A jornada rejuvenescedora dos Rolling Stones em “Some Girls”

Primeiro álbum de estúdio com Ronnie Wood como membro oficial vendeu mais de 8 milhões de cópias e teve duas músicas entre as dez mais na América

Na década de 1970, os Rolling Stones se tornaram uma espécie de instituição do rock ‘n’ roll. Mesmo à mercê dos prós e contras da vida de exilados fiscais, estabeleceram um recorde após o outro para apresentações ao vivo com grande público. Seus discos, em contrapartida, já não vendiam tanto.

Pudera: a imagem de rebeldia que ostentava nos anos 1960 acabou posta de lado à medida que os integrantes chegavam na casa dos trinta. Sua antiga postura contestatória trocaria de mãos, pertencendo agora a grupos punk, como os Sex Pistols.

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Apesar disso, grandes álbuns continuaram a ser lançados — depois de 1971, em seu próprio selo Rolling Stones Records —, sem contar os ótimos singles, como “Brown Sugar” (1971) e “Angie” (1973), para citar somente os dois que chegaram ao primeiro lugar nos Estados Unidos, principal mercado consumidor de discos do mundo.

O terceiro e último single número um na América na década viria em 1978, como carro-chefe do álbum mais bem-sucedido da banda não só no período, mas em toda a sua carreira.

Revivendo os velhos tempos

Quando assinaram seu contrato de 7 milhões de libras com a EMI, um dos principais bônus ao qual os Rolling Stones — Mick Jagger (vocais), Keith Richards (guitarra), Bill Wyman (baixo), Charlie Watts (bateria) e o recém-efetivado guitarrista Ronnie Wood — teriam direito era o uso liberado dos famosos estúdios Pathé-Marconi, em Paris, França.

Apesar da localização pouco privilegiada — na periferia da cidade, onde não havia nenhum bar ou restaurante por perto —, o Pathé-Marconi era o lar de artistas como Edith Piaf e Charles Aznavour. Foi também onde os Beatles gravaram seu hit “Can’t Buy Me Love”.

A gravação do que começou como “More Fast Numbers” e que acabaria se tornando “Some Girls” teve início em outubro de 1977, durando até abril de 1978. Como não tinham nada preparado antes de chegar, os Stones iam compondo no estúdio. Segundo Richards na autobiografia “Vida” (Editora Globo, 2010), “as músicas jorravam de nós”:

“Era como em meados dos anos 1960; fazendo tudo ali na hora, começando a compor as músicas do zero, ou quase isso, retomando nosso velho jeito de compor e trabalhar em equipe. Mergulhamos de cabeça no projeto, revivendo os velhos tempos, e os resultados foram incríveis.”

Outra grande diferença com relação aos álbuns mais recentes é que os Stones não tinham nenhum músico de fora da banda com eles em estúdio. As participações adicionais — do pianista/organista Ian MacLagan, do saxofonista Mel Collins, do gaitista Sugar Blue e de uma série de percussionistas, incluindo Simon Kirke (Free, Bad Company) — só foram gravadas depois. Para Keith, a mudança veio a calhar:

“O acréscimo de outros instrumentistas nos fez tomar um outro rumo nos anos 1970, chegando em alguns momentos a nos afastar de nossos melhores instintos. Éramos só nós no estúdio. Estávamos mais focados e tínhamos de trabalhar duro.”

“Vamos gravar antes que o pior aconteça”

Não obstante o supracitado foco, o início dos trabalhos em “Some Girls” coincidiu com um momento sombrio na história dos Rolling Stones. Afinal, Keith Richards podia ir para a cadeia a qualquer momento e causar a dissolução da banda. Ele alertou aos colegas em Paris:

“Vamos gravar alguma coisa antes que o pior aconteça.”

Isso porque no dia 27 de fevereiro daquele ano, durante a turnê da banda pelo Canadá, a polícia local realizou uma batida no quarto de hotel onde Richards estava hospedado juntamente com a então namorada, Anita Pallenberg. Na busca, foram encontradas diversas substâncias ilícitas, incluindo heroína e cocaína.

