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“Quadrophenia”: a história da ópera rock impossível do The Who

Idealizado como um sucessor de "Tommy" para os shows, disco conceitual teve um legado frustrante ao vivo

The Who foi uma das bandas mais importantes dos anos 1960. Começando como selvagens que destruíam os instrumentos no final do show, o quarteto inglês fechou a década com a fama de inovadores e o melhor show do planeta. Isso graças ao lançamento de discos de estúdio lendários como “The Who Sell Out” (1967) e “Tommy” (1969), além do ao vivo “Live at Leeds” (1970).

A década seguinte do grupo começou com um triunfo na forma de “Who’s Next” (1971), após um longo período de turbulência e incerteza sobre o futuro da banda. Originalmente concebido como um álbum conceito complicado demais para ser realizado, o projeto tomou a forma de um disco normal e se tornou extremamente bem-recebido por público e crítica.

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Entretanto, a criatividade do guitarrista e principal compositor, Pete Townshend, já tinha em mente outro projeto conceitual. Uma ópera rock que examinava o estado psicológico da juventude alienada inglesa dos anos 1960, com os quatro integrantes da banda servindo como porções diferentes de sua psique fraturada.

Falemos de “Quadrophenia”.

Férias e tretas

Existia uma briga de egos entre as figuras principais do The Who. Roger Daltrey era o vocalista e rosto do grupo, conhecido por sua voz potente e temperamento explosivo; enquanto Townshend tocava guitarra e compunha, além de destruir instrumentos e quartos de hotel. À medida que a banda se tornou maior, contudo, as ambições dos dois começaram a divergir.

No final da década de 1960, Townshend começou a empurrar o grupo na direção de álbuns conceituais, explorando conceitos além do formato tradicional da indústria. Seja na canção multipartes “A Quick One, While He’s Away”, o experimento replicando rádios piratas em “The Who Sell Out” – com direito a jingles de produtos fictícios passando de propaganda entre faixas normais – ou na ópera rock “Tommy”, a habilidade do guitarrista conseguiu sempre sustentar sua ambição.

Contudo, o processo de desenvolvimento do sucessor de “Tommy” quase sinalizou o fim da estrada para o grupo. Idealizado por Townshend a partir de uma série de colunas para a Melody Maker começando em 1970, o projeto “Lifehouse” tentava conciliar várias coisas ao mesmo tempo. 

No centro de tudo estava um disco conceitual a ser trabalhado e gravado ao vivo durante apresentações do The Who no Young Vic Theater. A ideia era criar uma comunhão entre artista e plateia numa época em que Townshend temia ter afastado o público da banda com sua ambição. 

Essa ideia não deu certo pelos motivos esperados. O grupo conseguiu por um milagre sair dessa situação apenas com “Who’s Next”, lançado em agosto de 1971, o mais bem-sucedido álbum deles até então e considerado até hoje por muitos a obra prima do The Who. 

Após uma turnê de êxito até o final daquele ano, Townshend decidiu que eles precisavam de férias, pois estavam há sete anos sem parar. Sem mencionar que a banda, mesmo com um disco de sucesso, ainda era refém de sua ópera rock, como o guitarrista revelou à Classic Rock:

“Eu estava preocupado sobre a banda na época. Estávamos todos de saco cheio de tocar ‘Tommy’ e só tocávamos três músicas de ‘Who’s Next’ nos shows. Eu queria um substituto de ‘Tommy’ pros nossos shows. E os caras na banda estavam apreensivos, acho. Estava procurando um jeito de apaziguar os quatro egos excêntricos dos caras da banda. Sempre fomos diferentes, mas em 1972 eu achava que tinha apenas uma última chance de fazer algo para nos manter unidos e nos unir aos olhos dos fãs.”

A parada acabou revelando uma série de problemas nos bastidores. A banda se reuniu em maio de 1972 para gravar mais um disco conceitual, batizado “Rock is Dead—Long Live Rock”. O trabalho seria uma autobiografia do The Who, mas as sessões logo revelaram um problema: as músicas eram parecidas demais com os trabalhos anteriores.

Townshend e Daltrey começaram a brigar. O guitarrista tinha ambições artísticas e não queria comprometer sua visão em nome de só fazer dinheiro. O vocalista achava as ideias dele pretensiosas e estava preocupado com a saúde da banda.

