Em 1983, a decisão do Kiss de aparecer de cara limpa gerou grande repercussão e debates, mas provou ser a escolha certa. Impulsionado pelo sucesso do hit “Lick It Up” nas rádios e na MTV, o álbum homônimo — o primeiro da banda sem as icônicas maquiagens — vendeu imediatamente três vezes mais que o antecessor, “Creatures of the Night” (1982), conquistando disco de platina duplo nos Estados Unidos.
De volta a posições altas nas paradas, Gene Simmons, Paul Stanley, Eric Carr e Vinnie Vincent mostraram para os fãs e para si mesmos que o que realmente importava era a música. Como Paul avalia em sua autobiografia “Uma Vida Sem Máscaras” (Belas Letras, 2015), “Não eram as músicas que as pessoas não gostavam. Era da aparência da banda”.
Mas assim que completou sua turnê de 93 shows pela Europa e América do Norte promovendo “Lick It Up”, o Kiss dispensou Vincent e, sem um guitarrista solo, começou a buscar um novo integrante antes de gravar seu próximo álbum, “Animalize”.
A queda de Vinnie Vincent
Conflitos de personalidade entre a banda e Vinnie levaram à sua expulsão, sem cerimônia, após o fim da etapa norte-americana da turnê de “Lick It Up”. Em 17 de março de 1984, no extinto Roberts Municipal Stadium, em Evansville, Indiana, o guitarrista se apresentaria ao vivo com o Kiss pela última vez.
Paul conta que “no palco, Vinnie tinha uma compulsão infernal por transformar todos os solos em uma oportunidade de se exibir”. Fora dele, segundo depoimento de Adam Mitchell, reproduzido em “Eric Carr: A Biografia” (Belas Letras, 2024), “a convivência não era das mais harmoniosas”. O compositor externo diz:
“Sei que eles tiveram muita dificuldade para fazer Vinnie assinar qualquer tipo de contrato com eles. Sei que isso durou… na época, pareceu que durou um ano. Ele não assinava o contrato, mas eu não sabia os detalhes disso.”
Na autobiografia “Kiss: Por Trás da Maquiagem” (Belas Letras, 2021), Gene relembra outras dores de cabeça causadas por Vinnie — e que remontam ao início da turnê de “Creatures of the Night”:
“Primeiro, ele queria continuar com seu nome, Vinnie Cusano. Eu logo disse que era uma má ideia: parecia nome de vendedor de frutas (…) Finalmente, ele concordou que seu nome era problemático, mas aí surgiram suas ideias de apelidos. Ele queria ser chamado de Mick Fury. Não tive coragem de dizer que ele não estava qualificado para fazer esse tipo de escolha, que seria melhor apenas aparecer na hora marcada e ganhar muito dinheiro (…) Era uma oferta de emprego. Ele poderia entrar na banda ou não, mas não queríamos discutir o contrato. Não haveria negociação.”
Colaborador frequente do Kiss, o guitarrista Bob Kulick acredita que Vinnie “começou a pedir demais, cedo demais”.
“Se você tem um negócio, como qualquer negócio, e o leva ao sucesso, aí contrata alguém para preencher uma vaga, essa pessoa precisa lutar para merecer participar da mesma forma que você, que começou o projeto (…) E para esses caras [Gene e Paul], que naquela época eram mais empresários — ou, pelo menos, empresários e estrelas do rock na mesma medida —, certos pedidos eram inaceitáveis. Não importava o material que ele [Vinnie] estava compondo, porque ainda não era aceitável. Portanto, ele precisava ir embora.”
Em “Uma Vida Sem Máscaras”, Paul se isenta de culpa ao afirmar que sempre acreditou que Vinnie não se encaixaria na banda. Porém, não havia ninguém mais à vista.
“Quando decidimos trazê-lo, eu disse a Gene: ‘Só para constar, acho isso uma má ideia.”
A expulsão de Vinnie não foi unanimidade no grupo, conforme relato da irmã de Carr, Loretta Caravello:
“Eric gostava do Vinnie. Dá para perceber nas fotos que eles tiravam juntos. Ele achava que Vinnie era um ótimo guitarrista. Porém, ele precisava guardar suas opiniões para si, porque não podia tomar essa decisão. Mas era necessário fazer o que fosse melhor para a banda. Se Gene e Paul não o queriam lá, era assim que tinha que ser.”
Um jazzista no mundo do Kiss
Mark St. John não era fã do Kiss e nunca tinha possuído nenhum dos álbuns da banda. Pelo contrário: nascido Mark Norton em 7 de fevereiro de 1956, em Los Angeles, ele cresceu ouvindo jazz e música clássica.