Acusado de posse de drogas com intenção de tráfico — o que poderia resultar em uma sentença pesada —, Richards alegou que as substâncias eram para uso pessoal e não para distribuição. A acusação de tráfico foi retirada, mas considerado culpado de posse de drogas, Keith foi condenado a uma pena de prisão de um ano, posteriormente suspensa, e à prestação de serviços comunitários.

O período conturbado virou música. Um dos destaques de “Some Girls” e uma das composições mais pessoais e poderosas da carreira de Richards, “Before They Make Me Run” reflete sua atitude diante das adversidades que enfrentava naquele momento. A letra diz:

“Worked the bars and sideshows along the twilight zone / Only a crowd can make you feel so alone” (“Já toquei em todos os bares e casas de shows no centro da cidade / Nada como uma multidão para fazer você se sentir totalmente só”)

Embora tenha gerado grande repercussão na mídia e despertado preocupação entre os fãs dos Stones, a prisão em 1977 não foi a primeira vez que questões relacionadas ao uso e porte de drogas renderam ao guitarrista encontros notáveis com a lei.

Dez anos antes, Richards foi preso em sua casa em West Sussex, na Inglaterra, durante uma incursão policial. Ele foi acusado de posse de maconha e anfetaminas. O incidente resultou em um processo judicial que acabou com Keith sendo condenado a um ano de prisão; sentença depois revogada em uma apelação e ele foi colocado em liberdade condicional.

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“Um itinerário vulgar pelos becos de NY”

Mesmo tendo sido gravado em Paris, foi outra cidade cuja energia, diversidade cultural e atmosfera vibrante que teve uma forte influência musical e lírica em “Some Girls”. Ou, como Alan Clayson, autor de “The Rolling Stones: Gravações Comentadas & Discografia Completa” (Larousse do Brasil, 2009) define, o disco é “um itinerário vulgar pelos becos de Nova York”.

Ao NME, em 1978, Mick Jagger confirmou que os Stones queriam fazer um álbum que fosse uma mistura de estilos e que…

“Incorporasse elementos do rock, do punk e até mesmo da disco music. Queríamos capturar a energia e a diversidade da música que estávamos ouvindo e sentindo naquele momento.”

Apesar de o punk ter sido ingrediente na receita vitoriosa do disco, Keith Richards conta em “Vida” que o movimento foi “uma pedra no nosso sapato” e que a incorporação do estilo eram os Stones dizendo “temos que ser mais punks que os punks” porque…

“Eles não sabem tocar e nós sabemos. Eles só sabem ser punks. Quando não estão tocando nada, estão apenas cuspindo nas pessoas. Espere aí; nós podemos fazer melhor que isso. E o resultado final acabou sendo muito bom.”

Musicalmente, as influências são de estilos musicais que estavam em alta na cena musical novaiorquina naquela época, como a disco music que dá o tom a canção de abertura e principal e mais bem-sucedido single do álbum, “Miss You”.

Richards revela ainda que nenhum dos Stones a princípio não viu nada de muito especial na música, mas que conforme foram desenvolvendo a ideia, perceberam que talvez tivessem criado um clássico:

“A música foi o resultado de todas as noites que Mick passou na Studio 54 [boate epicentro da cultura disco nos anos 1970], aquela batida de quatro tempos no bumbo. Então, ele disse: ‘coloquem uma melodia nessa batida’. Nós decidimos contribuir com a ideia dele de criar alguma coisa que tivesse um ar de discoteca, deixar o cara feliz. E foi um sucesso total.”

Os números não mentem: “Miss You” acabaria se tornando o oitavo compacto dos Stones a ter alcançado a primeira posição nos Estados Unidos, ficando entre as dez mais em 17 outros países.

Do ponto de vista musical, o restante do álbum, porém, não tem nada a ver com “Miss You”. Elementos do punk são notórios em “Respectable” e “Shattered”; “Far Away Eyes” é uma paródia country sobre a vida no sul dos Estados Unidos e “Just My Imagination (Running Away with Me)” uma regravação mais rock do grupo vocal The Temptations — do qual os Stones haviam regravado “Ain’t Too Proud to Beg”, lançada quatro anos antes em “It’s Only Rock ‘N’ Roll” (1974).

