Como “Dehumanizer” prometeu levar — e não levou — o Black Sabbath de volta ao topo

Décimo-sexto álbum de estúdio dos pais do heavy metal foi fruto de efêmera reunião com o vocalista Ronnie James Dio e o baterista Vinny Appice

A segunda metade dos anos 1980 vira tanto a audiência do Dio quanto a do Black Sabbath estreitarem-se a ponto de seus álbuns lançados no período amargarem más colocações nas paradas e acumularem resenhas pouco ou nada empolgadas na imprensa musical.

Não obstante o Sabbath ter feito ótimos álbuns com Tony Martin no vocal, todo mundo — leia-se os executivos da gravadora, os empresários da banda e o guitarrista pièce de résistance Tony Iommi — ficou empolgado com a possibilidade de trazer Ronnie James Dio de volta e, consequentemente, recuperar o prestígio e os números de outrora.

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Mas ainda que dotado de todos os predicados que compõem um álbum clássico de heavy metal, “Dehumanizer”, que foi lançado em 22 de junho de 1992, fracassou em seus principais objetivos: ser um fenômeno em vendas e simbolizar, nas palavras de Dio, “um novo começo para a melhor banda da face da Terra”.

Por que Dio deixou o Black Sabbath?

A saída de Ronnie James Dio do Black Sabbath em 1982 não foi nada amigável. Em sua autobiografia “Iron Man: Minha Jornada com o Black Sabbath” (Planeta, 2013), Tony Iommi apresenta sua versão:

“Gravamos um monte de shows nos Estados Unidos para o que viria a ser o primeiro álbum ao vivo oficial do Black Sabbath, mas o projeto inteiro se transformou em um maldito pesadelo. Mais uma vez, estávamos no [estúdio] Record Plant, em Los Angeles. Um cara chamado Lee De Carlo estava fazendo a engenharia de som e a mixagem […] Começamos a mixar o álbum ao vivo e aí começou: eu, Geezer e Ronnie saíamos do estúdio e, quando voltávamos no dia seguinte, o som estava diferente. Lee nunca dizia nada. A gente consertava tudo, voltava no dia seguinte e estava diferente de novo! Lee finalmente cedeu: ‘Vocês saem à noite e, depois, Ronnie vem e altera tudo’ […] Ronnie sempre negou ter feito aquilo, mas foi o que Lee disse. Não sei até que ponto era verdade, era apenas a palavra dele, mas acreditamos na época. Ficamos enfurecidos e tivemos um grande ataque histérico no estúdio. Impedimos Ronnie de ir até lá e esse foi o fim de tudo.”

Na autobiografia “Rainbow in the Dark” (Estética Torta, 2021), o vocalista refuta:

“De acordo com a lenda, uma grande fratura foi causada quando Vinny e eu, supostamente, entrávamos no estúdio sempre que Tony e Geezer não estavam lá, a fim de trazer os vocais e a bateria mais para cima na mixagem e empurrar as partes de Tony e Geezer para baixo. Nada disso é verdade […] O verdadeiro problema, como Tony e Geezer mais tarde insistiram na imprensa, era o medo que compartilhavam de que eu estivesse tentando dominar a banda […] A gota d’água, para mim, foi quando soube que Tony tentou me proibir de entrar no estúdio […] Foi tudo um dispositivo para me forçar a sair […] Poderíamos ter sido os melhores do mundo e, se não conseguíssemos isso, poderíamos pelo menos nos separar como amigos, até mesmo irmãos. Em vez disso, nossos relacionamentos pessoais haviam se degradado a ponto de eles deliberadamente me creditarem no encarte do ‘Live Evil’ simplesmente como Ronnie Dio. Sabiam que eu usava meu nome completo. Eles fizeram isso apenas por serem uns m#rdas.”

No fim das contas, a verdade é uma terceira via à qual nunca se terá acesso; o que não muda o fato que depois da saída de Ronnie, ele e os outros ficaram sem se falar durante vários anos. Portanto, era muito improvável que tocassem juntos de novo.

Canjas que deram caldo

A semente da volta de Ronnie James Dio foi plantada meio que por acaso quando, em dezembro de 1990, após os últimos shows da turnê do álbum “Tyr”, lançado em agosto daquele ano, Geezer Butler reassumiu o baixo no Black Sabbath. O test-drive ocorrera três meses antes, no palco do Hammersmith Odeon, em Londres; sem ter ideia dos prováveis desdobramentos, Butler topara subir ao palco para dar uma canja com sua antiga banda.