Em 1984, quando o luthier Grover Jackson — fundador da Jackson Guitars — o apresentou ao Kiss, Mark estava, nas suas próprias palavras, “passando fome”. Em uma entrevista à Vintage Guitar em 2003, ele lembrou:
“Eu dava aulas de guitarra e tocava em uma banda de baile (…) Também fazia workshops para a Jackson nas conferências da NAMM [National Association of Music Merchants, a associação americana que representa os fabricantes e distribuidores de instrumentos musicais], então, quando o Kiss perguntou se Grover conhecia algum guitarrista, ele falou bem de mim (…) Grover deu ao Kiss uma lista de cerca de 10 nomes, e acho que, de todas as fitas que receberam, gostaram mais da minha.”
Mark conta que Gene foi com a dele de imediato. Todavia, Paul parecia ter suas reservas devido a experiências anteriores. O guitarrista comentou:
“Paul é um pouco inseguro em relação a várias coisas. Quando entrei na banda, Paul não me queria por causa da competição entre guitarristas. Ele dizia: ‘você é bom demais’. Mas eu pensava: ‘que seja’, porque eu sabia que ele não queria ser ofuscado, por causa do que aconteceu com o Vinnie. Vinnie realmente o traumatizou, mas eu não tinha como mudar isso.”
O fato é que, quando as revistas Hit Parader e Circus mencionaram que Vinnie havia saído e que “Mark Norton” era o novo guitarrista do Kiss, ninguém nunca tinha ouvido falar dele. Os fãs teriam que esperar para ver.
O arquiteto solitário por trás de “Animalize”
Paul Stanley e Gene Simmons resolveram produzir “Animalize” de forma autônoma. Após gravar seus vocais, o baixista expressou confiança no colega para finalizar o álbum sozinho.
Embora Paul não estivesse completamente à vontade com a ideia, Gene, com o sonho de seguir carreira no cinema, precisava se dedicar ao longa-metragem “Fora de Controle”, com Tom Selleck, no qual interpretaria o vilão Dr. Charles Luther.
De acordo com Simmons, em “Kiss: Por Trás da Máscara” (Companhia Editora Nacional, 2006), Hollywood foi um obstáculo em seu relacionamento com Stanley:
“Paul estava muito chateado (…) Ele sentia que tudo isso prejudicava o Kiss. Talvez ele tivesse razão, mas eu precisava fazer aquilo.”
No mesmo livro, Paul explica que assumiu as rédeas nesse disco porque “praticamente não tinha outra opção”.
“Foi assim nos anos 1980, na maioria das vezes, ou eu assumia ou as coisas não ficavam prontas. Quando fomos gravar o ‘Animalize’, Gene tinha se comprometido a fazer um filme. Ele corria para o estúdio, gravava sua parte nas faixas e ia embora. Então, ao escutar as músicas, vimos que a maioria era imprestável. Assim, tive de refazer as faixas e também gravar o resto do álbum (…) Tive total liberdade, mas também foi bem cansativo.”
À Vintage Guitar, Mark relembrou como era o trabalho no estúdio:
“Paul tocava a maior parte da guitarra base, enquanto eu fazia os solos. Também toquei baixo em algumas faixas porque Gene estava ocupado fazendo o filme ‘Fora de Controle’. Não me deixavam escrever músicas porque as minhas não se encaixavam no gênero do Kiss, então minha contribuição foi basicamente nos solos.”
No fim, Paul conseguiu terminar “Animalize” praticamente sozinho. Na autobiografia “Uma Vida Sem Máscaras”, ele relembra:
“Consertei as canções de Gene e a situação da banda, arranquei alguns solos de Mark e supervisionei os outros durante a produção do álbum. Também escolhi o nome, desenvolvi a arte de capa e marquei a sessão de fotos. Para completar, passei um tempão no escritório divulgando pessoalmente o álbum, bajulando radialistas, puxando o saco da MTV para que passassem os clipes e fazendo tudo o que, em situações normais, seria feito por um empresário.”
Além de ajustar as canções de Gene — inclusive recorrendo ao amigo e ex-Plasmatics Jean Beauvoir para tocar baixo em algumas delas —, Paul trouxe o baterista de estúdio Allan Schwartzberg para, nas palavras dele, “fazer sobreposições em músicas que precisavam de um empurrãozinho”.