O grupo desde antes da fama era agenciado por Chris Stamp e Kit Lambert, esse último dobrando como produtor. Durante as férias, Roger Daltrey começou a ter suspeitas sobre o trabalho dos dois, especialmente com relação ao lado financeiro.

Lambert já havia arrumado problemas durante o processo de “Who’s Next” por causa de seu vício em heroína e Townshend o afastou da produção. Sem falar que nesse período, ele tentou vender uma versão cinematográfica de “Tommy” para estúdios de cinema sem o conhecimento do grupo.

Uma auditoria feita a pedido de Daltrey revelou que a dupla não mantinha registros financeiros completos. O vocalista argumentou com os colegas de banda pela demissão de Stamp e Lambert.

Townshend e o baterista Keith Moon foram contra, mas mesmo mantidos, a relação da banda com seus empresários estava estremecida.

Voltando ao começo

A inspiração para o que veio a ser “Quadrophenia” veio parcialmente de Frank Zappa, ao menos na parte artística.

Apesar do sucesso do The Who, Townshend ainda estava frustrado com as dificuldades em produzir uma versão cinematográfica de “Tommy” e o fracasso do conceito de “Lighthouse”. Graças ao músico americano, o guitarrista encontrou o método perfeito de remediar esses problemas no sucessor de “Who’s Next”: o disco funcionaria como uma trilha musical, acompanhando uma narrativa semelhante a um filme.

A narrativa em si veio a partir de um encontro com Jack Lyons, um dos primeiros fãs do The Who. Ele sugeriu a Townshend explorar não só a história do grupo, mas a relação com seu público, especificamente a cultura mod da qual a banda surgiu.

O compositor gostou dessa ideia e e criou um personagem inspirado nos primeiros seis fãs da banda: Jimmy, um jovem de classe trabalhadora que encontra na cultura mod algo para pertencer. À medida que o tempo passa, ele só quer continuar mantendo aquele estilo de vida, mesmo com seus pais e namorada pedindo por mudanças no seu comportamento. 

Em meio a trabalhos horríveis, um vício em anfetaminas e uma condição psiquiátrica piorando, Jimmy vê o único mundo ao qual se sentia acolhido ficar no passado. As figuras antes idolatradas por ele se revelaram ordinárias. Perdido, o jovem rouba um barco e navega até um rochedo, onde contempla sua vida e uma possível morte.

Townshend explicou a ideia à Classic Rock:

“Jimmy representava um tipo especial de fã de pop-rock que exigia encapsular e refletir os membros da banda acompanhada por ele. Nesse caso, os quatro integrantes do The Who. Então era o oposto do que eu estava falando nas revistas musicais. Em 1972-73, não haviam mods, exércitos ou uniformes de qualquer tipo de público pop-rock, só camisas com golas enormes, e cortes de cabelo como numa peça de Shakespeare. Parte do que eu queria fazer era re-estabelecer com nossos fãs os princípios firmados por eles quando começamos. Eu acho que o Who era servo da plateia em 1964-65, e não o contrário. Nosso trabalho foi sempre dar ao nosso público algo que eles queriam, não fazê-los achar que éramos estrelas. Dentro do The Who, Keith Moon não estava apenas fazendo um papel de estrela, e sim levando a extremos. Ele se comportava como um príncipe saudita. Todos tínhamos nosso papel. Perdemos perspectiva em parte porque nossos shows eram tão intensos. Nos sentíamos invioláveis… Eu acho que senti solidariedade com fãs adolescentes, mas em 1972 eu tinha 27 anos e talvez era minha última oportunidade de escrever meu sucessor de ‘Tommy’, meu ‘O Apanhador nos Campos de Centeio’.”

Além de ser inspirado nos fãs, o personagem Jimmy também refletia os integrantes da banda em suas quatro personalidades distintas. Essas eram representadas em quatro canções: “Bell Boy” (Keith Moon), “Is It Me?” (John Entwistle), “Helpless Dancer” (Roger Daltrey) e “Love Reign O’er Me” (Townshend). O guitarrista se pôs a trabalhar em canções para o trabalho pelo resto de 1972.

