Criado em Nova York no início da década de 1970, o Kiss foi iniciado como um trio, sem o guitarrista Ace Frehley. A formação trazia Paul Stanley (voz e guitarra) e Gene Simmons (voz e baixo), egressos do finado Wicked Lester, além de Peter Criss (bateria e voz), contratado há pouco tempo.
Estamos em 1972 e o local de ensaios do Kiss é um loft alugado por Simmons e Stanley em Nova York. Para pagar o local, ele trabalhava como professor, enquanto Stanley dirigia um táxi por meio período. Criss já era músico profissional: quatro vezes por semana ele tocava com uma banda de bar, sempre em um lugar extremamente mal encarado.
No final do ano, após dias e mais dias de ensaios e as primeiras experimentações visuais com maquiagem e roupas, os músicos chegaram à conclusão de que precisavam de uma segunda guitarra. A solução usada foi a mesma que funcionou na contratação de Peter: Paul colocou um anúncio na revista Village Voice com os dizeres “grupo de rock pesado procura guitarrista com culhões e brilho”. E assim foi feito – obviamente sem a palavra “culhões”, que a revista se negou a publicar.
Todos os malucos da cidade
As respostas ao anúncio foram maiores do que todos imaginavam. O loft começou a ser invadido por pessoas que queriam saber mais sobre a vaga. Vários guitarristas foram testados no dia 3 de janeiro de 1973.
No livro “Kiss: Por Trás da Máscara”, Peter Criss relembra que nem todos eram competentes o suficiente, mas mesmo assim resolveram tentar a sorte.
“Você não ia acreditar no que apareceu naquele loft. Havia caras que conheciam somente um acorde e não tocavam nada de nada. Depois de um tempo, eu estava ficando louco.”
Paul Stanley, no mesmo livro, comentou sobre um dos candidatos que nem falava inglês, mas fez questão de fazer o teste.
“Todos os tipos de esquisitões apareceram. Um deles era italiano, tinha acabado de chegar e a mulher dele era sua intérprete. Ele nem se incomodou em afinar a guitarra, já foi tirando-a da caixa e começou a tocar.”
Entre os que se sobressaíram estava o experiente Bob Kulick. O Kiss considerou seriamente contratá-lo, mas havia alguns problemas em relação à sua aparência. A negociação com ele foi então interrompida por um dos candidatos, provavelmente o mais esquisito entre todos os malucos da cidade que foram fazer o teste.
Gene Simmons contou como aconteceu:
“Num determinado ponto, Bob Kulick, que mais tarde fez uma turnê com o Meat Loaf, seria o guitarrista. Mas ele não tinha aparência, tinha barba e era um pouco mais gordo na época. A gente falava de ele se juntar a nós um dia, quando aquele cara entrou com um pé num tênis laranja e o outro num vermelho e um bigode meio alaranjado. Ele parecia uma mistura de oriental com norueguês.
Havia duas paredes paralelas e, enquanto passava por elas, ele meio que se desequilibrou e foi direto contra uma das paredes. Era realmente um bruto, ficava andando por lá, ignorando todos. Pensei que ele estivesse sendo daquela maneira de propósito.
O cara era tão pirado, tão aéreo, voltado para o seu próprio mundo! Eu disse ‘por favor, sente-se. Estamos conversando com este cara, espere a sua vez’. Ele respondeu: ‘ei, nossa, cara. Eu tenho…’ Ouvi aquela voz saindo dele e foi um ‘puxa!’. Achei que ele estava sendo um cara espertinho e disse ‘vou chutar o seu traseiro se você não se sentar’. De novo, ele respondeu com uma voz estranha ‘puxa, cara, eu só vim aqui tocar guitarra, você não quer rock?'”
A má impressão foi compartilhada até mesmo por um futuro grande amigo. Criss também ficou impactado com a “entrada triunfal”, mas estava mais disposto do que Simmons a ouvir o que o sujeito tinha a mostrar.
