Ian Anderson passeia por décadas com seu Jethro Tull em SP sem apelar aos hits

Voz nem de longe é a mesma, mas cantor e flautista segue conduzindo a banda no palco com carisma e sem concessões — nem aos celulares

Já próximo do final do show, após executar “Mrs. Tibbets”, faixa do penúltimo álbum do Jethro Tull “dedicada” à mãe do piloto da aeronave que soltou a primeira bomba atômica no mundo na Segunda Guerra Mundial, Ian Anderson arrematou: “se essa não foi depressiva o suficiente, agora vamos tocar uma música sobre o fim dos tempos”.

E veio “Dark Ages”, uma daquelas típicas viagens progressivas cheia de variações em seus quase dez minutos. A pesada e apocalíptica música não fazia parte dos repertórios do grupo desde a turnê de divulgação de seu disco-mãe “Stormwatch”, de 1979.

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A voz de Ian, prestes a completar 77 anos de idade, não é a mesma. É óbvio. Mas, movimentando-se o tempo todo pelo palco, o lendário cantor e flautista não pareceu nem perto de se aposentar. Nem de apostar em repertórios batidos para fãs que querem sempre as mesmas músicas.

*Por decisão do artista, o fotógrafo do site IgorMiranda.com.br não foi credenciado para esta cobertura.

Primeiro retorno após retomada não lota

A última apresentação do Jethro Tull em São Paulo ocorreu no mesmo local onde hoje é o Vibra, ainda com outro nome, no longínquo 2007. Pode até parecer que a banda estava longe do Brasil fazia muito tempo, mas, até a pausa forçada pela pandemia, Ian Anderson bateu ponto por aqui com sua carreira solo quase ano sim, ano não — após encerrar a lendária banda em 2012, separando-se de Martin Barre, guitarrista por mais de quatro décadas.

A alta frequência de shows do vocalista no país ajuda a explicar por que não se esgotaram os ingressos para a apresentação do Jethro Tull, numa noite de sábado, na zona sul de São Paulo. Em seu formato auditório, o local comporta aproximadamente quatro mil pessoas sentadas. Quase todos os lugares na pista estavam vendidos, mas estava bem esvaziado no setor superior, de preços mais baratos.

Foto: Thiago Zuma
Foto: Thiago Zuma

De certa forma, o Jethro Tull que veio ao Brasil esteve quase no meio-termo de uma continuação da carreira solo de Anderson. Da formação atual, o tecladista John O’Hara e o baixista David Goodier já estavam na banda quando ela encerrou suas atividades e seguiram acompanhando o vocalista.

Scott Hammond, por sua vez, assumiu as baquetas nos discos solo de Anderson. A novidade desta turnê brasileira foi a estreia de Jack Clark nas guitarras, mas também não tanto assim. O músico já havia tocado baixo e guitarra base substituindo Goodier e O’Hara em algumas excursões nesta retomada das atividades do Jethro Tull.

Voz não atrapalha, mas repertório não agrada

Ian Anderson confirmou já há algum tempo sofrer de uma doença pulmonar inflamatória obstrutiva crônica. Mesmo assim, ele continua capaz de se movimentar pelo palco enquanto toca sua flauta naturalmente. Já a voz tem seu alcance bem limitado e seu estilo de cantar acabou se tornando mais declamatório, quase como se faltasse fôlego para manter o tom num verso inteiro. Não chegou a comprometer e contou com a ajuda do resto da banda nos vocais de suporte.

Ao término do show, porém, ouvia-se reclamações nas escadarias do Vibra quanto ao repertório executado nesta noite. A turnê atual se chama “The Seven Decades”, referência a incluir material desde os anos 1960. Dividido em duas partes, o show não se escora apenas em seus hits em suas duas horas, incluído o intervalo de vinte minutos.

Intervalo que foi anunciado como apenas quinze minutos, no qual Ian Anderson também pediu ao público visitar as barracas de merchandising e comprar camisetas, “até para amigos”. Mas nem só de piada, no entanto, foram as comunicações durante a noite. Antes de o show começar, um anúncio ostensivo no telão — também falado — ameaçava retirar quem se atrevesse a fazer fotos e vídeos durante o evento.

O repertório tem sido bem engessado na turnê brasileira e não teve qualquer mudança em relação às apresentações anteriores. Natural pela recém-chegada de Jack Clark, que traz mais peso às guitarras, confirmada oficialmente pela banda ainda neste mês de abril. E também pelo bom trabalho de vídeos no telão, ora trazendo imagens nostálgicas, ora dando suporte às inspiradas letras de Ian Anderson.

