A sinfonia de transformações do Queen em “The Works”

Clipe banido da MTV excluiu Estados Unidos do itinerário da banda; turnê incluiu shows no primeiro Rock in Rio e entrevista que marcou a história da TV brasileira

“O primeiro álbum de verdade deles em algum tempo”, proclamou Parke Puterbaugh na resenha da Rolling Stone sobre “The Works”, décimo primeiro álbum de estúdio do Queen. Uma definição que não poderia ser mais precisa e alinhada aos pensamentos dos fãs fervorosos.

O trabalho lançado em 27 de fevereiro de 1984 foi responsável por trazer a banda de volta ao rock após um controverso experimento com a música disco.

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Conheça a história.

Novos ritmos e pausa prolongada

Em 1980, o estrondoso sucesso de “Another One Bites the Dust” nos Estados Unidos influenciou uma mudança de rumo para o Queen, levando a banda a gravar um álbum com uma abordagem mais dançante. Elementos de disco music, funk, new wave e R&B foram habilmente incorporados por Freddie Mercury (vocais), Brian May (guitarra), John Deacon (baixo) e Roger Taylor (bateria) ao intrigante “Hot Space” (1982).

A ousada incursão em território mais pop e comercial dividiu opiniões entre fãs e críticos, sendo considerada artisticamente decepcionante. Contudo, o trabalho não passou despercebido, especialmente devido a “Under Pressure”, fruto da colaboração épica da banda com David Bowie. Disponibilizada quase oito meses antes do disco, a música alcançou o topo das paradas no Reino Unido. Outro single, “Body Language”, este já diretamente ligado ao álbum, conquistou a posição de número 11 nos Estados Unidos.

Após uma extensa turnê mundial de 70 datas promovendo “Hot Space”, o Queen optou por uma pausa prolongada. Durante esse intervalo, de novembro de 1982 a meados de 1983, Brian colaborou com Eddie Van Halen e outros renomados músicos no projeto Star Fleet, enquanto Roger e Freddie investiram tempo em discos solo, lançando “Strange Frontier” e “Mr. Bad Guy”, respectivamente.

Em agosto desse mesmo ano, os quatro membros reuniram suas forças novamente. Iniciaram, então, os preparativos para o próximo capítulo do Queen sob a chancela da EMI Records.

Queen e “Fred 2” em terras americanas

A saga da gravação de “The Works” levou o Queen além das fronteiras britânicas, marcando a única vez em que a banda registrou um álbum nos Estados Unidos. As primeiras sessões foram realizadas nos lendários estúdios Record Plant, em Los Angeles, deixando arestas a serem aparadas no Musicland, em Munique, Alemanha.

Enquanto Brian May, John Deacon e Roger Taylor, todos casados, encontraram em L.A. um lar temporário durante as gravações devido ao ambiente familiar, Freddie Mercury optou por mergulhar na efervescência de Nova York, distante quase 5 mil km. A cidade da costa leste ofereceu ao frontman solteiro tudo o que uma metrópole intensa podia proporcionar a um desimpedido homem gay, tornando-se seu refúgio durante esse período.

O tecladista canadense Fred Mandel, conhecido por sua participação na turnê de “Hot Space” como músico reserva, desempenhou um papel notório no Record Plant. Sua contribuição foi tão impactante que o biógrafo Peter Hince relata em “Queen Unseen” (John Blake, 2011):

“O Fred ‘principal’ ficou muito impressionado com o ‘Fred 2’, a ponto de convidá-lo para tocar em ‘Mr. Bad Guy’. Mandel não só emprestou seu talento para diversas faixas de ‘The Works’, mas também deixou sua marca única na introdução e solo de sintetizador de ‘I Want to Break Free’. Suas habilidades no teclado foram fundamentais para ‘Radio Ga Ga’ e contribuíram significativamente para seções inteiras de ‘Hammer to Fall’ e ‘Man on the Prowl’.”

O hino de Roger Taylor contra o jabá e a monotonia musical

Num insight inspirador, Roger Taylor percebeu o papel revolucionário da MTV ao usurpar o domínio das estações de rádio, cativas do jabá e da monotonia musical. Esse ponto de vista, que mistura uma defesa nostálgica do rádio com uma crítica à ascendência da televisão, serviu de pano de fundo para uma das músicas mais marcantes do Queen e, curiosamente, contribuiu para o nome artístico da popstar americana Lady Gaga.