Mark St. John: quando a técnica não basta
Mesmo com contribuições tão pontuais, Mark St. John se mostrou complicado para o ambiente de trabalho, embora por razões diferentes das de Vinnie Vincent. Em sua autobiografia, Paul Stanley menciona um episódio em que o novo colega teria zombado de Jimmy Page, Paul Kossoff e Eric Clapton — “consigo tocar mais rápido do que esses caras”, disse o guitarrista. Ele prossegue:
“Apesar de toda a sua habilidade, Mark não conseguia tocar a mesma coisa duas vezes. Nós estávamos acostumados a ter solos que eram elaborados e, às vezes, até aprimorados. Quando eu gravava com Mark, percebi que ele não seguia nenhuma linha. Era muito difícil conseguir algo que tivesse uma direção. Às vezes, havia notas ou passagens que não soavam bem, então eu mesmo gravava pequenas partes e as juntava.”
Como músico assalariado com um contrato de cinco anos sem cláusula de rescisão, Mark às vezes tinha muita liberdade, outras vezes não tinha nenhuma. Ele explicou:
“Eles não diziam ‘toque essas notas’, mas talvez ‘toque desse jeito’ ou ‘toque como o Ace [Frehley, guitarrista original] tocaria’. Sou um guitarrista virtuoso e meu estilo é mais linear e melódico. Quando diziam ‘toque como Ace’, significava desacelerar e pesar mais a mão; um estilo que eu não conhecia muito bem antes de entrar na banda.”
Nem Eric Carr gostou muito de trabalhar com St. John. Em entrevista de 1985 ao fanzine Kiss Force, o baterista disse que o colega era “tão bom que gera uma daquelas situações em que se torna quase impossível de ele interagir com outros”.
“Quando isso acontece, a pessoa se torna arrogante e depreciativa. Durante as gravações, Gene ofereceu a ele a possibilidade de tocar o baixo em uma música. Era uma maneira de tentar fazê-lo se sentir bem, além de conseguir tocar aquela parte mais rápida. Quando houve uma pausa, falei que havia uma nota errada na execução. Então, Mark se tornou bastante defensivo e arrogante. Expliquei que eu sabia tocar guitarra e entendia de teoria musical. Identifiquei a nota em meio ao refrão e disse que soava como um erro e as pessoas poderiam perceber. Ele reagiu dizendo que eu não fazia ideia do que estava dizendo. Isso vindo de alguém que só estava conosco há três semanas. Gene quase caiu da cadeira. Tentou ser diplomático, mas eu saí do estúdio ou iria matar o Mark.”
Prova dessa dessintonia é que há duas músicas em “Animalize” nas quais Mark não tocou: “Lonely is the Hunter” e “Murder in High-Heels”. Nessas faixas, foi Bruce Kulick quem tocou guitarra.
O irmão mais novo de Bob Kulick relembra em depoimento a Greg Prato:
“Passei por lá [durante a gravação de ‘Animalize’], e só Paul e eu estávamos no estúdio. A única coisa que ouvi foi: ‘Não estou contente com o que Mark fez aqui. Você tem uma guitarra com alavanca Floyd Rose?’. Eu disse que sim. Em vez de chamarem meu irmão, eles me chamaram, o que foi ótimo. Mas não interagi com ninguém além de Paul, que estava no comando. A sessão foi tranquila, e eu fiquei feliz por finalmente fazer algo parecido com o que meu irmão fazia.”
Antes de Bruce sair, Paul lhe disse para não cortar o cabelo. Era um sinal.
“Eu não fazia a mínima ideia de por que ele pediu isso. Mas, obviamente, Paul já estava pensando no futuro.”
O legado de Mark St. John e o futuro com Bruce Kulick
“Animalize” foi lançado em 17 de setembro de 1984, com uma capa que, segundo o designer Dennis Woloch, “não é ruim, mas poderia ter ficado melhor”. Na contracapa, aparece uma das poucas fotos promocionais do Kiss com Mark St. John, que comentou sobre o clique do fotógrafo Bernard Vidal em uma entrevista ao portal Kiss Asylum de 1999:
“Oh, é um trabalho de recorte e colagem! Eu ia ao escritório do Kiss todos os dias e passava pelo departamento de arte, e todo dia era a mesma foto, só que um pouco diferente. Havia 20 braços e pernas soltos pelos lados, e eles apenas os colavam, escolhendo o que ficava melhor, qual cabelo, cabeças etc. E eu pensava: ‘por que fizemos uma sessão de fotos, dez horas de trabalho, se vão cortar tudo assim mesmo?!’ Mas tudo bem. Gastaram uma baita grana… que desperdício. Se você realmente olhar agora, pode ver onde as coisas foram coladas. Esse braço está muito longo, aquela perna é muito curta, o pescoço parece quebrado. Se você olhar de perto, começa a perceber esses detalhes (…) E sabe toda aquela fumaça e fogo? Deixe-me te contar: estava ventando muito, e o fogo ou estava apagado ou com apenas um centímetro de altura! Nunca teve aquelas grandes labaredas que aparecem na foto. Não havia fumaça. Não vou mentir sobre as coisas.”
