Como o Kiss manteve a sequência vitoriosa em “Love Gun”

Gravado em 25 dias e trazendo a primeira contribuição vocal de Ace Frehley, sexto álbum de estúdio do quarteto o levou à sua posição mais alta nas paradas até então

Ganhar disco de platina antes mesmo de o álbum chegar às lojas só mesmo o Kiss nos anos 1970. Primeiro foi com “Rock and Roll Over” (1976), que bateu um milhão de cópias vendidas ainda na pré-venda. No ano seguinte, “Love Gun” repetiu a façanha — na esteira do resultado de uma pesquisa conduzida pelo Gallup Youth Survey, que indicou que os mascarados eram a banda de rock nº 1 nos Estados Unidos, superando Eagles, Aerosmith e Led Zeppelin em popularidade.

Por falar em “repetecos”, para agradar a Ace Frehley (guitarra) e Peter Criss (bateria), os líderes Gene Simmons (voz e baixo) e Paul Stanley (voz e guitarra) mantiveram o produtor Eddie Kramer, rebaixado a coprodutor, a bordo. Mas ao contrário de “Rock and Roll Over”, que foi gravado ao vivo num teatro vazio, “Love Gun” conduziu o Kiss de volta ao Record Plant, mesmo estúdio onde “Destroyer” havia sido feito com pompas um ano antes.

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Gravação a jato

Tendo levado exatos 25 dias para ser gravado, “Love Gun” foi um dos trabalhos mais rápidos já feitos pelo Kiss. Isso provavelmente se deve ao fato de que Eddie Kramer se atinha tão somente ao lado técnico da coisa em vez de compor, criar arranjos e elaborar conceitos, como outros produtores. Atuava mais como engenheiro de som do que como produtor propriamente dito.

No livro “Kiss: Por trás da máscara” (Companhia Editora Nacional, 2006), Gene Simmons explica:

“Eddie era ótimo, mas basicamente era [um] engenheiro de som. Demos crédito de produtor a ele porque o chamavam de produtor, mas Eddie é engenheiro de som. Ele mexia nos controles da mesa e ficava em cima da pessoa que fazia a mixagem. Eddie ajudava a mixar e só.”

Também fez diferença os quatro entrarem em estúdio munidos de demos que acabaram sendo seguidas basicamente nota por nota na gravação. “I Stole Your Love”, “Tomorrow and Tonight” e a faixa-título foram três que mudaram pouco, quase nada, se comparadas as demos feitas por Paul Stanley e os cortes finais presentes no álbum.

No mesmo supracitado livro, Stanley comenta:

“Ia sozinho ao estúdio e gravava trilhas nas quais depois trabalhávamos juntos e copiávamos. Na época eu tinha uma visão muito clara do que queria fazer e, de certa forma, do que o Kiss iria fazer (…) Eu tinha carta branca para alugar [o] estúdio e ficar trabalhando em minhas músicas (…) Quando o Kiss entrava no estúdio, apenas as recriávamos, pois essencialmente eram feitas sob medida para o Kiss.”

A arma do amor

Embora composto por dez faixas — sendo nove autorais e um cover de “Then He Kissed Me”, do grupo sessentista The Crystals, renomeado “Then She Kissed Me” —, o repertório de “Love Gun” possui carros-chefes indiscutíveis cujas origens, felizmente, foram amplamente documentadas.

Na autobiografia “Uma vida sem máscaras” (Belas Letras, 2015), Paul Stanley conta que a música que dá nome ao álbum foi escrita enquanto voltava de Los Angeles — a fatídica viagem na qual ele e Gene Simmons assistiram ao show de uma então desconhecida banda chamada Van Halen — para Nova York:

“‘Love Gun’ surgiu inteira em minha mente durante o voo: a melodia, a letra, todo o instrumental. Absolutamente tudo. Foi incrível — e, no meu caso raro (…) Quando o avião aterrissou, eu estava pronto para gravar uma demo. Quando cheguei em Nova York, telefonei para um baterista que conhecia e fui quase imediatamente ao Electric Lady [estúdio] para gravar a canção.”

Stanley revela ainda que embora a versão do álbum tenha sido gravada como um fac-símile da demo, o Kiss teve que recorrer a uma ajudinha de fora:

“Peter não conseguia tocar a parte do bumbo quando fomos gravá-la. Depois que ele fez o que podia, tivemos que chamar outro baterista para gravar o que Peter não conseguira.”

