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Como Paul McCartney encantou São Paulo pela 5ª vez em um ano

Mesmo com raras novidades no setlist, eterno Beatle consegue façanha de oferecer show completo e quase — eu disse quase — irretocável

Em 16 de outubro de 1961, exatos 63 anos antes da performance no Allianz Parque da última quarta-feira (16), os Beatles realizavam seu 60º show no agora lendário Cavern Club, de Liverpool. Foi a primeira apresentação da banda no local desde que John Lennon e Paul McCartney retornaram de Paris, onde haviam passado duas semanas de férias.

A performance em questão aconteceu no horário de almoço, possivelmente entre meio-dia e duas da tarde. Estima-se que a banda, completa pelo guitarrista George Harrison e à época pelo baterista Pete Best (substituído em 1962 por Ringo Starr), tenha subido ao palco do Cavern mais de 280 vezes, sendo pelo menos 155 dessas ocasiões na faixa do meio-dia e 125 à noite.

- Advertisement -

Paul adorava se apresentar no horário de almoço. Era o melhor tipo de show em sua opinião. Em entrevista de 1971 ao Melody Maker, ele disse:

“Meus melhores dias tocando eram nas sessões de almoço do Cavern. Subíamos no palco com um pãozinho de queijo e um cigarro. Sentíamos que realmente tinha algo acontecendo. Os amplificadores costumavam fundir. Parávamos e cantávamos um comercial da Sunblest Bread enquanto eles eram consertados. Eu andava pela rua, tocando meu violão e irritando os vizinhos.”

No fim de 2023, especulava-se que Macca, à época com 81 anos de idade (hoje com 82), iria se aposentar dos palcos. Rumores mais ousados apontavam que a performance final seria no estádio do Maracanã, Rio de Janeiro, em 16 de dezembro. Outros, mais cautelosos, diziam que ele aproveitaria a ocasião, que encerrava a passagem da turnê “Got Back” pelo Brasil — e a agenda de compromissos do artista até então —, para anunciar uma tour final.

Nada disso aconteceu. O público (tanto no Maracanã quanto em casa, já que o evento foi transmitido pelo Disney+) teve “apenas” mais um espetáculo de rock and roll que só o cute Beatle poderia oferecer. Paul tirou férias longas, algo que não podia fazer nos tempos de Cavern (ou mesmo na época de fama da banda), e retornou aos palcos no início deste mês para uma longa temporada de shows na América do Sul, já que, em 2023, só visitou o Brasil.

A turnê trazida ao continente, com repeteco nacional em São Paulo (duas datas, na última terça, 15, e quarta, 16) e Florianópolis (no sábado, 19), é a mesma do ano passado. O repertório só traz uma mudança: “Now and Then”, a “música final” dos Beatles, possibilitada a partir do uso de inteligência artificial para “limpar” uma gravação deixada por Lennon, assassinado em 1980. McCartney, Starr e Harrison (que nos deixou em 2001) tentaram transformá-la em uma canção nos anos 1990, sem sucesso.

Em 2024, para Paul, tudo é possível. Dá para terminar uma música abandonada que soava mal na versão demo. Dá para tirar férias longas. Dá para retornar ao Brasil com a mesma turnê, com praticamente o mesmo repertório, e emocionar todo mundo do mesmo jeito.

Só não dá para aposentar. O cara que adorava fazer show no horário de almoço enquanto comia pãozinho de queijo ainda trata o palco como seu santuário.

Talvez ele tenha aprendido a amar o espetáculo ao vivo em meio aos hiatos. Os Beatles não se apresentaram ao vivo em seus últimos quatro anos de existência. Os Wings realizaram bem menos turnês do que poderiam. Sua carreira solo não teve agenda ostensiva ao vivo entre 1980 e 1988 e de 1995 até 2001. Mas tudo indica que ele sempre deu extremo valor ao palco. Caso contrário, não teria realizado com o Fab Four mais de 1,3 mil performances entre 1960 e 1964 — inclusive as exigentes temporadas no citado Cavern Club.

Também, tudo indica que Paul McCartney vai seguir no palco, seu santuário, até quando o corpo conseguir. E com base no que foi visto em São Paulo, na última quarta (16), ainda teremos muito tempo até que a tal aposentadoria ocorra.

