“A Baleia” se perde entre o sentimentalismo e a crueldade, mas se encontra em Brendan Fraser

Ator brilha em um de seus mais incríveis papéis na carreira, salvando uma trama perdida na busca pela lágrima e repulsa de sua audiência

É fato que Darren Aronofsky nunca foi lá uma unanimidade suprema entre os fãs de cinema. Desde o brutal “Réquiem para um Sonho” (1998) até o estranhíssimo porém belíssimo “Mãe!” (2017), o cineasta divide opiniões em tramas que costumam mergulhar no surrealismo, com um visual que beira o experimental, mas que sempre tentam chocar, flertando com o grotesco, com a violência, com o sufocante. No entanto, em seu mais recente filme, “A Baleia”, dialoga com outra obra de sua filmografia – dá pra dizer definitivamente que é com “O Lutador” (2008).

A comparação não está apenas no fato de abrir espaço para que um protagonista há muito afastado da ribalta de Hollywood volte a brilhar – Mickey Rourke no papel do fracassado ex-campeão de luta livre, Brendan Fraser como o depressivo professor de literatura preso em seu próprio corpo. Mas, principalmente, pelo tom mais intimista de ambas as histórias, menos fábula e mais humano, sobre derrotas, sobre amargura, sobre perder a vontade de viver e se tornar seu maior adversário.

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E sim, Fraser está particularmente sensacional no papel, numa interpretação potente, intensa, verdadeira. O filme é dele, isso é fato. O grande problema, na verdade, é que o longa rigorosamente depende do ator para se manter de pé. Acaba sendo uma história construída não em torno de um personagem, mas sim em torno do personagem que foi entregue para Brendan Fraser, o que é uma diferença e tanto. Sem esta entrega vigorosa, muito provavelmente “A Baleia” se perderia em inúmeras tentativas de Aronofsky pra te fazer chorar, sofrer, sentir nojo, sentir pena… ou talvez tudo isso junto.

Na busca pelo choro

Uma coisa que talvez fosse esperada na história sobre um homem com obesidade mórbida, cuja depressão o deixa trancado em casa em situação desesperadora, seria apelar para o emocional do espectador. Com a entrega de Fraser, claro, conforme vamos vendo as camadas se descascando — seu personagem, Charlie, é um homem gay, que perdeu o seu amado de maneira trágica, acaba reencontrando a filha há muito afastada numa situação desgastante —, é natural que isso traga um aperto no peito.

A grande questão é que Darren Aronofsky, enquanto contador de história, deveria talvez medir um pouco o tom, justamente para evitar resvalar no sentimentalismo barato. E olha que, em certos momentos, o filme quase chega a isso, o que por pouco não acaba tirando a força do personagem defendido pelo ator principal. Por muitas vezes, falta ao diretor um tanto de sutileza, permitindo a Fraser aplicar sua força em pequenas coisas como o olhar ou o silêncio, ao invés de sempre precisar defender a história no grito estourado, no sofrimento, aos berros com a trilha sonora no crescendo.

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Por um milímetro, um aguardado diálogo com potencial para ser brilhante entre Charlie e Mary, personagem da excelente Samantha Morton, não se tornou a maior oportunidade desperdiçada do filme.

Muitas vezes, em histórias delicadas como essa, menos definitivamente é mais.

Na busca pelo choque

A mesma questão sensacionalista se dá quando Darren Aronofsky pula para o outro espectro, o do drama, e amplia as suas cores de tal maneira que parece a todo custo querer criar uma sensação forçada de incômodo. No horror de uma casa imunda, de um corpo gigantesco e cheio de escaras, na respiração que o protagonista perde toda vez que engata uma gargalhada, tudo é construído de maneira que chega a beirar o filme de terror.

E ao tornar o Charlie de Brendan Fraser praticamente um monstro, ao ir longe demais na conexão entre ele e a baleia Moby Dick (cujos reais motivos vamos descobrir mais ao fim), o cineasta corre o grave risco de desumanizá-lo, de tirar dele aquilo que faz com que cada um de nós se identifique. É, ao mesmo tempo, um gigantesco erro de percurso para quem quer contar uma história como esta e também um preconceito tenebroso que perpetua estereótipos sobre pessoas gordas.

A cena final (cujos detalhes nós não daremos, para evitar spoilers, obviamente), por exemplo, torna o seu caminhar algo inumano, quase mutante, com os pés tratados como gigantescas patas. É de uma insensibilidade grotesca e que, inclusive, esvazia muito da força que a revelação decisiva tem.

Vamos falar sobre gordofobia

Não dava pra evitar este tema. Já seria bastante passível de críticas o fato do Brendan Fraser, por melhor que esteja na arte da interpretação, assumir o papel usando um fat suit: o combo de maquiagem e efeitos práticos que emula um corpo gordo. Sim, sabemos que estamos falando de um homem gordo com grande nível de morbidez, o que inclusive leva à dificuldade de locomoção, mas ainda assim… complexo. Bem complexo. Se estamos (e devemos estar sempre) dispostos a debater, questionar e coibir questões envolvendo outros grupos minoritários, a ideia toda de se transformar o corpo gordo em personagem deveria ao menos ser motivo de discussão.

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Dito isso, quero ir além. Porque, sim, temos pelo menos uma personagem no filme que é claramente escrota e, óbvio, usa a forma física de Charlie como motivo de piada. Era esperado que ela fizesse isso e, vamos lá, está claro que o que ela está fazendo é nojento. Isso, inclusive, gera uma cena, sensacional, envolvendo o jovem garoto religioso que passa a querer trazer Deus para a vida do personagem principal, na qual estes argumentos são contrapostos para trazer sua hipocrisia à tona.

Só que… um olhar mais atento mostra que Aronofsky, enquanto autor visual, acaba deixando esta mesma hipocrisia vazar. Estamos falando de uma história que é, antes de tudo, sobre depressão. Sobre alguém que perdeu tanto na vida que acha que não merece mais viver, que não quer se cuidar e pratica antes de tudo a autodestruição. O fato de ser uma pessoa gorda deveria ser detalhe e não foco principal, mas o fato é que a  movimentação de câmera do filme torna esse fato gritante. Mais do que isso: faz questão de tornar o corpo gordo em algo repulsivo, vergonhoso, imprestável, apenas mostrando as migalhas de comida espalhadas em seu colo, por exemplo.

Está tudo dentro do pacote de obviedades que o audiovisual faz ao retratar alguém gordo, inclusive e principalmente dentro da comédia. Um retrato que não caberia lá e por consequência não caberia aqui. Mas, essencialmente, aqui.

No fim, “A Baleia” acaba sendo uma obra que tem nos maneirismos e na falta de tato de Darren Aronofsky o seu maior inimigo; já na assertividade de sua escolha para o protagonista, o seu maior aliado. Brendan Fraser, na contagem dos pontos, acaba por vencer a batalha. Resta saber se terá que lidar com os espólios de guerra incômodos o bastante a quem assiste, a ponto de ofuscar o vencedor. 

*“A Baleia” está em exibição nos cinemas brasileiros. 

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Thiago Cardim
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Thiago Cardim é uma mistura de jornalista com publicitário, salpicada com cinéfilo, temperada com metaleiro e reforçada com gibizeiro. Escreve sobre cultura pop no Gibizilla, fala sobre coisas do mundo no podcast Imagina Se Pega No Olho e sobre música no Imagina Se Pega no Ouvido.

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