Segundo o site Setlist.fm, “Love Gun” é a terceira música mais tocada ao vivo pelo Kiss, atrás somente de “Rock and Roll All Nite” e “Detroit Rock City”. Em “Kiss: Por trás da máscara”, Paul não poupa elogios a si mesmo e à composição:

“Acho que na maioria das vezes em que se compõem músicas boas a gente tem consciência disso. Sempre achei que ‘Love Gun’ fosse uma música ótima e continuo achando uma música tremenda. Provavelmente é a música que mais gosto de tocar. Para mim, ‘Love Gun’ é algo profundamente Kiss e acho que é uma das cinco marcas essenciais [da banda].”

Inspiração chocante

“Love Gun” foi o primeiro álbum do Kiss a conter uma música cantada por Ace Frehley. Pelos anos e turnês subsequentes, “Shock Me” se tornou o momento do show em que todos os holofotes miravam no guitarrista.

Porém, a história por trás da letra não poderia ser mais assustadora. Algumas semanas depois do lançamento de “Rock and Roll Over”, no início de um show na Flórida, Ace foi eletrocutado e quase morto.

Na autobiografia “Não me arrependo” (Belas Letras, 2020), Frehley detalha o ocorrido:

“Deveríamos entrar no palco caminhando por um lance de escada (…) Bem, nessa noite específica, minha guitarra não estava aterrada do jeito adequado, então, quando toquei o corrimão de metal da escada, fui atingido por uma alta dose de eletricidade (…) e fui atirado para trás da plataforma acima dos amplificadores. Acho que os outros rapazes da banda nem perceberam o que havia acontecido (…) Eles continuaram indo em direção ao palco e começaram a tocar.

Enquanto isso, eu estava deitado de costas, atordoado e quase inconsciente (…) Eu estava com queimaduras na ponta dos dedos (…) No fim, os rapazes perceberam que eu não chegava, pararam o show e voltaram para a parte de trás dos amplificadores para ver o que estava acontecendo comigo (…) Quando minha cabeça clareou, pude ouvir a plateia entoando: ‘Queremos Ace! Queremos Ace!’ Isso aumentou minha adrenalina e, cinco minutos depois, voltei a tocar o show inteiro. Eu estava com uma dor de cabeça desagradável e meus dedos estavam um pouco dormentes, mas que diabos? O show deve continuar, certo?”

Ace foi inspirado pelos colegas a escrever sobre sua experiência de quase morte, então se sentou e escreveu “Shock Me”, que todo mundo adorou e concordou que deveria estar no próximo álbum do Kiss. Ao entregá-la para que Gene Simmons e Paul Stanley decidissem quem gravaria os vocais, foi surpreendido por Paul: “Você deveria cantar essa aqui. Já está mais do que na hora”.

Morto de nervoso, Frehley fez Eddie Kramer diminuir as luzes do estúdio e acabou cantando deitado no chão. Mas depois da primeira apresentação ao vivo de “Shock Me” — em 8 de julho daquele ano, no Canadá —, Ace, que só fazia backing vocal, se convenceu de que era bom o suficiente para fazer voz principal e não parou mais de cantar.

Vale menção à opinião dada pelo sempre sem papas na língua Peter Criss na autobiografia “Makeup to breakup: Minha vida dentro e fora do Kiss” (Lafonte, 2013):

“Fiquei muito feliz com o fato de ele [Ace Frehley] finalmente ter a chance de cantar, mas, sejamos realistas, Ace talvez tivesse a pior voz do mundo.”

O “baderneiro” Peter Criss

Falando em Peter Criss, “Love Gun” também seria o último álbum de estúdio do Kiss no qual ele de fato gravou a bateria de todas as músicas. Hoje se sabe que, embora apareça nas capas, coube a Anton Fig o grosso do trabalho em “Dynasty” (1979) e “Unmasked” (1980).

Mantendo a tradição iniciada em “Kiss” (1974) com “Black Diamond”, Criss fornece a voz principal em “Hooligan”, a qual também escreveu. Mas, segundo ele em “Kiss: Por trás da máscara”, se dependesse do produtor, sua contribuição vocal teria sido ainda mais ostensiva:

“Eddie [Kramer] adorou quando cantei. Ele queria até que eu cantasse mais músicas. E aí vem outro ponto controverso. Eddie queria que eu cantasse um par de músicas do Paul, e o Paul surtou (ri). ‘Não me venha com essa, ele não vai cantar música minha!’ (ri). Eddie disse para tentarmos e Paul respondeu: ‘Se ele tentar, você vai gostar e eu não vou poder cantar.”

