Como os Beatles fizeram história em um dia com “Please Please Me”

Foram necessários anos de trabalho e um curioso intercâmbio para a banda de Liverpool ter a chance de mudar a música pop em um dia de gravação

Os Beatles são a banda mais famosa de todos os tempos. Foram responsáveis por estabelecer a música como força motriz da cultura pop e mudar o foco da sociedade dos adultos para os jovens. 

Armados desse sucesso, eles redefiniram o processo de gravação de discos. Experimentaram tudo que era tecnologia de ponta no estúdio, criando uma nova maneira de produzir música.

- Advertisement -

Só que antes de tudo isso, eles eram quatro moleques de Liverpool com uma tarefa dura: gravar seu disco de estreia numa sessão só de 12 horas.

Como chegaram aqui e para onde eles vão?

Conexão Hamburgo-Liverpool

Os Beatles foram formados em Liverpool, mas só se tornaram mesmo a banda que nós conhecemos durante excursões nas quais tocavam em bares e puteiros de Hamburgo, na Alemanha.

Durante os anos de 1960 a 1962, a banda então formada por John Lennon, Paul McCartney, George Harrison, Stuart Sutcliffe e Pete Best teve seu batismo de fogo na forma de precisar se apresentar horas a fio para marinheiros bêbados e o pior tipo de gente possível.

A experiência os deixou mais entrosados como banda, capazes de improvisar e esticar músicas para preencher o setlist. Além disso, criararam um repertório mental de canções pop de nível enciclopédico. 

A reputação dos garotos estava crescendo tanto a ponto de, em 1961, eles servirem como banda de apoio do cantor Tony Sheridan num single lançado na Alemanha, “My Bonnie”. Ironicamente, a gravadora alemã não gostou do nome da banda e os creditou como The Beat Brothers.

Uma cópia do single veio a parar nas mãos de um DJ em Liverpool, que começou a tocar nas festas pela cidade, e em outubro de 1961, os Beatles chegaram à atenção de Brian Epstein. O empresário era gerente da loja de discos da família, NEMS, e já tinha ouvido falar do grupo através de pôsteres e conversas com promotores de música. Entretanto, a presença de um single, e interesse nele por parte de fãs, o fez ir atrás da banda.

No livro “The Complete Beatles Chronicle: The Definitive Day-By-Day Guide To the Beatles’ Entire Career”, de Mark Lewisohn, Epstein é citado descrevendo sua reação ao vê-los tocando no Cavern Club:

“Eu imediatamente gostei do que ouvi. Eles eram novos, honestos e tinham o que eu pensava ser um tipo de presença… uma qualidade de estrela.”

O empresário e o produtor

Brian Epstein passou alguns meses cortejando o grupo, com o objetivo de se tornar seu empresário. Esse desejo se tornou realidade em janeiro de 1962. Sua primeira tarefa foi livrar a banda de seu compromisso em Hamburgo, algo conseguido em troca de mais uma sessão de gravação.

Tentativas de arranjar contratos com gravadoras britânicas ocuparam boa parte de 1962. Os Beatles ouviram uma recusa infame da Decca após sessões demo no começo do ano, com o selo afirmando que conjuntos de guitarra estavam saindo de moda. No fim das contas, quase todo mundo da indústria riu da cara de Epstein e do quarteto.

Exceto George Martin. O produtor, encarregado da subsidiária da EMI Parlophone, havia feito do selo o lar da comédia britânica nos anos 50, graças a nomes como Dudley Moore, Peter Cook, Spike Milligan e Peter Sellers, mas considerava seus talentos como músico e arranjador desperdiçados.

Quando Brian Epstein e os Beatles lhe foram apresentados, ele sabia ser sua última oportunidade de conseguir algo relacionado à música pop na gravadora, uma vez que a matriz não lhe dava nada.

Ao se encontrar com o empresário, Martin ouviu as demos da Decca e não ficou particularmente impressionado. Nem mesmo as composições de John Lennon e Paul McCartney, até então o grande chamariz da banda, chamaram sua atenção. Entretanto, ele não quis recusar de cara.

Em “The Beatles – A Biografia”, de Bob Spitz, Martin é citado tendo dito a Epstein:

“Sabe, na verdade, o que você tocou aqui não me permite chegar a uma conclusão. É interessante, mas não posso fazer nenhum tipo de negócio apenas nessa base. Eu tenho de vê-los, conhecê-los pessoalmente. Traga-os a Londres para eu trabalhar com eles no estúdio.”