Pouco antes, o baixista havia feito as pazes com o vocalista; Geezer chegou a tocar “Neon Knights”, um dos carros-chefes de “Heaven and Hell” (1980), ao vivo com o Dio em Minneapolis. Tendo achado ótima a experiência, e ciente de que estava mais do que na hora de o Sabbath reivindicar a coroa do heavy metal, Butler sugeriu a Iommi uma reaproximação com Ronnie.

Com Dio e Butler de volta, o que restou para Tony Martin e o Neil Murray foi a porta da rua — e, no caso do vocalista, o contrato para um álbum solo, no qual começou a trabalhar imediatamente. “Back Where I Belong” chegaria às lojas em 1992 e nem mesmo o elenco estelar — Brian May (Queen), Nigel Glockler (Saxon) e o baterista filho de Ringo Starr, Zak Starkey, entre outros — o impediria de passar batido.

Além da queda, o coice

A ideia inicial de Tony Iommi, apesar dos protestos de Ronnie James Dio, era manter o baterista Cozy Powell no Black Sabbath. Dio e Powell não se bicavam desde o fim dos anos 1970, quando ambos pertenciam ao Rainbow. O vocalista bem que tentou trazer Simon Wright, que tocava em sua banda solo, a bordo, mas Iommi o vetou.

Quis o destino, porém, que o azarado Powell fraturasse a pélvis numa queda de cavalo — na verdade, o cavalo que ele montava teve um ataque cardíaco e caiu em cima dele — e ficasse de molho por tempo suficiente para lhe custar a vaga. Houve quem especulasse que o baterista sequer voltaria a andar. Trazer Vinny Appice, que foi baterista do Sabbath de 1980 a 1982, pareceu ser a solução marqueteira óbvia.

Em sua autobiografia, Iommi avalia o acidente de Powell como “um mal que veio para o bem”:

“Ronnie estava puto por Cozy estar na banda e me lembro de Cozy dizer: ‘Se esse babaca se dirigir a mim, vou encher a cara dele de porrada’ […] Se não fosse algo tão horrível de se falar, dava para dizer que o acidente foi um mal que veio para o bem. Eu amava Cozy e ele era um grande amigo, mas é preciso que a combinação em uma banda seja adequada.”

Ao biógrafo Mick Wall, autor de “Black Sabbath: A Biografia” (Globo, 2014), Powell, que nos deixou em 1998, deu a entender que se sentiu traído por Iommi:

“Fui chutado da banda porque um cavalo caiu em cima de mim e não pude tocar por seis meses […] Fiquei desapontado com as escolhas do Tony e especialmente porque ele não queria esperar que eu me recuperasse. Se eu iria querer tocar com o Ronnie era outra coisa, mas achei que o Tony fosse meu amigo. Fui muito ingênuo, claro, deveria conhecer melhor esse negócio.”

Menos dragões, mais computadores

Logo nos primeiros meses de 1992, a imprensa especializada noticiou: Ronnie James Dio, Tony Iommi, Geezer Butler e Vinny Appice — além do tecladista Geoff Nicholls, rebaixado de membro oficial a músico de apoio — estavam de volta e já gravando seu primeiro disco juntos desde “Mob Rules” (1981).

A gravação do que deu origem a “Dehumanizer” teve início em meados de 1991, estendendo-se até o começo do ano seguinte. Juntamente com o produtor Reinhold Mack — cujo trabalho em “The Game” (1980), do Queen, lhe rendera uma indicação ao Grammy em 1981 —, o grupo se radicou no País de Gales na esperança de que tais ares provessem a inspiração necessária.

Embora Iommi, Butler e Dio fossem bons trabalhando juntos, a composição do material foi marcada por momentos de tensão. O primeiro deles veio logo no começo do processo, conforme o guitarrista escreve em sua autobiografia:

“Estávamos sob muita pressão, porque todo mundo tinha grandes expectativas quanto a nós. Para começar, colocamos Ronnie um pouco contra a parede, porque não queríamos que ele cantasse a respeito de masmorras, dragões e arco-íris. Foi difícil dizer isso a ele, porque ele cantou a respeito de arco-íris em todos os álbuns dos quais participou. Ele ficou meio incomodado.”

