Pergunte a um fã de heavy metal brasileiro qual o disco mais importante do Judas Priest. A resposta fatalmente será “British Steel” (1980) ou “Painkiller” (1990).
A iconografia de um e o fato de o outro ter tido divulgação ostensiva no Brasil — que incluiu a primeira vinda da banda ao país, na segunda edição do Rock in Rio, em 1991 — são indiscutíveis.
Porém, lá fora a realidade é outra: foi com “Screaming for Vengeance” (1982) que o Priest estourou no principal mercado fonográfico do mundo.
Dois para frente, um para trás
O que vivia o Judas Priest no alvorecer dos anos 1980 é talvez a prova cabal no heavy metal de que status e vendagem nem sempre andam de mãos dadas.
Do ponto de vista artístico e musical, a trinca “Stained Class”, “Killing Machine” (ambos de 1978) e “British Steel” foi aquela que ditou a cartilha pela qual a banda operaria em sua segunda década de existência e a projetou junto aos gigantes do rock, ao menos na Grã-Bretanha. Isso porque, não obstante os esforços e o investimento, o Priest ainda não conseguira “vender bem” nos Estados Unidos, mercado de referência para a indústria fonográfica em todo o mundo. Algo precisava ser feito.
Sem dúvida, naquela altura e dado o calibre de seus antecessores diretos, “Point of Entry” (1981) equivaleu a um balde de água fria. No mesmo ano de “Killers”, “Denim and Leather” e “High ‘N’ Dry”, o Priest lançou um álbum fraco e perdeu espaço para nomes como Iron Maiden, Saxon e Def Leppard nas paradas e na preferência do público headbanger.
O 39º lugar na Billboard — cinco posições abaixo da que “British Steel” alcançara — mostrou que o álbum seguinte teria como missão adicional mostrar que a banda não havia esmorecido. A palavra de ordem era “vingança”.
De volta para Ibiza
A turnê de nome World Wide Blitz manteve o Judas Priest na estrada de fevereiro a dezembro de 1981. Foram 115 shows, sendo 58 nos Estados Unidos.
Ao término dos compromissos, Rob Halford (vocal), Glenn Tipton (guitarra), K.K. Downing (guitarra), Ian Hill (baixo) e Dave Holland (bateria) se reuniram em Ibiza — onde haviam concebido “Point of Entry” — para compor e ensaiar o material de seu próximo trabalho sem se preocuparem com os altos impostos da Coroa Britânica.
Sob o chicote do “Coronel” Tom Allom — que produziu o ao vivo “Unleashed in the East” (1979) e assinaria a produção de todos os álbuns do Judas até “Ram It Down” (1988) —, “Screaming for Vengeance” levaria quatro meses para ser gravado e mais algumas semanas de overdubs e mixagem até ser entregue à Sony para lançamento.
O hit que veio por acaso
A fim de modelar o som conforme a estética norte-americana, “Screaming for Vengeance” foi mixado em Miami, Flórida — onde Tom Allom morava. Foi durante essa estada, aos 45 do segundo tempo, que a música que se tornaria o maior hit do Judas Priest nos Estados Unidos basicamente tomou forma. Segundo Rob Halford na autobiografia “Confesso” (Belas Letras, 2021):
“Demos uma brincada com uma música chamada ‘You’ve Got Another Thing Comin’’ em Ibiza, mas não chegamos a acertá-la na mosca. Ficou enterrada no lado B do disco. [A letra] tratava de alguns temas clássicos do Priest, como determinação, não desistência e a crença em si mesmo, e, ao voltarmos a ouvi-la sob o sol da Flórida, percebemos que havia mais ali do que pensávamos. ‘Hmm… É uma música muito boa para dirigir, não é não?’”
A tese de “You’ve Got Another Thing Comin’” possuir todos os elementos de um rock de estrada é reforçada por K.K. Downing em “Heavy Duty: Minha Vida no Judas Priest” (Estética Torta, 2021):
“É claro que não tínhamos conhecimento desse ingrediente intangível quando a escrevemos, mas não há dúvida de que essa música tinha o tipo de batida que, mesmo se você estivesse dirigindo a apenas 50 por hora, quando ouvisse aquela introdução, seria simplesmente convencido a acelerar. Além disso, a música trazia uma inegável sensação de felicidade e despreocupação. Melhor ainda: tudo nos Estados Unidos então parecia girar em torno desse ethos de ‘entre no carro, ligue o som e dirija’. Era a música ideal para o momento.”
Até mesmo o quase sempre caladão Ian Hill falou a respeito da faixa em entrevista ao jornalista e autor canadense Martin Popoff publicada na obra “The Top 500 Heavy Metal Albums of All Time”:
“Essa música nasceu por acidente. Quando fomos para a Flórida mixar o álbum descobrimos que precisávamos de mais uma música e estávamos com pouco tempo. Fizemos o nosso melhor para conseguir o que a princípio seria apenas uma música para encher linguiça. Isso é muito incomum para nós, porque nunca pensamos dessa forma. ‘You’ve Got Another Thing Comin’’ foi escrita e gravada em poucas horas, mas soava tão espontânea que as rádios norte-americanas a abraçaram e ela passou a ser tocada em todo lugar. Foi a música que nos fez estourar em grande estilo nos Estados Unidos. Tudo o que se seguiu realmente se deve a essa música concebida na reta final da gravação. Isso só prova que as coisas mais espontâneas às vezes são as melhores.”