Epstein sentou na oferta de 13 de fevereiro, quando a reunião ocorreu, até 9 de maio. A razão era vergonha. Ele sequer havia informado os Beatles, com o temor de decepcioná-los novamente. Após o empresário engolir o orgulho e contatar Martin novamente, o chefe da Parlophone não só estava disposto a receber a banda como também assinar um contrato – ainda que fosse mais uma medida de segurança por parte da gravadora.

Quase perdidos, literalmente

Os Beatles estava em Hamburgo e Brian Epstein mandou um telegrama informando do teste, marcado para 6 de junho, os orientando a ensaiar mais material. Quando o dia chegou, a perua carregando os Beatles e seu equipamento se perdeu a caminho do estúdio em Abbey Road.

Quando finalmente chegaram, eles montaram seu equipamento no estúdio e foram submetidos a uma preparação para o teste sob a batuta de Ron Richards, produtor da Parlophone. Quatro faixas foram selecionadas para serem gravadas.

O resultado, ainda assim, não impressionou ninguém da gravadora. Eles passaram uma hora destrinchando tudo o que não gostaram nas canções, sejam as covers ou as originais. Sem dó nem piedade. Apenas uma crítica foi retida, que seria chave: eles precisavam de um baterista melhor. Pete Best não era como seu nome dizia.

Ao final dessa tempestade de críticas, George Martin perguntou quase encabulado à banda se tinha algo que eles não gostaram. Em “The Beatles – A Biografia”, de Bob Spitz, George Harrison é citado como tendo dito:

“Não gosto da sua gravata.”

Todo mundo caiu na gargalhada. Graças ao senso de humor dos integrantes, Martin foi conquistado. Os Beatles eram da Parlophone. E agora precisavam de um baterista.

Um baterista e um single

O melhor baterista de Liverpool fazia parte de outra banda. Ringo Starr era integrante de Rory Storm and the Hurricanes, outro grupo da cidade, mais preocupado em ganhar dinheiro no circuito de colônias de férias.

Quando John e Paul foram falar com Ringo, os Hurricanes estavam no País de Gales, tocando numa locação do Butlins, uma cadeia de condomínios de lazer. Rory Storm não estava por perto. Apesar do baterista fazer parte do grupo há quatro anos, duas horas de conversa foram suficientes para selar sua deserção.

Enquanto isso, Brian Epstein ficou encarregado de demitir Pete Best. O momento fatídico aconteceu nos escritórios da NEMS em 16 de agosto. Ringo agora era um Beatle – e não tinha pena de quem ele substituiu, como contou em “The Beatles – A Biografia”:

“Eu não estava envolvido com a história; além do mais, me considerava um baterista muito melhor que ele.”

Isso não importou para os fãs de Pete e da banda, que mostraram sua revolta com gritos contra o novo baterista. Entretanto, as vaias se passaram antes mesmo do final do primeiro show.

Agora a tarefa era conceber o primeiro single. Após tentativas de gravar “Love Me Do” em 4 de setembro, George Martin optou por usar Andy White, um baterista profissional na faixa e no lado B, “P.S. I Love You”. Eles também registraram uma versão inicial de “Please Please Me”, a primeira canção de Lennon e McCartney a impressionar o produtor.

O single foi um sucesso inesperado em novembro de 1962, atingindo a 17ª posição no que então eram apenas paradas informais do Reino Unido. Convencido da viabilidade comercial do grupo, Martin propôs não apenas regravar “Please Please Me”, como também fazer um disco.

O álbum de estreia

Assim que os Beatles finalizaram a sessão do single “Please Please Me”, em 26 de novembro, George Martin fez uma previsão: a canção iria ao primeiro lugar das paradas.

Enquanto o compacto não era lançado, os planos eram traçados para o álbum. Originalmente, Martin queria fazer uma gravação da banda no Cavern Club, fazendo uso da reputação ao vivo dos Beatles e seus fãs apaixonados em Liverpool. Entretanto, quando ele visitou a casa, julgou a acústica do lugar insatisfatória. 

