Como o Iron Maiden ganhou forma e fez história com “The Number of the Beast”

Terceiro álbum de estúdio da banda expande possibilidades sonoras com estreia do vocalista Bruce Dickinson e processo criativo mais colaborativo

A história de “The Number of the Beast”, terceiro álbum de estúdio do Iron Maiden, começa muito antes de seu processo de gravação, que culminou no lançamento em 22 de março de 1982. E, como dá para notar, termina bem depois de seu ciclo de divulgação, encerrado em dezembro do mesmo ano.

O disco em questão foi o primeiro do grupo com Bruce Dickinson. O cantor topou sair de uma banda em tímida ascensão, o Samson, para se juntar a outra que já se consolidava como uma das grandes referências da chamada New Wave of British Heavy Metal (NWOBHM). Uma escolha lógica, certo?

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Nem tanto. O vocalista anterior na Donzela de Ferro era Paul Di’Anno, um frontman de pegada bem diferente. Enquanto Bruce tinha Ian Gillan (Deep Purple) como sua grande referência, Paul, que gravou os álbuns “Iron Maiden” (1980) e “Killers” (1981) antes de ser demitido em função de seus vícios, nunca escondeu sua paixão pelos Ramones e outros ícones punk. Dois bichos completamente distintos.

Bruce Dickinson, o desobediente

Ao ser chamado pelo empresário Rod Smallwood para se juntar ao Maiden nos bastidores do festival Reading Rocks, em 29 de agosto de 1981, Bruce Dickinson buscou se certificar de que teria liberdade para trabalhar.

Em recente entrevista à Classic Rock Magazine, o cantor narrou sua resposta ao manager:

“Falei: ‘Em primeiro lugar, você sabe que vou conseguir o trabalho – caso contrário, não me chamaria. Quando eu conseguir o trabalho – e eu vou conseguir –, você está preparado para um estilo totalmente diferente, para as opiniões e para alguém que não será obediente? Se não quiser isso, me diga agora e eu caio fora’.”

Rod, claro, ficou atônito de início. Mas aceitou. Na sequência, Bruce foi submetido a um teste meramente protocolar, onde regravou faixas antigas da banda. Horas depois, foi a um show do UFO com seus novos colegas: Steve Harris (baixo), Dave Murray (guitarra), Adrian Smith (também guitarra) e Clive Burr (bateria). Era o início de uma bela história.

Iron Maiden do zero – ou não

Em outubro de 1981, rolaram os primeiros shows com Bruce Dickinson em uma miniturnê pela Itália. A ideia era justamente servir de aquecimento para o próximo trabalho, que notoriamente soaria diferente dos dois anteriores.

Os músicos do Iron Maiden garantem que “The Number of the Beast” foi feito praticamente do zero, já que não havia ideias a serem reaproveitadas – os trabalhos passados traziam músicas exaustivamente testadas em shows. Steve Harris, à Classic Rock, diz:

“Havia muita pressão. Não apenas tínhamos um novo vocalista: não tínhamos material. O primeiro álbum era como uma coletânea das músicas que tocávamos nos primeiros quatro anos de banda. O segundo também trazia coisas antigas, só umas quatro eram novas. Quando chegamos ao terceiro disco, não tínhamos nada. Tivemos que compor do zero. A pressão te ajuda, mas você passa pelo inferno até chegar lá.”

Por outro lado, há registros de que quase todas as canções deste então novo álbum foram apresentadas ao vivo, ainda que em versões iniciais. Mais especificamente, dois shows isolados na Inglaterra em 15 de novembro e 23 de dezembro de 1981 trouxeram músicas como “Hallowed Be Thy Name”, “The Prisoner”, “22 Acacia Avenue”, “Children of the Damned” e “Run to the Hills”. Como “Invaders” era uma nova versão da antiga “Invasion”, apenas dois números do disco foram criados em 1982: “Gangland” e a faixa-título “The Number of the Beast”.