“Achei que ele fosse um louco varrido. Não conseguia acreditar no que tinha entrado pela porta. Então eu disse ‘ou esse cara é o máximo, ou ele é louco, mas você tem de deixá-lo tocar’. Gene ficou uma fera. Eu disse: ‘espere um pouco, deixe-o tocar’.”
O “ás” na manga do Kiss
Paul Daniel Frehley nasceu em Nova York e passou a juventude no perigoso bairro do Bronx. De ascendência indígena Cherokee por parte de mãe, era o mais jovem de 3 filhos e se definia como a “ovelha negra da família”. Sempre se interessou por artes plásticas, embora também fosse bom nos esportes e, principalmente, na música.
Quando mais jovem, se envolveu com gangues locais. Segundo ele próprio, foi salvo pela música.
“Nunca fui um sujeito agressivo, sempre me dei bem com todos. Mas, dentro da realidade da situação na qual vivi, ou você era um estudante ou pertencia a uma gangue, era um playboyzinho. E percebi que os playboyzinhos ficavam com todas as garotas. Sair por aí junto com um bando de irresponsáveis era um estilo de vida muito mais atraente para mim.
Com a idade, começamos a fazer coisas mais loucas, que começam a se tornar bem mais pesadas. A música me levou para longe daquela cena. Em vez de ficar à toa na frente da confeitaria da esquina, procurando problemas, eu ensaiava com minha banda.
Isso me salvou. Dos amigos dessa época, alguns levam uma vida mais regrada, mas muitos estão mortos agora. Pessoas loucas. Não fosse a música, haveria uma grande chance de eu ter me dado mal.”
No início dos anos 70, Frehley conseguiu se livrar do serviço militar obrigatório na Guerra do Vietnã e transitou por diversas bandas, das quais logo saía sempre decepcionado. Até que no final de 1972, ele viu um anúncio na revista Village Voice.
A entrevista de emprego
Antes do teste propriamente dito, o candidato passou por uma breve entrevista por telefone, onde falou um pouco sobre si. Perguntaram como era sua aparência e marcaram o encontro no loft. Acontece que Frehley não dirigia e não podia pagar um táxi para ir com seu equipamento. A solução foi pedir aquela força para a mãe.
“Não tinha muito dinheiro na época. Não podia levar meu equipamento no metrô e certamente não podia bancar um táxi. Assim, tive de convencer minha mãe a me levar para lá com o amplificador. Eu me lembro de ter dito a ela: ‘Mãe, você tem de me dar carona. Realmente sinto que há algo especial’. Eu sentia uma vibração estranha.”
Sobre o visual, o guitarrista se defende ao explicar que sempre representou uma espécie de “vanguarda” da moda entre os amigos. Vestia-se de modo peculiar, mas acabava por ditar tendências com meses de antecedência. Foi com isso em mente que apareceu com os famosos tênis de cores diferentes.
“Eu tinha comprado um tênis vermelho e outro laranja e usei um pé de cada no teste. Não me lembro se fiz aquilo por ser engraçado ou se não prestei atenção quando fui colocá-los, mas achei que ficaram bonitos juntos. Gene e Paul não acharam. Na realidade, eles acharam que era bem idiota.”
Felizmente, isso não afetou o desempenho do candidato, que fez o teste mais marcante entre todos. De quebra, o guitarrista ainda conheceu sua música favorita do Kiss, como ele confirmaria em várias oportunidades ao longo dos anos.
“De qualquer maneira, quando cheguei ao estúdio, o que eles fizeram foi bem simples. Disseram: ‘Vamos tocar uma música para você. Ouça uma vez e então junte-se a nós’. Eles tocaram ‘Deuce’ e eu me apaixonei. Eu disse: ‘Ela é ótima’. Levantei-me e toquei junto. A canção estava em lá, e eu simplesmente solei a música inteira. Todos sorriram.”
Na visão de Gene Simmons, que ainda estava bravo com o candidato inconveniente, o teste foi ainda mais impressionante. O baixista começou intimidador, mas teve que dar o braço a torcer depois de “Deuce”. E quem conhece o linguarudo sabe como isso é algo difícil de acontecer.