Lobisomens e pênis de gesso

Autor de quatro músicas de “Love Gun”, Gene Simmons é o integrante com mais créditos individuais no álbum. Suas inspirações não poderiam ter sido menos ortodoxas.

Seguindo a tradição de “Sweet Little Sixteen” (Chuck Berry) e outros clássicos dos primórdios do rock sobre caras ficando em polvorosa por mulheres mais novas, Simmons, que tinha 27 anos na época, entrou na pele de um jovem de 19 anos apaixonado por uma de 16. Daí surgiu “Christine Sixteen” que, reza a lenda, contou com Eddie e Alex Van Halen nas demos. “Got Love for Sale” é outra das suas que Gene afirma ter feito demo com os irmãos.

Já “Almost Human” foi inspirada num livro sobre lobisomens, temática que desperta o fascínio no baixista. Jimmy Maelin, do Ambergris, toca percussão na faixa. Por fim, “Plaster Caster” é definida por Simmons em “Kiss: Por trás da máscara” como “uma ode às groupies”:

“As ‘plaster casters’ eram as tietes de Chicago. Essas garotas tinham um passatempo muito saudável de fazer moldes em gesso de vários pênis e guardá-los como lembranças. Isso sempre me deixou fascinado e eu escrevi uma música a respeito.”

Quando soube da música, a artista Cynthia Plaster Caster, que faleceu recentemente, não recebeu de bom grado a “homenagem”:

“Nunca tive a intenção de fazer o gesso do Kiss. Senti que quando Gene escreveu a música, ele estava passando o recado ao mundo de que ele tivesse sido engessado ou de que eu deveria fazê-lo. Eu não era muito fã do Kiss. Com o tempo, a música me pegou. Ela tem um som que pega (…) Depois eu me encontrei com Gene e ele me disse que não escrevera a música pelos motivos que pensei, mas que era uma fantasia dele.”

A máquina não pode parar

Dois meses depois de ser gravado, “Love Gun” chegou às lojas trazendo outra capa pintada por Ken Kelly, também falecido recentemente, e uma arminha de papelão encartada. O disco foi direto para o quarto lugar das paradas americanas — a posição mais alta alcançada pelo Kiss na época.

Dias após o lançamento, o grupo embarcou em uma nova turnê norte-americana, trajando novos figurinos e experimentando novos efeitos pirotécnicos. O giro marcou também a primeira vez que o quarteto teve seu avião particular.

Com mais três álbuns de estúdio na conta, veio de maneira natural a ideia de um novo registro ao vivo. A partir uma trinca de shows no Los Angeles Forum, foi obtido o material que em outubro daquele ano sairia como ¾ do LP duplo “Alive II”. Eram os passos finais de uma banda que começava a rachar.

Kiss – “Love Gun”

  • Lançado em 30 de junho de 1977 pela Casablanca Records
  • Produzido por Kiss e Eddie Kramer

Faixas:

  1. I Stole Your Love
  2. Christine Sixteen
  3. Got Love for Sale
  4. Shock Me
  5. Tomorrow and Tonight
  6. Love Gun
  7. Hooligan
  8. Almost Human
  9. Plaster Caster
  10. Then She Kissed Me (cover de “Then He Kissed Me”, original do The Crystals)

Músicos:

  • Paul Stanley (vocal, guitarra, primeiro solo de guitarra na faixa 1, baixo na faixa 6)
  • Gene Simmons (vocal, baixo, guitarra base nas faixas 2 e 3)
  • Ace Frehley (guitarra; segundo solo de guitarra na faixa 1; vocal, todas as guitarras e baixo na faixa 4)
  • Peter Criss (bateria, vocal na faixa 7)

Músicos adicionais:

  • Eddie Kramer (teclados nas faixas 1, 2 e 6)
  • Tasha Thomas, Ray Simpson e Hilda Harris (backing vocals na faixa 5)
  • Jimmy Maelen (congas na faixa 8)

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Marcelo Vieira
Marcelo Vieirahttp://www.marcelovieiramusic.com.br
Marcelo Vieira é jornalista graduado pelas Faculdades Integradas Hélio Alonso (FACHA), com especialização em Produção Editorial pela Universidade Estadual Paulista (UNESP). Há mais de dez anos atua no mercado editorial como editor de livros e tradutor freelancer. Escreve sobre música desde 2006, com passagens por veículos como Collector's Room, Metal Na Lata e Rock Brigade Magazine, para os quais realizou entrevistas com artistas nacionais e internacionais, cobriu shows e festivais, e resenhou centenas de álbuns, tanto clássicos como lançamentos, do rock e do metal.

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