como artista de abertura. Um de seus singles começou a tocar em rádios locais e logo se tornou uma parte integral do repertório de bandas da região. Um desses grupos gravou uma versão tão descontrolada e incompreensível a ponto de serem investigados pelo FBI por subversão. O cover chegou ao 20º lugar da Billboard e é creditado como uma das pedras fundamentais do punk: “Louie Louie”.

Música chegava na região e era fundamentalmente alterada para algo mais visceral, independente da origem. Isso em grande parte porque a completa falta de perspectiva comercial permitia artistas testarem os limites de sonoridade. Então, todo artista considerado extremo pelo resto dos EUA – Stooges, MC5 e Blue Cheer, por exemplo – era visto como legal no noroeste do Pacífico. 

Quando o hardcore surgiu no sul da Califórnia, um dos primeiros lugares a abraçar o estilo foi essa região à beira da civilização. Quando o Black Flag resolveu chutar o balde e abandonar a velocidade tradicional do gênero e adotar uma influência de Black Sabbath, o público da banda rejeitou em massa a mudança. Menos o pessoal do noroeste do Pacífico.

Foi nesse ambiente todo que o Nirvana surgiu, só que ainda mais fechado. Kurt Cobain e Krist Novoselic nasceram e cresceram em Aberdeen, uma cidade madeireira perto da costa a cinco horas de Seattle. Ou seja, se o maior centro urbano da região já ficava onde o vento faz a curva, os dois jovens cresceram ainda mais isolados.

E isso significava pouco acesso ao mundo exterior. Revistas de circulação chegavam na cidade, mas a música revolucionária sendo reportada não, como Cobain disse em uma entrevista recuperada pelo Yahoo:

“Eu sabia da existência do punk em 78-79 de ler a revista Creem, mas eu tinha só 12 anos e era jovem demais para encontrar – especialmente morando em Aberdeen. Aí em 1983 finalmente encontrei algumas pessoas que tinham coisa de punk rock. Conheci os Melvins, que me gravaram fitas de compilação. A primeira canção punk que escutei foi ‘Damaged II’ do Black Flag.”

Dois garotos

Kurt Cobain quando criança amava os Beatles e os Monkees, impressionando adultos com seu talento precoce para música e artes. Entretanto, a desilusão do divórcio de seus pais junto com a realidade de ser classe média baixa tiveram um efeito forte na sua psique enquanto ia da infância para a adolescência. 

Michael Azerrad, autor do livro “Come As You Are: The Story of Nirvana”, caracterizou o jovem Cobain da seguinte forma:

“Kurt era como muitos garotos da sua geração – na verdade, todo mundo que já fez parte do Nirvana (tirando uma pessoa) veio de lares partidos. A taxa de divórcio explodiu no meio dos anos 70, quase dobrando em um espaço de 10 anos [até 1969, nenhum estado dos EUA permitia divórcio sem prova de responsabilidade legal]. As crianças desses casamentos falidos não tiveram uma guerra mundial ou uma Grande Depressão para lidar. Eles só não tinham uma família. Consequentemente, suas batalhas eram particulares.”

Krist Novoselic era um headbanger relativamente popular da mesma escola que Kurt. Filho de dois imigrantes croatas, ele cresceu no sul da Califórnia antes de sua família se mudar para Aberdeen, e chegou a morar por um ano na antiga Iugoslávia. Por isso, ele tinha uma vivência muito maior que os outros garotos da cidade. Ele foi apresentado ao punk bem antes, tendo acesso a bandas enquanto morava na Europa.

Os dois jovens ficaram amigos por causa dos Melvins. Kurt morou por um tempo em Montesano, uma cidade próxima de Aberdeen, onde cursou parte do Ensino Médio. Na escola, ele conheceu os integrantes da banda e ficaram amigos. Quis o destino que quando retornasse a Aberdeen o grupo recrutasse seu colega de escola Dale Crover para tocar bateria.

Conhecido de Crover, Novoselic aparecia nos ensaios em Aberdeen e começou a fazer parte da órbita da banda, assim como Kurt. Em “Come As You Are: The Story of Nirvana”, Cobain descreveu sua impressão sobre seu futuro companheiro de banda:

“Ele era um cara hilário que obviamente tinha um senso de humor diferente. Todo mundo ria dele, mas eu estava rindo com ele, porque ele basicamente estava zoando todo mundo. Ele era um cara muito inteligente, engraçado e falastrão. Ele era mais alto que todo mundo na escola. Ele era enorme. Foi uma pena que nunca andei com ele, porque precisava mesmo de um amigo durante o Ensino Médio.”

Não demorou muito para que, sob a influência do Melvins novamente em sua vida, Kurt recrutou Dave para gravar uma fita demo de algumas canções nas quais estava trabalhando. Os dois usaram equipamento caseiro da tia de Cobain para produzir “Fecal Matter”. Uma das primeiras pessoas a receber uma cópia foi Novoselic.