Diferenças em relação ao 1º show — e a 2023

Não dá para dizer que a apresentação de quarta (16), com início atrasado em 30 minutos devido ao trânsito intenso que atrapalhou a chegada dos fãs, não teve novidades, seja em comparação à de terça (15), seja no paralelo traçado com 2023. São poucas, é verdade — até o teor das interações com o público se repete —, mas ninguém compra ingresso para ver Paul McCartney esperando a reinvenção da roda.

Em relação a 2023, a grande “notícia” é a já mencionada inclusão de “Now and Then”, a chamada “música final dos Beatles”. A composição, datada dos anos 1970, é de John Lennon. Os demais apenas contribuíram para completá-la.

Por ter sido concebida fora do ambiente da banda, não soa como ela. Também não soa como John solo, já que este sequer pôde finalizá-la. Logo, não apresenta a mesma magia. Ainda assim, quando combinada com imagens antigas nos telões — no único momento do show em que a imagem de Paul não predomina nas telas laterais —, é capaz de encantar e até emocionar.

Na comparação com o show de terça (15), houve três alterações. A saber:

  • “Can’t Buy Me Love” retornou à abertura, substituindo “A Hard Day’s Night”;
  • Fora dos setlists dede 2019, “All My Loving” surgiu como quarta faixa da noite, no lugar de “Drive My Car”;
  • Como segunda canção do bis, “Day Tripper” ocupou a vaga de “Birthday” em um upgrade incontestável.

De resto, tudo igual, inclusive em relação ao ano passado. Escolhas e ordem de repertório, artes de telão, espetáculos de luzes (e fogos de artifício em “Live and Let Die”), interações (várias delas em um português razoavelmente lido de uma colinha) e, o mais importante, qualidade de execução. Seja de Macca, seja do timaço que o acompanha há anos.

Abe Laboriel Jr (bateria), Rusty Anderson (guitarra), Paul Wickens (teclados, violão, gaita) e Brian Ray (guitarra e baixo) são mestres em seus instrumentos, assim como o trio de metais Hot City Horns, composto por Mike Davis (trompete), Kenji Fenton (saxofone) e Paul Burton (trombone). Todos eles são regidos por Paul, que, além de vocais, se reveza entre baixo, guitarra, violão, mandolin, ukulele e dois tipos de piano. Impressiona.

Os melhores momentos

Este humilde site já cobriu outros sete shows de Paul McCartney no Brasil. Em 2023, nas cidades de Brasília, Belo Horizonte e Rio de Janeiro, além das três datas em São Paulo (dias sete, nove e dez de dezembro). Neste ano, a performance da última terça (15). Por isso, em vez de dissecar as apresentações — algo feito nos outros textos —, o artigo presente se empenhará em destacar alguns momentos e conceitos.

a) O retorno de “All My Loving”, um dos grandes hits da primeira fase dos Beatles, foi uma excelente sacada. “Drive My Car” não é nada mal, todavia, resgatar uma faixa que não era tocada desde 2019 oferece sensação de frescor ao público. E, inegavelmente, é uma escolha melhor do que “She’s a Woman”, tocada em boa parte dos compromissos de 2023 na mesma posição do set.

b) Das 37 canções executadas, apenas seis vêm da carreira solo de Paul. A maior parte delas se mostra um acerto na escolha: a envolvente “Come On to Me”, a bela “Maybe I’m Amazed”, a divertida “Dance Tonight” (com os já clássicos passos de dança de Abe Laboriel Jr) e a interessante “New”. Peca-se apenas nas morosas “My Valentine” e “Here Today”, mas suas funções no set são compreensíveis.

c) Oito faixas do Wings marcam presença, também agradando até uma considerável parcela de fãs que parecia não conhecê-las. “Junior’s Farm” soa quase como um “aquecimento”, ainda que seja a segunda da noite. “Letting Go” diverte pela presença do Hot City Horns em meio à plateia, enquanto a roqueira “Let Me Roll It” tem uma irresistível jam final ao som de “Foxy Lady”, da Jimi Hendrix Experience. O groove de “Nineteen Hundred and Eighty-Five” provoca remelexos; por sua vez, “Jet” é fácil de se cantar e apreciar. “Band on the Run” (em 2023 dedicada ao guitarrista Denny Laine, falecido enquanto Macca estava no Brasil) e “Live and Let Die” são as duas únicas que podem ser chamadas de clássicas, mas se equiparam a vários hits dos Beatles. Talvez o único ponto baixo seja “Let ‘Em In”, também morosa.