Impulsionado pelo sucesso do single “Heaven’s on Fire” — resultado da parceria entre Paul Stanley e o hitmaker Desmond Child —, “Animalize” recebeu disco de platina duplo. Todavia, quando começava a se preparar para a turnê, o Kiss se viu diante de uma situação complicada: Mark fora diagnosticado com artrite reativa, ou síndrome de Reiter, uma doença rara que afeta as articulações, tornando-o incapaz de tocar. Os médicos o alertaram que, se ele participasse do giro, poderia perder os movimentos das mãos para sempre.
Após um show em um local pequeno na cidade de Poughkeepsie, Nova York — lançado em múltiplos formatos como “Off the Soundboard: Live in Poughkeepsie 1984” —, todos perceberam a gravidade do problema de Mark. Foi então que Paul tomou uma decisão.
“Telefonei para Bruce Kulick (…) Perguntei se ele poderia fazer uma turnê de algumas semanas conosco como guitarrista substituto. Ele aceitou. Viajamos por um bom tempo com Bruce tocando no palco todas as noites, enquanto Mark se divertia nos bastidores. Ainda acreditávamos que ele acordaria no dia seguinte pronto para tocar novamente (…) Mark não tocou em nenhum show daquela turnê. Finalmente, ele saiu e Bruce se tornou o guitarrista fixo.”
Diferente de Vinnie e Mark, cujas passagens pelo Kiss foram curtas, Bruce permaneceu na banda por mais de uma década. O guitarrista comenta:
“Obviamente, fiquei em êxtase, porque, mesmo que colocasse apenas ‘duas semanas com o Kiss’ no meu currículo, já seria a maior coisa do mundo para mim. Eu não sabia que essas duas semanas se transformariam em 12 anos, mas foi o que aconteceu.”
Para Gene, a escolha não poderia ter sido melhor.
“Bruce não tinha um estilo próprio, mas era habilidoso e estava disposto a reproduzir os solos que Ace havia gravado nos discos. Bruce sempre foi profissional e era um prazer tê-lo na banda. No começo, ele não tinha muita presença de palco e era sensível quanto às suas fraquezas, mas estava disposto a trabalhar para melhorar.”
Apesar de tudo, Mark, que morreu em 2007 após um espancamento na prisão, garantia que não guardava ressentimentos. Quando perguntado sobre qual teria sido sua principal contribuição para o Kiss, ele disse:
“Acho que foi dar à banda um som mais moderno, para que pudessem competir com as outras bandas. Vinnie Vincent tinha acabado de sair, e eu tinha que seguir os passos dele e de Ace Frehley, mas Gene e Paul sabiam que precisavam de um guitar hero para fazer frente a Yngwie Malmsteen, Randy Rhoads e Eddie Van Halen. Bruce deu continuidade ao estilo contemporâneo que eu trouxe para a banda.”
O Kiss completou a turnê de “Animalize” em março de 1985. Em julho, a banda entraria no Electric Lady Studios, em Nova York, para gravar seu próximo álbum, “Asylum”, e dar sequência a um padrão que, aos trancos e barrancos, foi encontrado em seu tumultuado disco de 1984.
Kiss – “Animalize”
- Lançado em 17 de setembro de 1984 pela Mercury Records
- Produzido por Paul Stanley
Faixas:
- I’ve Had Enough (Into the Fire)
- Heaven’s on Fire
- Burn Bitch Burn
- Get All You Can Take
- Lonely is the Hunter
- Under the Gun
- Thrills in the Night
- While the City Sleeps
- Murder in High-Heels
Músicos:
- Paul Stanley – vocais, guitarra base, baixo em “I’ve Had Enough (Into the Fire)”
- Gene Simmons – vocais, baixo
- Eric Carr – bateria, percussão, backing vocals
- Mark St. John – guitarra solo
Músicos adicionais:
- Bruce Kulick – guitarra solo em “Lonely is the Hunter” e “Murder in High-Heels”
- Jean Beauvoir – baixo em “Get All You Can Take”, “Under the Gun” e “Thrills in the Night”
- Desmond Child – backing vocals
- Alan Schwartzberg – overdubs de bateria
- Mitch Weissman – guitarra em “Get All You Can Take”, “While the City Sleeps” e “Murder in High-Heels”
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