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O trabalho de iluminação foi simples e eficiente. Nada que causasse alucinações posteriores no público de média de idade mais elevada. Como era de se esperar, as luzes se focaram no dono da bola a maior parte do tempo, mas não deixaram de dar holofotes a quem se destacava ao longo de cada canção executada.

É dos 70s que o público gosta mais

Com quinze minutos de atraso, o telão se apagou com mais uma imagem falando sobre a proibição do uso de celulares, logo trocada por a de um disco de vinil enquanto a banda subiu ao palco ao som de “My Sunday Feeling”. A faixa de “This Was” (1968) deu o pontapé à primeira parte da apresentação, executada de forma cronológica em seu início.

Anderson, carismático e simpático, aos poucos anunciava os músicos conforme introduzia as músicas seguintes. O novato Clark foi mencionado enquanto o vocalista, irônico, dedicava “We Used to Know”, do disco “Stand Up” (1969), à banda Eagles, dada à “coincidente similaridade” do fraseado final do solo de guitarra ao de “Hotel California”, faixa-título do álbum de 1976.

Como era de se esperar, o material setentista foi o mais ovacionado na noite. Até porque um clássico do porte de “Heavy Horse”, do disco de mesmo nome lançado em 1978, nunca vai passar em branco. Levou a primeira parte da apresentação ao seu auge logo na terceira música. Não que “Weathercock”, na sequência, tenha sido mal recebida, mas o nível era muito alto.

Nem seria a única faixa dos anos 1990 que manteria aceso um público de rock progressivo. “Roots to Branches”, faixa-título do álbum de 1995, mostrou-se ainda mais pesada ao vivo. Seria apenas um momento esquecível à maioria dos presentes, ainda se recompondo após a dupla setentista, não fosse pelo sofrimento de Anderson para chegar nos tons originais da ponte antes do refrão, cantado apenas por Goodier, O’Hara e Clark.

A única década que ficou “órfã” no repertório foram os anos 2010, quando Anderson esteve ativo apenas em sua carreira solo, ignorada nesta noite. Qualquer coisa da segunda parte de “Thick on a Brick” (2012) ou de “Homus Erraticus” (2014) seria mais representativa do que a faixa “Holly Herald”, única da primeira década do atual século.

“Nunca é cedo demais para celebrar o Natal”, disse Anderson, destacando a percussão de Hammond, ao anunciar a faixa, extraída de “The Jethro Tull Christmas Album” (2003), que é medley instrumental envolvendo a canção tradicional “The Holly and the Ivy” e a peça “Hark! The Herald Angels Sing”, de Felix Mendelssohn.

A década perdida foi compensada pelas quatro faixas dos trabalhos mais recentes do Jethro Tull. Os dois discos lançados pela banda após a retomada de suas atividades foram representados por uma música em cada metade da apresentação.

Na reta final antes do intervalo, quebrando a ordem cronológica, vieram a pesada “Wolf Unchained” do recente “RökFlöte” (2023), e a progressiva “Mine is the Mountain”, do antecessor “The Zealot Gene” (2022), em mais um momento de sofrimento de Anderson para reproduzir os falsetes do refrão. Ambas não receberam nada além de discretos aplausos dos presentes.

A tarefa de despertar reações entusiasmadas ficou para a já tradicional versão do Jethro Tull para “Bourée”, peça composta por Johann Sebastian Bach trezentos anos atrás que Anderson “arruinara”, em suas próprias palavras nesta noite, no álbum “Stand Up” (1969). Foi quando o músico tocou a clássica melodia de flauta de pernas cruzadas, sua pose icônica, que o público despertou aos gritos.

Retorno morno que só desperta no fim

Encerrada a primeira parte da apresentação após meros cinquenta minutos, ficou no telão uma imagem de um Ian Anderson compenetrado encarando o público durante o intervalo. Quando as luzes se apagaram, ele empunhou um binóculo e, em cada lente, foi ressaltada a proibição do uso de máquinas fotográficas e celulares.

Foto: Thiago Zuma
Foto: Thiago Zuma

“Farm on the Freeway” iniciou aos 45 minutos da segunda metade do show com um tom de saudosismo a uma parte do público, provavelmente presente na primeira vez que o Jethro Tull esteve no país em 1988. À época, promoviam o disco “Crest of a Knave” (1987), premiado em 1989 com um Grammy para a “performance hard rock / heavy metal” — batendo uma certa banda ascendente da época chamada Metallica.

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Nem ela, nem a nova “The Navigators” conseguiram motivar a plateia, que demonstrava alguma impaciência e começava a clamar por clássicos. Estranhamente, todas as luzes do palco se apagaram, para serem acesas as do público enquanto a banda começava a executar a instrumental “Warm Sporran”, primeira da noite extraída do já citado “Stormwatch” (1979). Quando a iluminação se normalizou, Anderson tocava sua flauta apoiado na plataforma de suporte da bateria.