Primeiro single de “The Works”, “Radio Ga Ga” chegou em 16 de janeiro de 1984, antecipando-se ao trabalho completo. Não demorou a conquistar o segundo lugar nas paradas do Reino Unido. Durante uma entrevista no programa de TV Breakfast Time da BBC, Roger e John Deacon elucidaram o significado da letra:

“Isso é parte do que a música trata, na verdade. O fato de que os videoclipes parecem estar assumindo quase do lado auditivo; o lado visual parece ser quase mais importante.”

A faixa tornou-se um sucesso global, alcançando o primeiro lugar em 19 países e a 16ª posição no Hot 100 da Billboard. Essa conquista é notória, sendo o último single da banda a entrar no top 40 nos Estados Unidos durante a vida de Freddie Mercury.

O videoclipe, que incorpora imagens do filme de ficção científica “Metropolis” (1927), foi indicado ao MTV Video Music Award na categoria de Melhor Direção de Arte. Perdeu para “Rockit”, de Herbie Hancock.

Sátira com impacto comercial

O lançamento do próximo single, “I Want to Break Free”, trouxe consigo um videoclipe ousado e controverso. A criação, uma paródia da popular novela britânica “Coronation Street”, destacou todos os membros da banda vestidos de mulher.

Apesar da percepção comum de que a ideia era obra de Freddie Mercury, John Deacon contradiz essa crença:

“Acho que a ideia foi do Roger e funcionou muito bem; é divertido. O clipe ficou muito bom e todos nós nos divertimos muito fazendo-o também.”

A estética exagerada foi mantida no clipe subsequente, “It’s a Hard Life”. Brian May justificou essa característica proeminente dizendo:

“Acho que esse é o nosso estilo, sabe? Se fazemos algo, fazemos em excesso e fazemos o máximo que podemos. E, sim, o clipe é muito exagerado, é muito extravagante, mas é divertido e gostamos assim, pois é assim que somos.”

Entretanto, o humor tipicamente britânico de “I Want to Break Free” não foi universalmente compreendido nos Estados Unidos, causando confusão entre o público e levando ao banimento do videoclipe pela MTV. Essa decisão teve um impacto direto no desempenho do single no país.

A falta de aceitação nos Estados Unidos resultou em uma decisão comercialmente prejudicial por parte do Queen: em retaliação, a banda não apenas optou por não realizar uma turnê norte-americana para promover o álbum, mas também escolheu não excursionar pelo continente a partir daquele momento, balançando a relação com o mercado de lá.

Rock in Rio, polêmicas e legado da histórica turnê

Com 49 apresentações entre maio de 1984 e maio de 1985, excluindo os Estados Unidos do itinerário, a turnê de “The Works” simbolizou um capítulo breve, porém impactante, na história do Queen. O destaque incontestável dessa jornada foi a participação da banda na primeira edição do Rock in Rio, com apresentações nos dias 11 e 18 de janeiro de 1985. Esses shows, imortalizados em VHS e na memória dos que neles estiveram, foram apenas o prelúdio para um momento memorável que transcendeu o palco.

No terraço do hotel Copacabana Palace, no Rio de Janeiro, Freddie Mercury concedeu uma entrevista inesquecível à jornalista Glória Maria, do programa “Fantástico”, da TV Globo. A impaciência do líder do Queen, perceptível durante a conversa, atingiu seu ápice quando questionado se “I Want to Break Free” era dedicada à comunidade gay. Mercury esclareceu:

“De forma alguma, de forma alguma. Essa música, para começar, foi escrita por John Deacon, e bem, ele é um homem casado, pai de quatro filhos. Não sei de onde você tirou essa ideia, não tem nada a ver com os gays. Na verdade, é basicamente sobre todo mundo; é sobre qualquer um que tenha uma vida muito difícil e quer se libertar de qualquer problema que tenha. Não tem nada a ver com a causa gay.”