Krist adorou quando ouviu e quis formar uma banda com Kurt. Só um detalhe: entre a fita ser entregue a Novoselic e ele escutá-la demorou três anos. Antes tarde que nunca. Após algumas mudanças de pessoal e períodos como grupo cover de Creedence Clearwater Revival, os dois recrutaram o baterista Aaron Burckhard no começo de 1987 para trabalhar em cima do material de “Fecal Matter”. Logo, passaram a compor músicas originais.

A cena de Seattle e de Olympia

O que conhecemos hoje em dia como a cena de Seattle é uma jogada de marketing. Desde o começo. Bruce Pavitt e Jonathan Poneman fundaram a Sub Pop Records em 1986 com o intuito de promover artistas independentes locais. As bandas do noroeste do Pacífico eram tão isoladas que sua mistura de metal, punk, garage rock e rock clássico parecia vinda de outro planeta. Tratava-se de música completamente fora de seu tempo.

A maneira encontrada pela Sub Pop foi apelar para a noção que o resto dos EUA tinha da região e exagerar ainda mais essa percepção. Artistas do selo eram vendidos como trogloditas e neandertais para a mídia internacional curiosa com o conceito exótico de punk da terra dos lenhadores. 

A questão era: nenhum dos artistas inicialmente promovidos pela Sub Pop – Soundgarden, Green River, Mudhoney, Tad – eram punks vindos de onde só tinham lenhadores. Mas tinha uma banda que vinha.

Kurt decidiu chamar o grupo de Nirvana por ir contra a corrente de alcunhas agressivas do punk. Eles fizeram seu primeiro show sob esse nome em março de 1988 na cidade de Olympia, para onde Cobain logo se mudou, enquanto Novoselic foi morar em Tacoma. Não demorou muito para eles perderem contato com Burckhard e a banda precisar de um baterista.

Dale Crover quebrou galho por um tempo, mas quando se mudou para San Francisco, recomendou Dave Foster para a função. O baterista não durou muito, pois se metia constantemente em problemas – chegou até a ser preso. O substituto permanente foi Chad Channing, que Kurt e Krist conheciam de tocar shows com sua banda, Tick-Dolly-Row.

A esse ponto, Kurt estava estabelecido em Olympia, cuja cena musical era bem diferente de Seattle. Baseada em torno da Evergreen State College – onde Bruce Pavitt estudou –, apresentava muito mais variedade em termos de sonoridades, e uma galera em particular chamou a atenção de Cobain.

K Records era um selo criado por Calvin Johnson, um radialista de uma emissora de Evergreen, State College. Seu foco era uma versão independente do mesmo tipo de música que Cobain escutava quando criança, o pop açucarado e inocente dos Beatles e Monkees, através de um prisma da sensibilidade outsider. Em “Come As You Are: The Story of Nirvana”, Kurt falou sobre sua exposição ao povo nessa cena em particular:

“Abriu novas portas para música que eu nunca havia escutado antes. Me fez perceber que por anos não havia pensado na minha infância. Eu tentei esquecer dela. Eu esqueci de tudo. Me fez olhar para minha infância e ter boas lembranças dela. Foi um bom lembrete de inocência.”

Sub Pop Records

Enquanto Dale Crover quebrava um galho, antes mesmo da banda sequer se chamar Nirvana, eles entraram num estúdio chamado Reciprocal Recording em janeiro de 1988 para gravar uma demo decente. A fama de Dale como baterista foi suficiente para que um dos donos do estúdio mudasse o cronograma e trabalhasse de engenheiro na sessão. 

O nome desse cara era Jack Endino. Ele havia se estabelecido como uma figura central na cena de Seattle por trabalhar rápido, barato e conseguir um som de qualidade. Em um dia, eles gravaram dez faixas. O engenheiro ficou tão impressionado com a qualidade da demo que fez uma cópia particular para si e outra para um amigo: o já citado Jonathan Poneman.

Vale ressaltar que apesar de os músicos terem se mudado para Olympia e já se apresentarem nas maiores cidades do estado de Washington, o Nirvana ainda era de Aberdeen. Ninguém em Seattle realmente os conhecia. E quando Poneman começou a apresentar a demo do grupo a membros proeminentes da cena, aquele pensamento bairrista começou a aparecer, de achar a banda nada de mais simplesmente por não fazer parte da “panela”.

Poneman, mesmo assim, ofereceu lançar um single deles. A demo havia se tornado popular em Seattle mesmo com a panelinha torcendo o nariz. Em junho de 1988, já batizados de Nirvana e com Chad Channing na formação, eles entraram no estúdio para gravar seu primeiro single.

A escolha de “Love Buzz”, uma cover do grupo sueco Shocking Blue, tem algumas explicações. Primeiro, Novoselic era um fã da banda, fez Cobain escutar e a canção se tornou parte da setlist do Nirvana. Segundo, eles não queriam lançar algo já gravado na demo. Parte pela fita já ser conhecida localmente, mas também porque os interesses do grupo estavam mudando.

Cobain estava deixando sua fascinação headbanger para trás e se ligando mais em pop dos anos 60 e garage rock. Especialmente um grupo antigo de Seattle chamado The Sonics, que começou a ouvir ao se tornar fã do recém formado Mudhoney. O cover era um sinal para onde o som do Nirvana poderia ir.