Se o trabalho não foi do zero, dá para dizer que a dinâmica mudou muito. Embora não pudesse ser creditado por qualquer contribuição criativa devido a contratos prévios com o Samson, Bruce Dickinson colaborou bastante para o desenvolvimento do álbum, mais especificamente com “Children of the Damned”, “The Prisoner” e “Run to the Hills”. Além disso, foi o primeiro disco a trazer ideias próprias de Adrian Smith e o único com uma participação autoral de Clive Burr (em “Gangland”). Steve Harris ainda era o responsável pela maior parte das músicas, mas as coisas estavam ficando mais coletivas.

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Adrian, vale citar, se destacou no processo: é coautor de “The Prisoner”, “22 Acacia Avenue” e a já mencionada “Gangland”. À Classic Rock, ele comentou:

“Eu tinha muita vergonha de mostrar minhas músicas à banda. Era doloroso sentar diante de seus colegas e falar ‘essa é minha ideia’, tendo eles apenas olhando para você. Mas eu achei que se eu queria ficar na banda, ficaria muito frustrado se não contribuísse com ideias. Felizmente, com ‘The Prisoner’, Steve gostou do que ouviu.”

Com as participações de Smith e Dickinson no processo criativo, o som do Maiden ficou notoriamente mais melódico. Por mais que Harris se recuse a reconhecer, os dois primeiros álbuns da banda têm uma sonoridade bem guiada pelo punk. A nova configuração do grupo permitiu que o material presente em seu terceiro disco fosse mais elaborado, seja em letras, arranjos, variações rítmicas ou performances individuais.

A gravação de “The Number of the Beast”

Como era comum naqueles tempos, o Iron Maiden não teve muito tempo para gravar “The Number of the Beast”. Após uma pré-produção mais demorada que o habitual, o álbum teve sua gravação e mixagem toda concebida em apenas cinco semanas entre janeiro e fevereiro de 1982, nos estúdios Battery em Londres, Inglaterra.

A produção foi assinada por Martin Birch (Deep Purple, Rainbow, Fleetwood Mac, Black Sabbath), que gravara o anterior “Killers” e se tornaria uma espécie de “funcionário fixo” do Maiden nos anos seguintes, dedicando-se exclusivamente aos trabalhos deles.

Eventos supostamente paranormais durante as sessões no Battery parecem ter inspirado a criação da polêmica faixa que nomeia o disco. Os músicos contam que luzes eram ligadas e apagadas sozinhas e equipamentos estragavam misteriosamente ao longo do processo. Na época, Birch também sofreu um acidente de carro curioso: bateu em um miniônibus que transportava freiras e ao arcar com o reparo, a conta recebida ficou em… 666 libras. Supersticioso, ele fez questão de colocar um valor adicional para que não caísse no “número da besta”.

Em entrevista à Night Rock News, em 1982, Steve Harris negou que as histórias contadas no parágrafo anterior sejam inventadas.

“Não teve nada a ver com a questão do ‘666’. Tivemos muitos problemas. Precisamos mudar o gravador de fita porque o anterior parou de gravar. Essas coisas podem acontecer – é só que tivemos mais problemas dessa vez. Quanto ao acidente, as pessoas não acreditam, mas ele mudou a conta para 667. Só fizemos uma música com referência a isso (‘666’), mas ele trabalhou bastante com o Black Sabbath e aparentemente eles se aprofundam nessas coisas. Então, não sei, talvez tenha algo a ver.”

Bizarrices à parte, o processo de gravação buscou extrair o máximo de cada integrante. Martin Birch viu potencial na nova formação, então tratou de direcionar a atuação do grupo – não à toa, sempre foi citado como um “guru” por Bruce Dickinson. Em entrevista a Mick Wall, publicada na biografia autorizada “Run to the Hills”, o já falecido produtor comentou:

“Eu não achava que Paul Di’Anno era capaz de entregar vocais em algumas das direções complexas que eu sabia que Steve queria explorar. Quando Bruce chegou, isso abriu gigantes possibilidades para o novo álbum.”