d) As homenagens, no geral, emocionam. A já mencionada jam ao som de “Foxy Lady” é sucedida por um breve discurso em que McCartney celebra a “bela alma” de Hendrix. “In Spite of All the Danger” não é declaradamente um tributo, mas leva o público a imaginar como eram os Beatles antes de se tornarem os Beatles, já que a canção foi gravada como The Quarrymen. John Lennon é lembrado duas vezes: em “Here Today” de forma breve e já no bis em “I’ve Got a Feeling”, no lindo “dueto” que já se tornou obrigatório nos shows de Paul. Mas a lembrança mais incrível é destinada a George Harrison, com “Something” executada (inicialmente só por Macca no ukulele) enquanto várias imagens do guitarrista rolam no telão.

e) Os momentos mais “espetáculo” realmente levam tal palavra a sério. A partir de “Something”, tudo fica gigante: a divertida “Ob-La-Di, Ob-La-Da” faz todo mundo dançar, “Band on the Run” e “Get Back” exaltam o lado classic rock de Paul e, com este de volta ao piano, concluem o set regular “Let It Be”, “Live and Let Die” (com fogos em quantidade tão alta a ponto de deixar o Allianz esfumaçado) e “Hey Jude” (em que o público levanta suas plaquinhas de “na na”). No bis, são fora de série a já citada “I’ve Got a Feeling”, a pesada “Helter Skelter” com enorme capricho na iluminação e o cinematográfico medley final de “Abbey Road” (1969), com “Golden Slumbers”, “Carry That Weight” e “The End”.

f) As constantes demonstrações de respeito ao público se dão de diversas formas. Para além da performance exemplar, Paul se esforça para falar português, seja de forma séria ou bem-humorada. Foram mais de 10 declarações contadas, a exemplo de “essa música é para meu mano John” (“Here Today”), “dedicada ao meu mano parça George” (“Something”), “essa festa tá f#da”, “o pai tá on” e por aí vai. Antes do início do bis, o músico e seus companheiros de banda retornaram ao palco com as bandeiras do Brasil, Reino Unido e LGBTQIAPN+, reforçando a mensagem de inclusão que várias de suas composições carregam.

Casos a se repensar

Todavia, nem tudo é perfeito. Passa muito perto disso, é verdade. Ainda assim, há pontos a se repensar no atual espetáculo de Macca — nada que prejudique a experiência, vale enfatizar.

A evasão do público, já não tão massivo em comparação a 2023, conforme rolava o bis indica que nem sempre há interesse em um espetáculo tão longo, que marca duas horas e meia. Muitos fãs que acabaram perdendo “Helter Skelter” e o medley final de “Abbey Road” poderiam ter apreciado tais momentos caso fossem dispensadas canções de pouco apelo, como as já citadas “Let ‘Em In”, “My Valentine” e “Here Today”.

Em aspectos técnicos, a performance só teve um problema: o som baixo, a ponto de conversas paralelas serem facilmente ouvidas. Fãs em outros setores que não a pista premium compartilharam relatos similares. De forma que por vezes parece até intencional, a voz de Paul também tem seu volume reduzido.

Ainda sobre escolhas de setlist, há canções ausentes há algum tempo que poderiam ser lembradas no momento recente. “We Can Work It Out” (fora desde 2022), “Paperback Writer” (desde 2015), “And I Love Her” (desde 2017) e “Flaming Pie” (desde 2022) são alguns exemplos de faixas que podem ser resgatadas.

Saldo final

Nada do que foi mencionado anteriormente desabona o espetáculo. O eterno Beatle segue uma forma testada e aprovadíssima no Brasil, a ponto de este ser o terceiro país em que mais se apresentou em carreira solo — 40 performances no total, perdendo apenas para Estados Unidos e Reino Unido.

Há de se reconhecer, ainda, que pouquíssimos artistas são capazes de encher um estádio em São Paulo por cinco vezes no período de um ano. Há razões de sobra para isso e nenhuma delas passa por saudosismo, visto que a obra dos Beatles carrega uma atemporalidade que chega a assustar.

Como em 2023, Paul McCarntey se despediu do público dizendo, em português, “até a próxima”. Vários artistas fazem declarações do tipo. Poucos cumprem. O inglês de 82 anos é um deles.