“Love Buzz” foi o primeiro single do mês da Sub Pop, uma jogada de marketing na qual o selo lançava compactos em tiragens limitadas e numeradas, com o objetivo de criar hype através de escassez. O Nirvana, vivendo basicamente na miséria na época, não ficou feliz de ver sua música não vender muito de propósito.

Rock alternativo

O processo de evolução sonora do Nirvana foi tenso. A demo gravada em janeiro de 1988 já não refletia mais a sensibilidade do grupo em junho. A cada dia que passava, um novo conflito interno surgia. Kurt Cobain era um devoto do underground, mas à medida que passava o tempo, ele se questionava mais, como contou a Michael Azerrad em “Come As You Are: The Story of Nirvana”:

“Tinha muita mensagem confusa correndo por nossas cabeças. A gente não sabia o que queríamos fazer mesmo. Não tínhamos nosso próprio com. Como todos os outros, estávamos aceitando que podíamos admitir gostar de vários tipos de música. Ser um punk, ir num show do Black Flag e falar que gostava de R.E.M… Não dava pra fazer isso.”

A melhor ilustração de como essas barreiras descritas por Cobain eram ilusórias vem do fato que os integrantes do R.E.M. e do Black Flag sempre foram amigos e as duas bandas se apoiavam no começo dos anos 80. O problema de ser um punk no fim do mundo é não ter acesso a esse tipo de informação.

De qualquer jeito, as composições de Kurt começaram gradualmente a mudar. Algumas canções novas do Nirvana procuravam se adequar ao resto do material lançado pela Sub Pop, mas ao mesmo tempo ele ia além até mesmo disso. 

Kurt vivia em Olympia com sua namorada, Tracy Marander. Ela era a principal provedora do casal, com o músico trabalhando apenas em bicos em meio a turnês. Isso seria o suficiente para criar tensão entre qualquer casal, mas também havia algo que a irritava muito: Cobain tirava inspiração de qualquer interação, independente da banalidade, para compor; mesmo assim, nunca escreveu uma música sobre ela.

Essa briga motivou o compositor a fazer algo a respeito. Ele sentou no apartamento que dividia com Marander a tarde inteira ouvindo o álbum With the Beatles para ter inspiração. O resultado foi “About a Girl”, a canção mais pop do Nirvana até então. Se “Love Buzz” era uma indicação de um caminho, essa música era o primeiro passo por esse.

“Love Buzz” saiu em novembro de 1988 e angariou certo interesse na imprensa britânica. Vendeu pouco por causa da tiragem limitada proposital da Sub Pop. No mês seguinte eles retornaram ao estúdio para gravar o que seria seu álbum de estreia.

Três canções da demo com Crover – “Floyd the Barber”, “Paper Cuts” e “Downer” – entraram no disco final, em parte porque Kurt e Krist ficaram insatisfeitos com versões gravadas com Channing. O baterista seria demitido só em 1990, substituído por Dave Grohl, mas as sementes da insatisfações já brotavam.

“Bleach” foi lançado em 15 de junho de 1989. O álbum vendeu pouco no começo, mas atraiu resenhas positivas em ambos os lados do Atlântico e ganhou espaço em rádios universitárias nos Estados Unidos. Logo, eles estavam fazendo turnês nacionais e chamando a atenção de vários contemporâneos.

O grupo de rock experimental nova-iorquino Sonic Youth rapidamente se tornou um dos maiores defensores do Nirvana. E isso foi bom para a banda de Seattle, pois esse grupo tinha uma posição curiosa na indústria musical. Eles assinaram com a David Geffen Company em 1990 essencialmente como artistas e representantes de A&R, então tinham poder de recomendar nomes para a gravadora.

O Nirvana calhou de ser um dos nomes sugeridos. A Geffen não esperava muita coisa quando assinou com o grupo de Aberdeen. Afinal, eram do fim do mundo.

Por décadas o povo do noroeste do Pacífico pegou qualquer migalha de rock que chegava na região e amou com fervor quase religioso. O mundo estava prestes a experimentar a mesma sensação graças ao Nirvana.

Nirvana — “Bleach”

  • Lançado em 15 de junho de 1989 pela Sub Pop
  • Produzido por Jack Endino

Faixas:

  1. Blew
  2. Floyd the Barber
  3. About a Girl
  4. School
  5. Love Buzz (Shocking Blue cover)
  6. Paper Cuts
  7. Negative Creep
  8. Scoff
  9. Swap Meet
  10. Mr. Moustache
  11. Sifting

Músicos:

  • Kurt Cobain, creditado como “Kurdt Kobain” (voz, guitarra)
  • Krist Novoselic, creditado como “Chris Novoselic” (baixo)
  • Chad Channing (bateria, pandeireta na faixa 3)

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Pedro Hollanda
Pedro Hollanda
Pedro Hollanda é jornalista formado pelas Faculdades Integradas Hélio Alonso e cursou Direção Cinematográfica na Escola de Cinema Darcy Ribeiro. Apaixonado por música, já editou blogs de resenhas musicais e contribuiu para sites como Rock'n'Beats e Scream & Yell.

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