Além do controverso episódio, a turnê também teve seu marco político quando, em meio à política de apartheid na África do Sul. Contra os apelos da ONU, o Queen agendou uma temporada em Bophuthatswana, em outubro de 1984. Embora vários shows tenham sido cancelados, a banda realizou nove apresentações, contribuindo para que “I Want to Break Free” se tornasse, além de um brado às liberdades individuais, um hino em prol da soltura de Nelson Mandela.

“Uma batalha entre as máquinas”

Lançado em 27 de fevereiro de 1984, “The Works” invadiu as paradas em 16 países. Embora não tenha alcançado o primeiro lugar, permaneceu por impressionantes 94 semanas nas paradas do Reino Unido, marcando o período mais longo para um álbum de estúdio do Queen, e conquistou a 14ª posição entre os álbuns mais vendidos do ano no país.

Nos Estados Unidos, atingiu o número 23, garantindo o Disco de Ouro ao superar a marca de 500 mil cópias vendidas. Globalmente, as vendas ultrapassam a marca de 6 milhões de cópias.

Para Brian May, “The Works” é um reflexo do seu tempo, um produto moldado pela revolução dos sintetizadores que ocorria na época:

“O ano em que os sintetizadores mudaram e nós mudamos, é isso que posso dizer. No início, os sintetizadores eram muito mecânicos e não transmitiam emoção. Mas, ao ver pessoas como Stevie Wonder, que consegue fazer o sintetizador falar da mesma forma que se pode com a voz ou uma guitarra, então nos convertemos. Não abandonamos totalmente os sintetizadores, mas eles estão lá para certas coisas e é divertido usar essas coisas também. Muito do ‘The Works’ é uma síntese dos dois tipos e quase uma batalha entre os dois tipos, uma batalha entre as máquinas.”

Por outro lado, Roger Taylor atribui ao disco uma importância diferente, destacando o significado mais profundo que o álbum teve para ele e seus colegas em um momento de descontentamento:

“Acho que percebemos que trabalhar é algo realmente importante em sua vida e você não pode simplesmente sentar e não fazer nada, é a pior coisa possível.”

Queen — “The Works”

  • Lançado em 27 de fevereiro de 1984 pela EMI / Capitol
  • Produzido por Queen e Reinhold Mack

Faixas:

  1. Radio Ga Ga
  2. Tear It Up
  3. It’s a Hard Life
  4. Man on the Prowl
  5. Machines (or ‘Back to Humans’)
  6. I Want to Break Free
  7. Keep Passing the Open Windows
  8. Hammer to Fall
  9. Is This the World We Created…?

Músicos:

  • Freddie Mercury (vocais; backing vocals nas faixas 3 a 8; piano nas faixas 3, 4 e 7; sintetizador nas faixas 1 e 7; sampler na faixa 1)
  • Brian May (guitarra em todas as faixas exceto 9; violão na faixa 9, sintetizador na faixa 5, backing vocals nas faixas 1, 3, 4, 5, 7 e 8)
  • Roger Taylor (bateria em todas as faixas exceto 9; percussão na faixa 2; bateria eletrônica nas faixas 1 e 5; vocoder nas faixas 1 e 5; backing vocals nas faixas 1, 2, 3 e 8; sampler na faixa 1; sintetizador nas faixas 1 e 5)
  • John Deacon (baixo em todas as faixas exceto 9; guitarra rítmica na faixa 6; sintetizador na faixa 6)

Músico adicional:

  • Fred Mandel (final de piano na faixa 4; arranjo de sintetizador; programação de sintetizador na faixa 1; sintetizador nas faixas 1, 6 e 8)

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Marcelo Vieira
Marcelo Vieirahttp://www.marcelovieiramusic.com.br
Marcelo Vieira é jornalista graduado pelas Faculdades Integradas Hélio Alonso (FACHA), com especialização em Produção Editorial pela Universidade Estadual Paulista (UNESP). Há mais de dez anos atua no mercado editorial como editor de livros e tradutor freelancer. Escreve sobre música desde 2006, com passagens por veículos como Collector's Room, Metal Na Lata e Rock Brigade Magazine, para os quais realizou entrevistas com artistas nacionais e internacionais, cobriu shows e festivais, e resenhou centenas de álbuns, tanto clássicos como lançamentos, do rock e do metal.

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