Quando os integrantes se reuniram no início de 1973, o plano inicial era gravar no estúdio próprio deles em Battersea, mas esse ainda não estava pronto. A solução foi alugar a unidade móvel de Ronnie Lane, do Faces. Em entrevista ao Louder, Townshend falou sobre as contribuições dos outros membros da banda nas sessões:

“Eu me senti apoiado pelos caras, especialmente no momento que começaram a tocar as coisas novas que compus. Enquanto a gente tocava uma das primeiras canções gravadas para ‘Quadrophenia’, eu lembro pensar que nunca tínhamos soado tão bem, ou tocado com tanta convicção material não testado. Especialmente Roger. Ele cantou que nem um urso furioso. A versão dele de ‘Love Reign O’er Me’ nunca será superada.”

Resto do The Who e público boiando

Apesar dos elogios, o restante do The Who começou as sessões sem entender o conceito ou a narrativa por trás do disco. Talvez a empolgação viesse do fato que, apesar de fazer questão de todas as músicas fossem compostas por ele, Townshend gravou demos propositalmente esparsas, convidando maiores contribuições dos outros.

De todos, quem atendeu o chamado com maior gosto foi John Entwistle. Conhecido como talvez o melhor baixista da história do rock, o músico demonstrou sua maestria no instrumento na canção “The Real Me”, gravada em apenas um take. Além disso, mostrou sua habilidade em instrumentos de sopro arranjando várias partes que ele mesmo tocou.

Townshend também fez uso de gravações ao ar livre, samples e colagens ao longo do disco, o que demonstrou a influência de compositores modernos como Steve Reich e Terry Riley – esse último homenageado na faixa de abertura de “Who’s Next”, “Baba O’Riley”.

A compilação de todos esses elementos – partes individuais dos integrantes, sintetizadores, instrumentos de sopro, orquestra, samples incidentais – se provou uma tarefa árdua, especialmente na hora da mixagem.

O mais complicado, no entanto, acabou sendo encontrar o disco nas lojas. “Quadrophenia” foi lançado dia 26 de outubro de 1973, mas a oferta de cópias disponíveis acabou reduzida por um evento além da esfera da banda.

Naquele mês, a Organização de Países Exportadores de Petróleo (OPEP) anunciou um embargo aos Estados Unidos e qualquer nação industrializada apoiando Israel durante a Guerra do Yom Kippur. Ao contrário de uma tentativa anterior durante a Guerra de Seis Dias, em 1967, essa paralisação teve um efeito devastador na economia ocidental, quadruplicando o preço do barril e levando a racionamentos de energia e gasolina.

O que isso tem a ver com “Quadrophenia”? Vinil.

Mesmo assim, o disco estreou em segundo lugar tanto no Reino Unido quanto nos EUA. Foram mantidos fora do topo por “Pin Ups”, de David Bowie, e “Goodbye Yellow Brick Road”, de Elton John, respectivamente.

Infelizmente, os planos de substituir “Tommy” ao vivo com “Quadrophenia” logo caíram por terra. As primeiras apresentações do novo ciclo foram marcadas por problemas técnicos das inúmeras deixas de orquestras, sintetizadores e samples, sem falar do fato da trama precisar ser explicada entre as músicas. Apesar de ter se acostumado às exigências técnicas do disco no contexto ao vivo, o grupo abandonou o espetáculo em 1974.

Em 1979, “Quadrophenia” foi adaptado para o cinema. Curiosamente, o filme não é um musical, mas um drama focado na narrativa do álbum. Phil Daniels, que anos depois emprestou sua voz à canção “Parklife”, do Blur, interpretou Jimmy; já Sting fez sua estreia como ator no papel de Ace Face, o líder dos mods admirado pelo protagonista.

Pelo resto da carreira, o The Who continuou de certa maneira exatamente na posição que deixou Pete Townshend apreensivo em 1972. A tecnologia melhorou a ponto deles poderem incorporar mais canções de “Who’s Next” ao repertório, mas eles permaneceram reféns de “Tommy” por muito tempo.

Foi só nos anos 1990 e depois 2010 que a banda ressuscitou “Quadrophenia” como um espetáculo musical próprio, com atores e orquestra tocando junto. Ainda assim, o disco permanece como uma das obras-primas mais frustrantes da história do rock.