Paul McCartney – ao vivo em São Paulo

  • Local: Allianz Parque
  • Data: 16 de outubro de 2024
  • Turnê: Got Back
  • Produção: Bonus Track

Repertório:

  1. Can’t Buy Me Love (Beatles)
  2. Junior’s Farm (Wings)
  3. Letting Go (Wings)
  4. All My Loving (Beatles)
  5. Got to Get You Into My Life (Beatles)
  6. Come On to Me
  7. Let Me Roll It (Wings) + Foxy Lady (Jimi Hendrix Experience)
  8. Getting Better (Beatles)
  9. Let ‘Em In (Wings)
  10. My Valentine
  11. Nineteen Hundred and Eighty-Five (Wings)
  12. Maybe I’m Amazed
  13. I’ve Just Seen a Face (Beatles)
  14. In Spite of All the Danger (The Quarrymen)
  15. Love Me Do (Beatles)
  16. Dance Tonight
  17. Blackbird (Beatles)
  18. Here Today
  19. Now and Then (Beatles)
  20. New
  21. Lady Madonna (Beatles)
  22. Jet (Wings)
  23. Being for the Benefit of Mr. Kite! (Beatles)
  24. Something (Beatles)
  25. Ob-La-Di, Ob-La-Da (Beatles)
  26. Band on the Run (Wings)
  27. Get Back (Beatles)
  28. Let It Be (Beatles)
  29. Live and Let Die (Wings)
  30. Hey Jude (Beatles)

Bis:

  1. I’ve Got a Feeling (Beatles)
  2. Day Tripper (Beatles)
  3. Sgt. Pepper’s Lonely Hearts Club Band (Reprise) (Beatles)
  4. Helter Skelter (Beatles)
  5. Golden Slumbers (Beatles)
  6. Carry That Weight (Beatles)
  7. The End (Beatles)

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Igor Miranda
Igor Miranda
Igor Miranda é jornalista formado pela Universidade Federal de Uberlândia (UFU), com pós-graduação em Jornalismo Digital. Escreve sobre música desde 2007. Além de editar este site, é colaborador da Rolling Stone Brasil. Trabalhou para veículos como Whiplash.Net, portal Cifras, revista Guitarload, jornal Correio de Uberlândia, entre outros. Instagram, Twitter e Facebook: @igormirandasite.

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Como Paul McCartney encantou São Paulo pela 5ª vez em um ano

Mesmo com raras novidades no setlist, eterno Beatle consegue façanha de oferecer show completo e quase — eu disse quase — irretocável

Em 16 de outubro de 1961, exatos 63 anos antes da performance no Allianz Parque da última quarta-feira (16), os Beatles realizavam seu 60º show no agora lendário Cavern Club, de Liverpool. Foi a primeira apresentação da banda no local desde que John Lennon e Paul McCartney retornaram de Paris, onde haviam passado duas semanas de férias.

A performance em questão aconteceu no horário de almoço, possivelmente entre meio-dia e duas da tarde. Estima-se que a banda, completa pelo guitarrista George Harrison e à época pelo baterista Pete Best (substituído em 1962 por Ringo Starr), tenha subido ao palco do Cavern mais de 280 vezes, sendo pelo menos 155 dessas ocasiões na faixa do meio-dia e 125 à noite.

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Paul adorava se apresentar no horário de almoço. Era o melhor tipo de show em sua opinião. Em entrevista de 1971 ao Melody Maker, ele disse:

“Meus melhores dias tocando eram nas sessões de almoço do Cavern. Subíamos no palco com um pãozinho de queijo e um cigarro. Sentíamos que realmente tinha algo acontecendo. Os amplificadores costumavam fundir. Parávamos e cantávamos um comercial da Sunblest Bread enquanto eles eram consertados. Eu andava pela rua, tocando meu violão e irritando os vizinhos.”

No fim de 2023, especulava-se que Macca, à época com 81 anos de idade (hoje com 82), iria se aposentar dos palcos. Rumores mais ousados apontavam que a performance final seria no estádio do Maracanã, Rio de Janeiro, em 16 de dezembro. Outros, mais cautelosos, diziam que ele aproveitaria a ocasião, que encerrava a passagem da turnê “Got Back” pelo Brasil — e a agenda de compromissos do artista até então —, para anunciar uma tour final.