“Finalmente chegou a vez dele e eu me lembro até hoje. Eu lhe disse: ‘É melhor tocar bem ou vou te dar um pé na bunda’. Alguma coisa do tipo, ou ‘Vai sair com o rabo entre as pernas’.
Eu disse: ‘Ouça as primeiras duas linhas e os primeiros dois refrãos. Quando o solo começar, será a parte do refrão, então veja como as mudanças acontecem. Assim, quando o solo começar, você vai saber exatamente onde está’. Quando o solo começou, ele só gemeu. Foi maravilhoso, combinava, tudo fazia sentido. E ele era bem alto
Ao fim da música, fui conversar com ele. Apertei sua mão e disse: ’Desculpe alguma coisa. Seja exatamente da maneira que você é. Mas a primeira coisa que você deve fazer é raspar esse bigode’. Era daquele tipo que crescia só em alguns lugares. Ele disse: ‘O quê? É a coisa mais bonita. As garotas adoram!’ Mesmo assim, ele raspou o bigode.”
Intimidado por Bob Kulick
Um cara que aparece com um tênis de cada cor para um teste, no mínimo, transborda confiança, não é mesmo? Em entrevista de 2020 ao Metal Express Radio, Ace Frehley provou o contrário. O guitarrista admitiu que se sentiu intimidado por Bob Kulick e confessou que conseguiu a vaga por uma questão de visual.
“Eu não conhecia Bob tão bem, mas éramos amigos e eu toquei com ele algumas vezes. Acredite ou não, mas quando eu fiz teste para o Kiss, Bob também estava sendo testado e ele estava tocando quando eu cheguei no estúdio. Fiquei intimidado com o quão ótimo guitarrista ele era.
Paul e Gene decidiram que eu me encaixaria na banda porque eu tinha a imagem correta. Claro, eu conseguia tocar bem e mostrei tudo de mim. Quando eles tocaram ‘Deuce’, simplesmente coloquei todos os riffs que eu sabia tocar e fiz um solo de 5 minutos. Paul disse que eles saibam imediatamente que eu era o cara, mas não me contaram por duas semanas. Eles me deixaram esperando.”
Ace Frehley e Kiss
Dessa forma, o trio comandado por Paul Stanley e Gene Simmons era agora um quarteto, que em breve seria rebatizado como Kiss. Ace Frehley seria importante nesse início não só pela química com o trio, que aconteceu de imediato, mas também por seu interesse por artes plásticas, que combinavam com a direção que a banda tomava naquele momento devido às experiências com maquiagens e visual diferente do comum.
Bob Kulick, que quase ficou com a vaga, continuaria a ser um parceiro do Kiss. Ele gravou com a banda como músico de estúdio em diversas ocasiões. Também tocou no álbum solo de Paul Stanley, em 1978, e fez parte da banda solo do frontman nos anos 80. Na mesma década, seu irmão mais novo, Bruce Kulick, assumiria a vaga de guitarrista solo, já na fase sem maquiagem.
Quanto a Ace, ele também mostraria seu talento como compositor nos primeiros anos de Kiss. A questão é que, ao lado do baterista Peter Criss, ele passaria a formar a metade “problemática” da banda, por conta do abuso de álcool e drogas. Saiu em 1982 e teve a carreira solo mais bem-sucedida entre os ex-integrantes. Voltou para a reunião da formação original, em 1996, e ficou até 2002.
O guitarrista teve vários substitutos ao longo dos anos, mas embora não seja uma referência técnica no instrumento, é inegável que fazia parte da química entre os músicos originais. Apesar da convivência difícil, foi de grande importância enquanto permaneceu na banda.
Peter Criss, seu grande amigo entre os membros do Kiss, resumiu o teste também antecipando o que os fãs veriam nos anos seguintes:
“Quando ele ligava e tocava a guitarra, era maravilhoso. Ele era ‘Ace’, um ás.”
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