Reflexões sobre a sociedade contemporânea

Nas letras de “Some Girls”, prevalecem temas relacionados à vida urbana e reflexões sobre a sociedade contemporânea.

Em “Shattered” é transmitido um senso de urgência e desilusão, que captura a sensação de estar perdido em uma cidade grande. Já “Respectable”, uma crítica à hipocrisia social, aborda a ideia de aparências e reputações, questionando a definição convencional de respeitabilidade.

“Lies” e o single “Beast of Burden” adentram a seara dos relacionamentos interpessoais. A primeira pode ser interpretada como uma reprimenda aos enganos e falsidades aos quais estamos suscetíveis. A segunda, ao expressar a ideia de alguém que está disposto a carregar o fardo emocional de um parceiro, toca na complexidade das emoções envolvidas quando se está apaixonado.

Tópicos mais sensíveis também marcam presença. Escrita da perspectiva de alguém que se sente marginalizado pela sociedade devido à sua sexualidade, “When the Whip Comes Down” explorando a experiência de ser um homem gay em um contexto social restritivo. “I was gay in New York / Just a fag in L.A. / Wherever I go they treat me the same” (“Eu era gay em Nova York / Apenas uma bicha em Los Angeles / Onde quer que eu vá o tratamento é o mesmo”), dizem alguns dos versos iniciais da canção.

A linha entre abordar tópicos sensíveis e demonstrar a mais completa falta de pudor era tênue para os Rolling Stones. Que o diga a faixa-título de “Some Girls”. Nela, Mick admitia que garotas francesas, italianas, americanas, inglesas e chinesas tinham todas seu mérito, mas que as negras eram as melhores na cama. Jagger canta que elas “just want to get f#cked all night” (“só querem ser comidas a noite inteira”).

A controversa letra foi considerada ofensiva por grupos feministas e de defesa dos direitos das mulheres. Novamente, história que se repete: anos antes, “Under My Thumb” e “Brown Sugar” receberam críticas similares por apresentarem conteúdo considerado sexista, objetificante ou que reforça estereótipos de gênero.

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Polêmica na capa, galhofa no encarte

Com o disco nas gôndolas, a capa de “Some Girls” gerou polêmica devido a caricaturas de várias mulheres, incluindo algumas celebridades, como Marilyn Monroe, Farrah Fawcett, Lucille Ball e outras, feitas pelo artista Hubert Kretzschmar.

O problema não foi tanto pela representação exagerada e cômica, mas sim pelas personalidades retratadas, que não haviam permitido ou autorizado os retratos.

A fim de evitar processos por uso não autorizado de imagens, a banda retirou a capa original de “Some Girls” de circulação, substituindo-a por uma nova.

A capa substituta manteve as cores vibrantes, mas os rostos das famosas deram lugar a uma coleção de faces recortadas dos membros da própria banda, a partir de fotografia tirada por Peter Corriston.

A pegada satírica consta, também, do encarte, que apresenta cada um dos cinco Stones como uma mulher alvo de coluna de fofocas. As hilárias descrições, que podem ou não ter sido baseadas em fatos, são as seguintes:

  • Mick Jagger: Provavelmente a mulher de maior sucesso no rádio, Mick esteve muito perto do casamento. Ela tem o homem, admitiu que gostava muito dele, mas infelizmente o mandou embora — ela não suportava a ideia de sacrificar sua carreira.
  • Keith Richards: A indescritível “eu quero ficar sozinha” sueca tem se escondido do mundo há anos. Um romance frustrante com John Gilbert [ator de cinema norte-americano dos anos 1920 e 1930] e a trágica morte de Mauritz Stiller [diretor de cinema sueco e um dos principais expoentes do cinema mudo], o único amor verdadeiro de Richards a transformaram em uma reclusa.
  • Bill Wyman: Chique, inteligente, confidente da sociedade internacional — que ela presenteia com festas inusitadas e empolgantes — falta a Bill apenas um atributo para ser a esposa perfeita — ela simplesmente não gosta de homens. Nunca gostou.
  • Charlie Watts: Esta linda e talentosa showgirl, modelo e atriz não encontrou um homem que se encaixasse em sua rigorosa especificação de marido. Diz a cautelosa Watts: “Não me arrependo… Prefiro estar sozinha a lamentar…”
  • Ronnie Wood: A queridinha dos deslumbrantes anos 1920 tinha hordas de homens a seus pés, suspirando por seus favores. Especialistas de Hollywood insistem que sua grande beleza e popularidade tornaram impossível para qualquer homem impressioná-la. Nenhum jamais o fez.