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Pedro Hollanda
Pedro Hollanda
Pedro Hollanda é jornalista formado pelas Faculdades Integradas Hélio Alonso e cursou Direção Cinematográfica na Escola de Cinema Darcy Ribeiro. Apaixonado por música, já editou blogs de resenhas musicais e contribuiu para sites como Rock'n'Beats e Scream & Yell.

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Idealizado como um sucessor de "Tommy" para os shows, disco conceitual teve um legado frustrante ao vivo

The Who foi uma das bandas mais importantes dos anos 1960. Começando como selvagens que destruíam os instrumentos no final do show, o quarteto inglês fechou a década com a fama de inovadores e o melhor show do planeta. Isso graças ao lançamento de discos de estúdio lendários como “The Who Sell Out” (1967) e “Tommy” (1969), além do ao vivo “Live at Leeds” (1970).

A década seguinte do grupo começou com um triunfo na forma de “Who’s Next” (1971), após um longo período de turbulência e incerteza sobre o futuro da banda. Originalmente concebido como um álbum conceito complicado demais para ser realizado, o projeto tomou a forma de um disco normal e se tornou extremamente bem-recebido por público e crítica.

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Entretanto, a criatividade do guitarrista e principal compositor, Pete Townshend, já tinha em mente outro projeto conceitual. Uma ópera rock que examinava o estado psicológico da juventude alienada inglesa dos anos 1960, com os quatro integrantes da banda servindo como porções diferentes de sua psique fraturada.

Falemos de “Quadrophenia”.

Férias e tretas

Existia uma briga de egos entre as figuras principais do The Who. Roger Daltrey era o vocalista e rosto do grupo, conhecido por sua voz potente e temperamento explosivo; enquanto Townshend tocava guitarra e compunha, além de destruir instrumentos e quartos de hotel. À medida que a banda se tornou maior, contudo, as ambições dos dois começaram a divergir.

No final da década de 1960, Townshend começou a empurrar o grupo na direção de álbuns conceituais, explorando conceitos além do formato tradicional da indústria. Seja na canção multipartes “A Quick One, While He’s Away”, o experimento replicando rádios piratas em “The Who Sell Out” – com direito a jingles de produtos fictícios passando de propaganda entre faixas normais – ou na ópera rock “Tommy”, a habilidade do guitarrista conseguiu sempre sustentar sua ambição.

Contudo, o processo de desenvolvimento do sucessor de “Tommy” quase sinalizou o fim da estrada para o grupo. Idealizado por Townshend a partir de uma série de colunas para a Melody Maker começando em 1970, o projeto “Lifehouse” tentava conciliar várias coisas ao mesmo tempo. 

No centro de tudo estava um disco conceitual a ser trabalhado e gravado ao vivo durante apresentações do The Who no Young Vic Theater. A ideia era criar uma comunhão entre artista e plateia numa época em que Townshend temia ter afastado o público da banda com sua ambição. 

Essa ideia não deu certo pelos motivos esperados. O grupo conseguiu por um milagre sair dessa situação apenas com “Who’s Next”, lançado em agosto de 1971, o mais bem-sucedido álbum deles até então e considerado até hoje por muitos a obra prima do The Who. 

Após uma turnê de êxito até o final daquele ano, Townshend decidiu que eles precisavam de férias, pois estavam há sete anos sem parar. Sem mencionar que a banda, mesmo com um disco de sucesso, ainda era refém de sua ópera rock, como o guitarrista revelou à Classic Rock:

“Eu estava preocupado sobre a banda na época. Estávamos todos de saco cheio de tocar ‘Tommy’ e só tocávamos três músicas de ‘Who’s Next’ nos shows. Eu queria um substituto de ‘Tommy’ pros nossos shows. E os caras na banda estavam apreensivos, acho. Estava procurando um jeito de apaziguar os quatro egos excêntricos dos caras da banda. Sempre fomos diferentes, mas em 1972 eu achava que tinha apenas uma última chance de fazer algo para nos manter unidos e nos unir aos olhos dos fãs.”

A parada acabou revelando uma série de problemas nos bastidores. A banda se reuniu em maio de 1972 para gravar mais um disco conceitual, batizado “Rock is Dead—Long Live Rock”. O trabalho seria uma autobiografia do The Who, mas as sessões logo revelaram um problema: as músicas eram parecidas demais com os trabalhos anteriores.