Nada disso aconteceu. O público (tanto no Maracanã quanto em casa, já que o evento foi transmitido pelo Disney+) teve “apenas” mais um espetáculo de rock and roll que só o cute Beatle poderia oferecer. Paul tirou férias longas, algo que não podia fazer nos tempos de Cavern (ou mesmo na época de fama da banda), e retornou aos palcos no início deste mês para uma longa temporada de shows na América do Sul, já que, em 2023, só visitou o Brasil.

A turnê trazida ao continente, com repeteco nacional em São Paulo (duas datas, na última terça, 15, e quarta, 16) e Florianópolis (no sábado, 19), é a mesma do ano passado. O repertório só traz uma mudança: “Now and Then”, a “música final” dos Beatles, possibilitada a partir do uso de inteligência artificial para “limpar” uma gravação deixada por Lennon, assassinado em 1980. McCartney, Starr e Harrison (que nos deixou em 2001) tentaram transformá-la em uma canção nos anos 1990, sem sucesso.

Em 2024, para Paul, tudo é possível. Dá para terminar uma música abandonada que soava mal na versão demo. Dá para tirar férias longas. Dá para retornar ao Brasil com a mesma turnê, com praticamente o mesmo repertório, e emocionar todo mundo do mesmo jeito.

Só não dá para aposentar. O cara que adorava fazer show no horário de almoço enquanto comia pãozinho de queijo ainda trata o palco como seu santuário.

Talvez ele tenha aprendido a amar o espetáculo ao vivo em meio aos hiatos. Os Beatles não se apresentaram ao vivo em seus últimos quatro anos de existência. Os Wings realizaram bem menos turnês do que poderiam. Sua carreira solo não teve agenda ostensiva ao vivo entre 1980 e 1988 e de 1995 até 2001. Mas tudo indica que ele sempre deu extremo valor ao palco. Caso contrário, não teria realizado com o Fab Four mais de 1,3 mil performances entre 1960 e 1964 — inclusive as exigentes temporadas no citado Cavern Club.

Também, tudo indica que Paul McCartney vai seguir no palco, seu santuário, até quando o corpo conseguir. E com base no que foi visto em São Paulo, na última quarta (16), ainda teremos muito tempo até que a tal aposentadoria ocorra.

Diferenças em relação ao 1º show — e a 2023

Não dá para dizer que a apresentação de quarta (16), com início atrasado em 30 minutos devido ao trânsito intenso que atrapalhou a chegada dos fãs, não teve novidades, seja em comparação à de terça (15), seja no paralelo traçado com 2023. São poucas, é verdade — até o teor das interações com o público se repete —, mas ninguém compra ingresso para ver Paul McCartney esperando a reinvenção da roda.

Em relação a 2023, a grande “notícia” é a já mencionada inclusão de “Now and Then”, a chamada “música final dos Beatles”. A composição, datada dos anos 1970, é de John Lennon. Os demais apenas contribuíram para completá-la.

Por ter sido concebida fora do ambiente da banda, não soa como ela. Também não soa como John solo, já que este sequer pôde finalizá-la. Logo, não apresenta a mesma magia. Ainda assim, quando combinada com imagens antigas nos telões — no único momento do show em que a imagem de Paul não predomina nas telas laterais —, é capaz de encantar e até emocionar.

Na comparação com o show de terça (15), houve três alterações. A saber:

  • “Can’t Buy Me Love” retornou à abertura, substituindo “A Hard Day’s Night”;
  • Fora dos setlists dede 2019, “All My Loving” surgiu como quarta faixa da noite, no lugar de “Drive My Car”;
  • Como segunda canção do bis, “Day Tripper” ocupou a vaga de “Birthday” em um upgrade incontestável.

De resto, tudo igual, inclusive em relação ao ano passado. Escolhas e ordem de repertório, artes de telão, espetáculos de luzes (e fogos de artifício em “Live and Let Die”), interações (várias delas em um português razoavelmente lido de uma colinha) e, o mais importante, qualidade de execução. Seja de Macca, seja do timaço que o acompanha há anos.

Abe Laboriel Jr (bateria), Rusty Anderson (guitarra), Paul Wickens (teclados, violão, gaita) e Brian Ray (guitarra e baixo) são mestres em seus instrumentos, assim como o trio de metais Hot City Horns, composto por Mike Davis (trompete), Kenji Fenton (saxofone) e Paul Burton (trombone). Todos eles são regidos por Paul, que, além de vocais, se reveza entre baixo, guitarra, violão, mandolin, ukulele e dois tipos de piano. Impressiona.