Satélites espiões e um planeta mercenário e corrompido
Deixando seu maior hit de lado, “Screaming for Vengeance” já era um álbum muito completo e equilibrado desde a introdução, “The Hellion”. Havia músicas enérgicas, músicas mais lentas, e até mesmo uma escrita por gente de fora da banda.
Primeira das enérgicas, “Electric Eye” talvez seja a segunda música mais conhecida do disco. A Martin Popoff, em entrevista reproduzida na biografia “Heavy Metal Painkillers”, Rob Halford comenta sobre a inspiração por trás da letra:
“‘Electric Eye’ fala sobre invasão de privacidade por satélites espiões, e fala que não importa aonde vamos nem o que fazemos no mundo, estamos sempre sob um microscópio, e que não existe 100% de privacidade na sua vida.”
Já a faixa-título é definida pelo vocalista em “Confesso” como “um uivo de desgosto diante de um planeta mercenário e corrompido”.
Bob quem?
Na fatia das músicas mais lentas, destacam-se “Pain and Pleasure” e “(Take These) Chains”, escrita por Bob Halligan Jr. Mas quem é esse cara?
Nascido Robert Sidney Halligan Jr. em 3 de janeiro de 1953, Bob ficou relativamente conhecido na década de 1980 por músicas que escreveu sob encomenda para grupos como Kix — é coautor de quase todo o álbum “Midnite Dynamite” (1985) e da power ballad “Don’t Close Your Eyes”, de “Blow My Fuse” (1988) — e Kiss, para o qual assina “Read My Body”, de “Hot in the Shade” (1989).
Em “Heavy Duty: Minha Vida no Judas Priest”, K.K. Downing conta o que lembra:
“Não sei quem decidiu fazer essa parceria com Bob. Alguém na época disse que essa ideia tinha sido apresentada pela vocalista May Pang, uma ex-namorada de John Lennon. De qualquer forma, como tinha feito antes, a Sony buscou elevar o perfil do álbum a outro patamar, visando à obtenção de um sucesso de rádio com ‘(Take These) Chains’. No fim das contas, acabamos não precisando dessa ajuda deles, por mais legal que essa música em particular fosse — e é.”
Mesmo assim, Bob Halligan Jr. voltaria a assinar composições tanto para o Priest — “Some Heads are Gonna Roll”, de “Defenders of the Faith” (1984) — quanto para Halford em carreira solo: “Twist”, de “Resurrection” (2000).
USA loves Priest
Lançado em 17 de julho de 1982, “Screaming for Vengeance” rapidamente se tornaria um sucesso, alcançando disco de ouro quatro meses após chegar às lojas e platina seis meses depois. O álbum passaria 53 semanas nas paradas da Billboard, alcançando o 17º lugar nos Estados Unidos.
O nível subiu ainda mais um pouco quando o compacto de “You’ve Got Another Thing Comin’” foi lançado no início da turnê — disparando rumo à quarta posição do ranking — e seu clipe entrou em alta rotatividade na programação da recém-lançada MTV.
Visto que o foco era o mercado norte-americano, a World Vengeance Tour começou não no Reino Unido, mas nos Estados Unidos no final de agosto de 1982. Halford recorda:
“Os EUA estavam ficando loucos pelo Priest. Quando a banda se reuniu na Pensilvânia, em agosto de 1982, para abrir nossa agenda de sete meses de turnê, ‘Screaming for Vengeance’ já vendia feito água e viria a superar imensamente as vendas de qualquer coisa que havíamos feito até então.”
Por fim, Downing resume:
“Os EUA estavam finalmente prontos para o pacote completo do Judas Priest, ainda mais porque a cena metal de Los Angeles dava seus primeiros passos, com bandas como o Quiet Riot que tinha acabado de assinar com o nosso selo para lançar seu LP de estreia, ‘Metal Health’. Depois disso, as comportas simplesmente se abriram para as bandas de metal americanas. Enquanto isso, tivemos o privilégio de ter uma vantagem de cinco anos em relação a todas essas bandas. Em 1982, não éramos uma banda sem nome, lançando um disco de estreia meio sem jeito, meio imprevisível. Já éramos um nome estabelecido e estávamos firmando o estatuto do heavy metal na América.”
Judas Priest – “Screaming for Vengeance”
- Lançado em 17 de julho de 1982 pela Columbia Records
- Produzido por Tom Allon
Faixas:
- The Hellion (Instrumental)
- Electric Eye
- Riding on the Wind
- Bloodstone
- (Take These) Chains
- Pain and Pleasure
- Screaming for Vengeance
- You’ve Got Another Thing Comin’
- Fever
- Devil’s Child
Músicos:
- Rob Halford (vocal)
- K.K. Downing (guitarra)
- Glenn Tipton (guitarra)
- Ian Hill (baixo)
- Dave Holland (bateria)
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Esse é, na minha opinião, o “The Dark Side of the Moon” do heavy metal. Parabéns ao disco quarentão deste mês!
Muito Bom!!!! valeu!!!!