Townshend e Daltrey começaram a brigar. O guitarrista tinha ambições artísticas e não queria comprometer sua visão em nome de só fazer dinheiro. O vocalista achava as ideias dele pretensiosas e estava preocupado com a saúde da banda.

O grupo desde antes da fama era agenciado por Chris Stamp e Kit Lambert, esse último dobrando como produtor. Durante as férias, Roger Daltrey começou a ter suspeitas sobre o trabalho dos dois, especialmente com relação ao lado financeiro.

Lambert já havia arrumado problemas durante o processo de “Who’s Next” por causa de seu vício em heroína e Townshend o afastou da produção. Sem falar que nesse período, ele tentou vender uma versão cinematográfica de “Tommy” para estúdios de cinema sem o conhecimento do grupo.

Uma auditoria feita a pedido de Daltrey revelou que a dupla não mantinha registros financeiros completos. O vocalista argumentou com os colegas de banda pela demissão de Stamp e Lambert.

Townshend e o baterista Keith Moon foram contra, mas mesmo mantidos, a relação da banda com seus empresários estava estremecida.

Voltando ao começo

A inspiração para o que veio a ser “Quadrophenia” veio parcialmente de Frank Zappa, ao menos na parte artística.

Apesar do sucesso do The Who, Townshend ainda estava frustrado com as dificuldades em produzir uma versão cinematográfica de “Tommy” e o fracasso do conceito de “Lighthouse”. Graças ao músico americano, o guitarrista encontrou o método perfeito de remediar esses problemas no sucessor de “Who’s Next”: o disco funcionaria como uma trilha musical, acompanhando uma narrativa semelhante a um filme.

A narrativa em si veio a partir de um encontro com Jack Lyons, um dos primeiros fãs do The Who. Ele sugeriu a Townshend explorar não só a história do grupo, mas a relação com seu público, especificamente a cultura mod da qual a banda surgiu.

O compositor gostou dessa ideia e e criou um personagem inspirado nos primeiros seis fãs da banda: Jimmy, um jovem de classe trabalhadora que encontra na cultura mod algo para pertencer. À medida que o tempo passa, ele só quer continuar mantendo aquele estilo de vida, mesmo com seus pais e namorada pedindo por mudanças no seu comportamento. 

Em meio a trabalhos horríveis, um vício em anfetaminas e uma condição psiquiátrica piorando, Jimmy vê o único mundo ao qual se sentia acolhido ficar no passado. As figuras antes idolatradas por ele se revelaram ordinárias. Perdido, o jovem rouba um barco e navega até um rochedo, onde contempla sua vida e uma possível morte.

Townshend explicou a ideia à Classic Rock:

“Jimmy representava um tipo especial de fã de pop-rock que exigia encapsular e refletir os membros da banda acompanhada por ele. Nesse caso, os quatro integrantes do The Who. Então era o oposto do que eu estava falando nas revistas musicais. Em 1972-73, não haviam mods, exércitos ou uniformes de qualquer tipo de público pop-rock, só camisas com golas enormes, e cortes de cabelo como numa peça de Shakespeare. Parte do que eu queria fazer era re-estabelecer com nossos fãs os princípios firmados por eles quando começamos. Eu acho que o Who era servo da plateia em 1964-65, e não o contrário. Nosso trabalho foi sempre dar ao nosso público algo que eles queriam, não fazê-los achar que éramos estrelas. Dentro do The Who, Keith Moon não estava apenas fazendo um papel de estrela, e sim levando a extremos. Ele se comportava como um príncipe saudita. Todos tínhamos nosso papel. Perdemos perspectiva em parte porque nossos shows eram tão intensos. Nos sentíamos invioláveis… Eu acho que senti solidariedade com fãs adolescentes, mas em 1972 eu tinha 27 anos e talvez era minha última oportunidade de escrever meu sucessor de ‘Tommy’, meu ‘O Apanhador nos Campos de Centeio’.”

Além de ser inspirado nos fãs, o personagem Jimmy também refletia os integrantes da banda em suas quatro personalidades distintas. Essas eram representadas em quatro canções: “Bell Boy” (Keith Moon), “Is It Me?” (John Entwistle), “Helpless Dancer” (Roger Daltrey) e “Love Reign O’er Me” (Townshend). O guitarrista se pôs a trabalhar em canções para o trabalho pelo resto de 1972.