Os melhores momentos

Este humilde site já cobriu outros sete shows de Paul McCartney no Brasil. Em 2023, nas cidades de Brasília, Belo Horizonte e Rio de Janeiro, além das três datas em São Paulo (dias sete, nove e dez de dezembro). Neste ano, a performance da última terça (15). Por isso, em vez de dissecar as apresentações — algo feito nos outros textos —, o artigo presente se empenhará em destacar alguns momentos e conceitos.

a) O retorno de “All My Loving”, um dos grandes hits da primeira fase dos Beatles, foi uma excelente sacada. “Drive My Car” não é nada mal, todavia, resgatar uma faixa que não era tocada desde 2019 oferece sensação de frescor ao público. E, inegavelmente, é uma escolha melhor do que “She’s a Woman”, tocada em boa parte dos compromissos de 2023 na mesma posição do set.

b) Das 37 canções executadas, apenas seis vêm da carreira solo de Paul. A maior parte delas se mostra um acerto na escolha: a envolvente “Come On to Me”, a bela “Maybe I’m Amazed”, a divertida “Dance Tonight” (com os já clássicos passos de dança de Abe Laboriel Jr) e a interessante “New”. Peca-se apenas nas morosas “My Valentine” e “Here Today”, mas suas funções no set são compreensíveis.

c) Oito faixas do Wings marcam presença, também agradando até uma considerável parcela de fãs que parecia não conhecê-las. “Junior’s Farm” soa quase como um “aquecimento”, ainda que seja a segunda da noite. “Letting Go” diverte pela presença do Hot City Horns em meio à plateia, enquanto a roqueira “Let Me Roll It” tem uma irresistível jam final ao som de “Foxy Lady”, da Jimi Hendrix Experience. O groove de “Nineteen Hundred and Eighty-Five” provoca remelexos; por sua vez, “Jet” é fácil de se cantar e apreciar. “Band on the Run” (em 2023 dedicada ao guitarrista Denny Laine, falecido enquanto Macca estava no Brasil) e “Live and Let Die” são as duas únicas que podem ser chamadas de clássicas, mas se equiparam a vários hits dos Beatles. Talvez o único ponto baixo seja “Let ‘Em In”, também morosa.

d) As homenagens, no geral, emocionam. A já mencionada jam ao som de “Foxy Lady” é sucedida por um breve discurso em que McCartney celebra a “bela alma” de Hendrix. “In Spite of All the Danger” não é declaradamente um tributo, mas leva o público a imaginar como eram os Beatles antes de se tornarem os Beatles, já que a canção foi gravada como The Quarrymen. John Lennon é lembrado duas vezes: em “Here Today” de forma breve e já no bis em “I’ve Got a Feeling”, no lindo “dueto” que já se tornou obrigatório nos shows de Paul. Mas a lembrança mais incrível é destinada a George Harrison, com “Something” executada (inicialmente só por Macca no ukulele) enquanto várias imagens do guitarrista rolam no telão.

e) Os momentos mais “espetáculo” realmente levam tal palavra a sério. A partir de “Something”, tudo fica gigante: a divertida “Ob-La-Di, Ob-La-Da” faz todo mundo dançar, “Band on the Run” e “Get Back” exaltam o lado classic rock de Paul e, com este de volta ao piano, concluem o set regular “Let It Be”, “Live and Let Die” (com fogos em quantidade tão alta a ponto de deixar o Allianz esfumaçado) e “Hey Jude” (em que o público levanta suas plaquinhas de “na na”). No bis, são fora de série a já citada “I’ve Got a Feeling”, a pesada “Helter Skelter” com enorme capricho na iluminação e o cinematográfico medley final de “Abbey Road” (1969), com “Golden Slumbers”, “Carry That Weight” e “The End”.

f) As constantes demonstrações de respeito ao público se dão de diversas formas. Para além da performance exemplar, Paul se esforça para falar português, seja de forma séria ou bem-humorada. Foram mais de 10 declarações contadas, a exemplo de “essa música é para meu mano John” (“Here Today”), “dedicada ao meu mano parça George” (“Something”), “essa festa tá f#da”, “o pai tá on” e por aí vai. Antes do início do bis, o músico e seus companheiros de banda retornaram ao palco com as bandeiras do Brasil, Reino Unido e LGBTQIAPN+, reforçando a mensagem de inclusão que várias de suas composições carregam.