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Sucesso e controvérsia

Os esforços em torno de “The Number of the Beast” deram certo: hoje com milhões de cópias vendidas mundialmente, o álbum atingiu o topo das paradas do Reino Unido (impulsionado pelo single “Run to the Hills”, que bateu a 7ª posição no chart local) e chegou ao top 10 de outros cinco, incluindo Suécia e Austrália. Nos Estados Unidos, obteve uma satisfatória 33ª colocação no ranking, conquistada a duras penas: foram realizados 95 shows no país de maio a agosto e entre setembro e outubro, abrindo para Judas Priest, Scorpions e Rainbow. Um itinerário exaustivo, mas recompensador.

O único revés, se é que dá para chamar de “revés”, foi a tentativa de boicote ao grupo por parte de ativistas religiosos americanos, que quebraram cópias do álbum em público e protestaram na entrada de shows. Chegaram a carregar uma cruz de 7 metros enquanto alertavam para o “conteúdo subversivo” – que era inspirado em filmes, livros e fatos históricos, nada de adoração ao Satã ou algo do tipo.

Não dá para saber se Steve Harris e seus parceiros ficaram surpresos ou se já esperavam tal reação dos americanos. Até porque não dá para negar que o conteúdo pode parecer provocativo em um primeiro momento, seja pela música que nomeia o disco, seja pela capa criada por Derek Riggs – que seria usada no single “Purgatory”, mas acabou engavetada provisoriamente.

Fato é que a tentativa de boicote pode ter até deixado o público jovem ainda mais curioso pelo Maiden. E foi a partir daqui que tudo começou a dar certo para a banda. Apesar da saída de Clive Burr após o encerramento da turnê, no fim de 1982, o substituto Nicko McBrain deu conta do recado e permanece na formação até hoje. Nada poderia parar a Donzela de Ferro naquele momento.

O legado da besta

Nos próximos anos, o Iron Maiden dominou ainda mais o cenário da música pesada ao lançar álbuns como “Piece of Mind” (1983), “Powerslave” (1984) e “Somewhere in Time” (1986). Indo muito além das vendas, a banda se tornou referência para vários músicos que chegaram nos anos seguintes, de ramificações que vão do power metal ao metalcore, do metal progressivo ao thrash metal e por aí vai.

E tudo começou, de fato, aqui. Não que os trabalhos com Paul Di’Anno sejam descartáveis – longe disso –, mas a Donzela ganhou seu rosto definitivo em “The Number of the Beast”. Não à toa, o disco se tornou modelo para a própria banda, do principal aos detalhes (repare na quantidade de lançamentos e turnês dos caras que fizeram uso da palavra “beast” após 1982).

Curiosamente, o sempre ambicioso Steve Harris não enxerga o álbum em questão como o melhor de sua carreira. À Classic Rock, ele opina:

“Não achava na época que era nosso melhor álbum e ainda não acho isso. Há algumas faixas que não acho tão boas. Se ‘Total Eclipse’ (presente em edições expandidas) estivesse no álbum em vez de ‘Gangland’, seria bem melhor. Além disso, acho que ‘Invaders’ poderia ter sido substituída por algo um pouco melhor, mas não tínhamos nada para usar na época.”

Talvez não seja o melhor da discografia em diversos sentidos, embora seja meu favorito. Mas incontestavelmente foi o álbum que começou a mudar o jogo para o Iron Maiden.

Iron Maiden – “The Number of the Beast”

Lançado em 22 de março de 1982 pela gravadora EMI.

Bruce Dickinson (vocal)
Dave Murray (guitarra)
Adrian Smith (guitarra)
Steve Harris (baixo)
Clive Burr (bateria)

  1. Invaders
  2. Children of the Damned
  3. The Prisoner
  4. 22 Acacia Avenue
  5. The Number of the Beast
  6. Run to the Hills
  7. Gangland
  8. Hallowed Be Thy Name

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Igor Miranda é jornalista formado pela Universidade Federal de Uberlândia (UFU), com pós-graduação em Jornalismo Digital. Escreve sobre música desde 2007. Além de editar este site, é colaborador da Rolling Stone Brasil. Trabalhou para veículos como Whiplash.Net, portal Cifras, revista Guitarload, jornal Correio de Uberlândia, entre outros. Instagram, Twitter e Facebook: @igormirandasite.

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