Após “Mrs Tibbets”, com imagens referentes às bombas nucleares no telão, veio a épica e apocalíptica “Dark Ages”, prenunciando a reta final da apresentação, em que nos manteríamos nos anos 1970, para a alegria do público, mais animado ao final da longa faixa. Ian Anderson, porém, sofria cada vez mais com sua voz.

A obrigatória “Aqualung”, faixa-título do disco de maior sucesso do grupo lançado em 1971, encerrou a segunda parte da apresentação com imagens no telão de pessoas sem teto pelo mundo. Após uma longa e pesada introdução enunciado suas partes em tempos diferentes, o público foi ao delírio quando Anderson entoou seus versos iniciais clássicos. Sua parte acústica foi executada em riffs tensos da guitarra de Clark como se a música tivesse sido composta durante a breve passagem de Tony Iommi pelo Jethro Tull.

Quase não houve espera pelo bis. Pouco mais de um minuto após apagadas as luzes, o telão avisou que, a partir de então, estava liberado o uso de máquinas fotográficas e celulares. O’Hara começou a brincar no teclado, logo acompanhado de leves solos Clark no smooth jazz que foram ganhando peso conforme Goodier e Hammond subiram ao palco.

Surgiu, finalmente, um saltitante Ian Anderson tomando seu lugar no centro do palco para dar o sinal e o pesado riff da clássica “Locomotive Breath”, outra do álbum “Aqualung”, encerrar a noite de forma majestosa, com a mensagem de que “o trem não vai parar e não tem como diminuir sua velocidade”.

Veremos Jethro Tull no Brasil de novo?

Duas horas após executarem os primeiros acordes da noite, os músicos do Jethro Tull se despediram conforme seus nomes eram anunciados com suas fotos no telão — incluindo também os membros da equipe técnica —, ao som mecânico de “Cheerio”, do álbum “The Broadsword and the Beast” (1982), relançado no ano passado em versão remixada por Steven Wilson.

Ian Anderson, obviamente o mais ovacionado durante a despedida, vem dizendo em entrevistas recentes que a fase atual da discografia do Jethro Tull é como se fosse a esperar em um ponto de ônibus: por um longo tempo não aparece nenhum, de repente chegam dois de uma vez. No caso da banda, até três, já que ele promete um novo álbum de inéditas para 2025.

Fica difícil, assim, apostar que a noite de sábado marcou a última passagem do Jethro Tull pelo Brasil, um de seus destinos obrigatórios. Resta saber se o público vai continuar interessado enquanto Ian Anderson segue sem fazer concessões à simples nostalgia em seus repertórios. Apesar da voz não ser a mesma, energia e carisma ele parece ter de sobra.

Jethro Tull — ao vivo em São Paulo

  • Local: Vibra
  • Data: 13 de abril de 2024
  • Turnê: The Seven Decades

Repertório:

Primeira parte:

  1. My Sunday Feeling
  2. We Used to Know
  3. Heavy Horses
  4. Weathercock
  5. Roots to Branches
  6. Holly Herald
  7. Wolf Unchained
  8. Mine Is the Mountain
  9. Bourrée in E minor (Johann Sebastian Bach)

Segunda parte:

  1. Farm on the Freeway
  2. The Navigators
  3. Warm Sporran
  4. Mrs. Tibbets
  5. Dark Ages
  6. Aqualung

Bis:

  1. Locomotive Breath

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Thiago Zuma
Thiago Zuma
Formado em Direito na PUC-SP e Jornalismo na Faculdade Cásper Líbero, Thiago Zuma, 43, abandonou a vida de profissional liberal e a faculdade de História na USP para entrar no serviço público, mas nunca largou o heavy metal desde 1991, viajando o mundo para ver suas bandas favoritas, novas ou velhas, e ocasionalmente colaborando com sites de música.

1 COMENTÁRIO

  1. tive a sorte de ver o Tull todas as vezes que vieram ao Brasil, desde 1988.
    De fato esta vez o repertorio foi muito ousado. Esqueceram clássicos, mas trouxeram belezas como Farm on the Freeway.
    Mr. Anderson ainda tem carisma, mas o grupo atual é bem inferior aos que vi (com Doane Perry fazendo falta na bateria). O guiarrista atual nao é Martin Berre, mas foi bem. O Tull ainda tem público para tours, embora esteja num patamar muito inferior ao Genesis. A produçao do Tull é bem fraca, com iluminaçao abaixo da média de um show de rock e falhas gritantes, como iluminar a platéia (algo já contado pelo Thiago).
    No geral, um pouco decepcionante se comparado a shows anteriores.

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