Casos a se repensar

Todavia, nem tudo é perfeito. Passa muito perto disso, é verdade. Ainda assim, há pontos a se repensar no atual espetáculo de Macca — nada que prejudique a experiência, vale enfatizar.

A evasão do público, já não tão massivo em comparação a 2023, conforme rolava o bis indica que nem sempre há interesse em um espetáculo tão longo, que marca duas horas e meia. Muitos fãs que acabaram perdendo “Helter Skelter” e o medley final de “Abbey Road” poderiam ter apreciado tais momentos caso fossem dispensadas canções de pouco apelo, como as já citadas “Let ‘Em In”, “My Valentine” e “Here Today”.

Em aspectos técnicos, a performance só teve um problema: o som baixo, a ponto de conversas paralelas serem facilmente ouvidas. Fãs em outros setores que não a pista premium compartilharam relatos similares. De forma que por vezes parece até intencional, a voz de Paul também tem seu volume reduzido.

Ainda sobre escolhas de setlist, há canções ausentes há algum tempo que poderiam ser lembradas no momento recente. “We Can Work It Out” (fora desde 2022), “Paperback Writer” (desde 2015), “And I Love Her” (desde 2017) e “Flaming Pie” (desde 2022) são alguns exemplos de faixas que podem ser resgatadas.

Saldo final

Nada do que foi mencionado anteriormente desabona o espetáculo. O eterno Beatle segue uma forma testada e aprovadíssima no Brasil, a ponto de este ser o terceiro país em que mais se apresentou em carreira solo — 40 performances no total, perdendo apenas para Estados Unidos e Reino Unido.

Há de se reconhecer, ainda, que pouquíssimos artistas são capazes de encher um estádio em São Paulo por cinco vezes no período de um ano. Há razões de sobra para isso e nenhuma delas passa por saudosismo, visto que a obra dos Beatles carrega uma atemporalidade que chega a assustar.

Como em 2023, Paul McCarntey se despediu do público dizendo, em português, “até a próxima”. Vários artistas fazem declarações do tipo. Poucos cumprem. O inglês de 82 anos é um deles.

Paul McCartney – ao vivo em São Paulo

  • Local: Allianz Parque
  • Data: 16 de outubro de 2024
  • Turnê: Got Back
  • Produção: Bonus Track

Repertório:

  1. Can’t Buy Me Love (Beatles)
  2. Junior’s Farm (Wings)
  3. Letting Go (Wings)
  4. All My Loving (Beatles)
  5. Got to Get You Into My Life (Beatles)
  6. Come On to Me
  7. Let Me Roll It (Wings) + Foxy Lady (Jimi Hendrix Experience)
  8. Getting Better (Beatles)
  9. Let ‘Em In (Wings)
  10. My Valentine
  11. Nineteen Hundred and Eighty-Five (Wings)
  12. Maybe I’m Amazed
  13. I’ve Just Seen a Face (Beatles)
  14. In Spite of All the Danger (The Quarrymen)
  15. Love Me Do (Beatles)
  16. Dance Tonight
  17. Blackbird (Beatles)
  18. Here Today
  19. Now and Then (Beatles)
  20. New
  21. Lady Madonna (Beatles)
  22. Jet (Wings)
  23. Being for the Benefit of Mr. Kite! (Beatles)
  24. Something (Beatles)
  25. Ob-La-Di, Ob-La-Da (Beatles)
  26. Band on the Run (Wings)
  27. Get Back (Beatles)
  28. Let It Be (Beatles)
  29. Live and Let Die (Wings)
  30. Hey Jude (Beatles)

Bis:

  1. I’ve Got a Feeling (Beatles)
  2. Day Tripper (Beatles)
  3. Sgt. Pepper’s Lonely Hearts Club Band (Reprise) (Beatles)
  4. Helter Skelter (Beatles)
  5. Golden Slumbers (Beatles)
  6. Carry That Weight (Beatles)
  7. The End (Beatles)

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Igor Miranda é jornalista formado pela Universidade Federal de Uberlândia (UFU), com pós-graduação em Jornalismo Digital. Escreve sobre música desde 2007. Além de editar este site, é colaborador da Rolling Stone Brasil. Trabalhou para veículos como Whiplash.Net, portal Cifras, revista Guitarload, jornal Correio de Uberlândia, entre outros. Instagram, Twitter e Facebook: @igormirandasite.

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