“Queríamos fazer algo fresco e inovador”

Da mesma forma que “Beggars Banquet” (1968) fizera dez anos antes, “Some Girls” ressuscitou os Rolling Stones do ponto de vista comercial, vendendo mais de 8 milhões de cópias e derrubando a trilha sonora do filme “Os Embalos de Sábado à Noite” do primeiro lugar das paradas.

Considerado único em diversos aspectos em relação à discografia da banda, o álbum traz um som distintivo e inovador que teve muito a ver com Chris Kimsey, engenheiro de som e produtor com quem os Stones estavam trabalhando pela primeira vez, embora o conhecessem desde a época em que era estagiário no Olympic Studios, em Londres, onde a banda gravou alguns de seus números mais aclamados.

Para Keith Richards, o grande mérito de Kimsey foi fazer os Stones redescobrirem um som espontâneo, que os afastasse do estilo de gravação metódico ao qual tinham se acomodado. A experiência foi tão proveitosa que Kimsey acabou sendo engenheiro de som e coprodutor de mais oito álbuns dos Stones.

Quando perguntado pelo Melody Maker sobre “Some Girls”, Mick Jagger afirmou que “foi um álbum divertido de fazer”:

“Nós nos divertimos muito experimentando diferentes sons e explorando novas ideias musicais. Queríamos fazer algo fresco e inovador, e acho que conseguimos.”

Na sua autobiografia, publicada mais de três décadas após a supracitada declaração do colega, Keith fornece a justificativa perfeita:

“Não se pode discutir sobre um disco que vende 8 milhões de cópias e tem duas faixas entre as dez mais.”

Rolling Stones — “Some Girls”

  • Lançado em 9 de junho de 1978 pela Rolling Stones Records
  • Produzido por The Glimmer Twins (Mick Jagger e Keith Richards)

Faixas:

  1. Miss You
  2. When the Whip Comes Down
  3. Just My Imagination (Running Away with Me)
  4. Some Girls
  5. Lies
  6. Far Away Eyes
  7. Respectable
  8. Before They Make Me Run
  9. Beast of Burden
  10. Shattered

Músicos:

  • Mick Jagger (vocal, guitarra, piano na faixa 6, percussão na faixa 10)
  • Keith Richards (guitarra, violão, baixo nas faixas 4 e 8, piano na faixa 6, vocal na faixa 8)
  • Bill Wyman (baixo, sintetizadores na faixa 4)
  • Charlie Watts (bateria)
  • Ronnie Wood (guitarra, pedal steel nas faixas 2, 6 e 10, violão, baixo na faixa 10)

Músicos adicionais:

  • Sugar Blue (gaita nas faixas 1 e 4)
  • Ian McLagan (piano na faixa 1, órgão na faixa 3)
  • Mel Collins (saxofone na faixa 1)
  • Simon Kirke (congas na faixa 10)

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Marcelo Vieira
Marcelo Vieirahttp://www.marcelovieiramusic.com.br
Marcelo Vieira é jornalista graduado pelas Faculdades Integradas Hélio Alonso (FACHA), com especialização em Produção Editorial pela Universidade Estadual Paulista (UNESP). Há mais de dez anos atua no mercado editorial como editor de livros e tradutor freelancer. Escreve sobre música desde 2006, com passagens por veículos como Collector's Room, Metal Na Lata e Rock Brigade Magazine, para os quais realizou entrevistas com artistas nacionais e internacionais, cobriu shows e festivais, e resenhou centenas de álbuns, tanto clássicos como lançamentos, do rock e do metal.

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