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Partiu do baixista a ideia de explorar temáticas mais contemporâneas, segundo relata ao biógrafo Mick Wall:

“Ronnie e eu nos sentamos para discutir a direção das letras. Sugeri: ‘vamos tratar do que está acontecendo no mundo agora’. Havia muito material para mergulhar e escrever.”

No rol de letras sobre “coisas reais”, algumas das melhores do cânone sabático, como “TV Crimes”, primeiro single liberado, que mira na hipocrisia dos televangelistas até hoje tão populares, inclusive no Brasil, que oferecem a seus fiéis uma falsa sensação de segurança espiritual enquanto roubam deles o máximo de dinheiro que podem. Já “Computer God”, que abre o disco, tem sua história contada por Butler em entrevista a Dave Larsen publicada na edição de 13 de novembro de 1992 do Time Out:

“‘Computer God’ fala sobre como os computadores estão substituindo os seres humanos — daí o título do álbum, ‘Dehumanizer’. Parece que os computadores estão tomando conta de tudo, e isso tem um efeito desumanizador na raça humana.”

Na mesma entrevista, Geezer conta a inspiração por trás de “Sins of the Father” (“abuso psicológico infantil sendo passado de geração em geração”), “Buried Alive” (“o universo às vezes parecer conspirar contra nós”) e “After All (The Dead)”, que, como o próprio título já indica, versa a respeito da vida após a morte.

A verdadeira história de “Master of Insanity”

Apenas uma única faixa em “Dehumanizer” não teve a mão de Ronnie James Dio na escrita da letra. Trata-se de “Master of Insanity”, segunda e última música de trabalho do álbum. Seu autor é Jimi Bell, guitarrista que desde meados dos anos 2000 pertence ao House of Lords e, atualmente, ocupa o posto outrora pertencente a Steve Lynch no Autograph.

Em entrevista a este jornalista realizada em novembro de 2020, Bell contou que nunca recebeu um centavo pela valiosa contribuição:

“Escrevi ‘Master of Insanity’ quando tocava na banda [solo] do Geezer Butler. Um belo dia, a mulher do Geezer, Gloria, me ligou para dar as más notícias: o contato dele com a MCA havia sido rescindido. Geezer acabou se juntando temporariamente à banda do Ozzy [Osbourne]. Passado um tempo, Gloria me ligou de novo: ‘Boas novas, Jimi. O Black Sabbath está se reunindo com Ronnie James Dio e vai gravar a sua música!’ Imagine só a minha empolgação! Mas ela falou que não poderia me dar o crédito por escrito porque Tony Iommi nunca deixaria que uma música escrita por alguém de fora fizesse parte de um disco do Sabbath. Geezer assinaria como único compositor e colocaria agradecimentos especiais para mim no encarte. Fiquei arrasado, mas eles prometeram me pagar pela música quando a turnê acabasse. Fui a alguns shows dessa turnê, eles a tocaram em todos e a citavam frequentemente nas entrevistas. A turnê chegou ao fim e eu nunca recebi um centavo. Fazer o quê?”

Embora tenha ficado de mãos abanando, a certa altura Bell simplesmente resolveu deixar para lá, mas uma situação específica, relatada na mesma entrevista, para ele, foi tão importante quanto teria sido a compensação financeira:

“Um dia encontrei Ronnie e me apresentei. Ele respondeu: ‘Jimi Bell, da ‘Master of Insanity’?’ Fiquei de cara! Ficamos uns 40 minutos batendo papo. Ele falou que eu devia ter sido pago pela música, que era uma sacanagem dos caras do Sabbath. Com todos os milhões que ganhavam, não poderiam ter me pago pela música? Mas é assim que as coisas são.”

Justiça tardia foi feita à contribuição de Bell: algumas biografias do Sabbath incluíram seu nome como autor de “Master of Insanity”.

Lentidão programada

Houve um esforço consciente por parte do Black Sabbath em atualizar seu som para a década de 1990. Na mesma entrevista para o Time Out, Geezer Butler conta que esse talvez tenha sido o maior desafio e, embora estivesse fora da banda desde meados de 1984, reconhece que os álbuns lançados pela banda entre 1985 e 1990 tiveram peso e identidade subtraídos em razão de excessivas etapas de pós-produção.

“Estamos soando como se estivéssemos nos anos 1970. Acho que o erro sempre foi ficar muito tempo em estúdio, fazendo trocentos overdubs que não eram realmente necessários, e polindo e lapidando músicas que não requeriam nem um nem outro.”