Quando os integrantes se reuniram no início de 1973, o plano inicial era gravar no estúdio próprio deles em Battersea, mas esse ainda não estava pronto. A solução foi alugar a unidade móvel de Ronnie Lane, do Faces. Em entrevista ao Louder, Townshend falou sobre as contribuições dos outros membros da banda nas sessões:

“Eu me senti apoiado pelos caras, especialmente no momento que começaram a tocar as coisas novas que compus. Enquanto a gente tocava uma das primeiras canções gravadas para ‘Quadrophenia’, eu lembro pensar que nunca tínhamos soado tão bem, ou tocado com tanta convicção material não testado. Especialmente Roger. Ele cantou que nem um urso furioso. A versão dele de ‘Love Reign O’er Me’ nunca será superada.”

Resto do The Who e público boiando

Apesar dos elogios, o restante do The Who começou as sessões sem entender o conceito ou a narrativa por trás do disco. Talvez a empolgação viesse do fato que, apesar de fazer questão de todas as músicas fossem compostas por ele, Townshend gravou demos propositalmente esparsas, convidando maiores contribuições dos outros.

De todos, quem atendeu o chamado com maior gosto foi John Entwistle. Conhecido como talvez o melhor baixista da história do rock, o músico demonstrou sua maestria no instrumento na canção “The Real Me”, gravada em apenas um take. Além disso, mostrou sua habilidade em instrumentos de sopro arranjando várias partes que ele mesmo tocou.

Townshend também fez uso de gravações ao ar livre, samples e colagens ao longo do disco, o que demonstrou a influência de compositores modernos como Steve Reich e Terry Riley – esse último homenageado na faixa de abertura de “Who’s Next”, “Baba O’Riley”.

A compilação de todos esses elementos – partes individuais dos integrantes, sintetizadores, instrumentos de sopro, orquestra, samples incidentais – se provou uma tarefa árdua, especialmente na hora da mixagem.

O mais complicado, no entanto, acabou sendo encontrar o disco nas lojas. “Quadrophenia” foi lançado dia 26 de outubro de 1973, mas a oferta de cópias disponíveis acabou reduzida por um evento além da esfera da banda.

Naquele mês, a Organização de Países Exportadores de Petróleo (OPEP) anunciou um embargo aos Estados Unidos e qualquer nação industrializada apoiando Israel durante a Guerra do Yom Kippur. Ao contrário de uma tentativa anterior durante a Guerra de Seis Dias, em 1967, essa paralisação teve um efeito devastador na economia ocidental, quadruplicando o preço do barril e levando a racionamentos de energia e gasolina.

O que isso tem a ver com “Quadrophenia”? Vinil.

Mesmo assim, o disco estreou em segundo lugar tanto no Reino Unido quanto nos EUA. Foram mantidos fora do topo por “Pin Ups”, de David Bowie, e “Goodbye Yellow Brick Road”, de Elton John, respectivamente.

Infelizmente, os planos de substituir “Tommy” ao vivo com “Quadrophenia” logo caíram por terra. As primeiras apresentações do novo ciclo foram marcadas por problemas técnicos das inúmeras deixas de orquestras, sintetizadores e samples, sem falar do fato da trama precisar ser explicada entre as músicas. Apesar de ter se acostumado às exigências técnicas do disco no contexto ao vivo, o grupo abandonou o espetáculo em 1974.

Em 1979, “Quadrophenia” foi adaptado para o cinema. Curiosamente, o filme não é um musical, mas um drama focado na narrativa do álbum. Phil Daniels, que anos depois emprestou sua voz à canção “Parklife”, do Blur, interpretou Jimmy; já Sting fez sua estreia como ator no papel de Ace Face, o líder dos mods admirado pelo protagonista.

Pelo resto da carreira, o The Who continuou de certa maneira exatamente na posição que deixou Pete Townshend apreensivo em 1972. A tecnologia melhorou a ponto deles poderem incorporar mais canções de “Who’s Next” ao repertório, mas eles permaneceram reféns de “Tommy” por muito tempo.

Foi só nos anos 1990 e depois 2010 que a banda ressuscitou “Quadrophenia” como um espetáculo musical próprio, com atores e orquestra tocando junto. Ainda assim, o disco permanece como uma das obras-primas mais frustrantes da história do rock.

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