Quando o single de “Please Please Me” finalmente saiu em janeiro de 1963, cumpriu a previsão do produtor: chegou ao primeiro lugar nas paradas informais da Melody Maker, NME e Disc. O plano passou a ser uma sessão de dez canções em fevereiro de 1963.

A gravação aconteceria no dia 11 de fevereiro, em Abbey Road, com dez canções do repertório da banda, entre originais e covers, sendo gravadas uma atrás da outra. 

E John Lennon estava resfriado.

Enquanto Martin e McCartney discutiam qual balada era preferível para incluir no disco – o Beatle queria “Falling In Love Again” e “Besame Mucho”, sendo eventualmente convencido pelo produtor que era melhor tocar “A Taste of Honey” –, Lennon devorava pastilhas para a garganta.

No final, decidiram seguir as orientações de Martin com relação às covers, pois o foco deles estava realmente nas originais. John e Paul estavam compondo num ritmo furioso se preparando para a sessão, e apresentaram três canções novas ao produtor no dia: “Misery”, “There’s a Place” e “17”, essa última sendo rebatizada como “I Saw Her Standing There” após ser gravada logo antes do almoço.

A equipe saiu para almoçar e, quando retornaram, lá estavam os Beatles, tendo pulado a refeição para ensaiar.

John teve um descanso para sua voz após o almoço, com Paul gravando “A Taste of Honey”, seguido de George cantando “Do You Want To Know A Secret” e McCartney novamente precisando encarar 13 takes de “Hold Me Tight”, apenas para ser deixada de fora do disco.

O grupo então despachou quatro covers como se fosse nada, deixando apenas uma canção para gravar na hora de fechar o estúdio. Cheio de confiança, Martin perguntou aos Beatles se eles queriam terminar naquele dia mesmo. A banda concordou.

A canção escolhida foi “Twist and Shout”, uma cover dos Everly Brothers considerada pelo produtor uma destruidora de laringes. E John, que estava com a garganta ruim, era quem cantava.

Eles sabiam que só teriam uma tentativa. John não apenas comeu mais pastilhas de hortelã, como também bebeu uma caixa de leite para se preparar. Mesmo assim, é possível ouvir as cordas vocais dele explodindo na gravação. E é glorioso.

“Please Please Me”, o disco, saiu dia 22 de março de 1963. Chegou ao topo das paradas inglesas em maio daquele ano. O álbum permaneceu naquela posição por 30 semanas, sendo suplantado apenas pelo segundo LP dos Beatles, “With the Beatles”.

Nada mal para um dia de trabalho.

Beatles – “Please Please Me”

  • Lançado em 22 de março de 1963 pela Parlophone
  • Produzido por George Martin

Faixas:

  1. I Saw Her Standing There
  2. Misery
  3. Anna (Go to Him)
  4. Chains
  5. Boys
  6. Ask Me Why
  7. Please Please Me
  8. Love Me Do
  9. P.S. I Love You
  10. Baby It’s You
  11. Do You Want to Know a Secret
  12. A Taste of Honey
  13. There’s a Place
  14. Twist and Shout

Músicos:

  • John Lennon (voz; violão; guitarra; gaita nas faixas 4, 7, 8 e 13)
  • Paul McCartney (voz, baixo)
  • George Harrison (guitarra, violão, voz de apoio, voz principal nas faixas 4 e 11)
  • Ringo Starr (bateria, pandeiro na faixa 8, maracas na faixa 9, voz principal na faixa 5)

Músicos adicionais:

  • George Martin (piano na faixa 2, celesta na faixa 10)
  • Andy White (bateria nas faixas 8 e 9)

Clique para seguir IgorMiranda.com.br no: Instagram | Twitter | Facebook | YouTube.

ESCOLHAS DO EDITOR
InícioCuriosidadesComo os Beatles fizeram história em um dia com “Please Please Me”
Pedro Hollanda
Pedro Hollanda
Pedro Hollanda é jornalista formado pelas Faculdades Integradas Hélio Alonso e cursou Direção Cinematográfica na Escola de Cinema Darcy Ribeiro. Apaixonado por música, já editou blogs de resenhas musicais e contribuiu para sites como Rock'n'Beats e Scream & Yell.

DEIXE UMA RESPOSTA (comentários ofensivos não serão aprovados)

Por favor digite seu comentário!
Por favor, digite seu nome aqui


Últimas notícias

Curiosidades