A fim de resgatar a crueza dos velhos tempos, todas as faixas básicas foram gravadas ao vivo em estúdio. E ao contrário do que vinha sendo ouvido nos álbuns do Sabbath — músicas velozes como “Turn to Stone”, de “Seventh Star” (1986) ou “The Law Maker”, de “Tyr” —, “Dehumanizer” é dominado por uma estranha lentidão que, de certa forma, o posiciona mais lado a lado com “Lock Up the Wolves”, do Dio, do que com “Mob Rules”.

Em “Black Sabbath: A História Completa” (DarkSide Books, 2013), Ronnie James Dio justifica a abordagem:

“Não queríamos seguir as tendências dos últimos dez anos. Achamos que já existem bandas thrash demais para lidarem com isso. O que o Black Sabbath sempre fez de melhor é ser bem fúnebre e bem lento. Músicas rápidas, aliás, são as coisas mais difíceis do planeta de compor.”

Volta às raízes, mas não às cabeças

“Dehumanizer” foi muito bem recebido e conquistou boas posições nas paradas do Reino Unido (#28) e dos Estados Unidos (#44) se comparado, por exemplo, a “Lock Up the Wolves” (1990), do Dio, que sequer entrara no top 30 britânico e estagnara no número 61 do ranking americano.

Em sua autobiografia, Tony Iommi confessa que todos esperavam maior expressão em vendas e escancara uma volatilidade pouco documentada:

“Achamos que faria muito mais sucesso, porque fazia dez anos que não nos reuníamos. Além disso, eu não estava satisfeito com tudo o que aconteceu quando o gravamos. A banda não se adaptou bem. Estávamos prestes a sair em turnê, mas, ao mesmo tempo, parecia que tudo poderia implodir a qualquer momento.”

Ao biógrafo Mick Wall, Geezer Butler se atém a avaliar “Dehumanizer” do ponto de vista estritamente artístico:

“Musicalmente, voltamos ao som original do Black Sabbath; era o que todos queríamos. Em termos de letras, acho que o Ronnie avançou. Então [‘Dehumanizer’] é um pouco dos dois. Voltar às raízes, mas avançando.”

Ronnie James Dio é ainda mais efusivo:

“Achei que provavelmente todos terminaríamos nossas carreiras com essa banda.”

No dia seguinte ao lançamento de “Dehumanizer”, o Sabbath desembarcou no Brasil para dar início à turnê que o trouxe ao país pela primeira vez. A banda abriu o giro com três apresentações em São Paulo, duas no Rio de Janeiro e uma em Porto Alegre, além de ter cancelado o show previsto para Curitiba.

A Dehumanizer Tour se estenderia até novembro. No dia 13 daquele mês, Dio subiria ao palco com o Sabbath pela última vez – desconsiderada a posterior reunião sob a alcunha Heaven & Hell. Para as duas datas restantes da turnê, a banda contou com Rob Halford, do Judas Priest, nos vocais.

Black Sabbath – “Dehumanizer”

  • Lançado em 22 de junho de 1992 pela I.R.S. / Reprise Records
  • Produzido por Reinhold Mack

Faixas:

  1. Computer God
  2. After All (The Dead)
  3. TV Crimes
  4. Letters from Earth
  5. Master of Insanity
  6. Time Machine
  7. Sins of the Father
  8. Too Late
  9. I
  10. Buried Alive

Músicos:

  • Ronnie James Dio (vocal)
  • Tony Iommi (guitarra)
  • Geezer Butler (baixo)
  • Vinny Appice (bateria)
  • Geoff Nicholls (teclados)

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Marcelo Vieira
Marcelo Vieirahttp://www.marcelovieiramusic.com.br
Marcelo Vieira é jornalista graduado pelas Faculdades Integradas Hélio Alonso (FACHA), com especialização em Produção Editorial pela Universidade Estadual Paulista (UNESP). Há mais de dez anos atua no mercado editorial como editor de livros e tradutor freelancer. Escreve sobre música desde 2006, com passagens por veículos como Collector's Room, Metal Na Lata e Rock Brigade Magazine, para os quais realizou entrevistas com artistas nacionais e internacionais, cobriu shows e festivais, e resenhou centenas de álbuns, tanto clássicos como lançamentos, do rock e do metal.

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