A história de “Vida de Solteiro”, o filme que pôs o grunge nas telonas

Longa dirigido por Cameron Crowe foi um dos responsáveis por colocar Seattle e o rock lá produzido em evidência no começo dos anos 1990

Zeitgeist é uma palavra alemã que significa espírito da época, do tempo. O sinal dos tempos, por assim dizer. São entendidas desta forma as características intelectual e cultural do mundo num determinado momento. Pode-se dizer que “Vida de Solteiro” (do original “Singles”) captura o zeitgeist americano do começo dos anos 1990 como nenhum outro filme.

Escrito e dirigido por Cameron Crowe, o longa aborda as inquietudes da geração X quanto às vidas pessoal e profissional. Como consequência, leva o incipiente movimento grunge para as telonas, apresentando alguns de seus principais representantes para um público não necessariamente antenado nas últimas novidades do rock.

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Background e trama de “Vida de Solteiro”

Após se casar no fim dos anos 1980 com a guitarrista Nancy Wilson (Heart), Crowe, que também era ex-colunista da Rolling Stone, mudou-se para Seattle. Ele rapidamente se apaixonou pela região, pela música que dela emanava e por muitos dos personagens que faziam da cena o que ela era.

O primeiro filme de Crowe, “Digam o Que Quiserem” (1989), já era ambientado nos arredores de Seattle. Chegada a hora de fazer outro, ele decidiu incorporar sua relação pessoal e particular com a cidade e sua música.

O resultado foi “Vida de Solteiro”, uma comédia romântica protagonizada por um grupo de amigos na casa dos trinta em busca de amor e identidade. No elenco, as atrizes Bridget Fonda e Kyra Sedgwick e os atores Campbell Scott e Matt Dillon.

A trama gira em torno dos casais Janet Livermore (Fonda) e Cliff Poncier (Dillon) — que veem o relacionamento sendo relegado ao segundo plano em favor da carreira de Poncier na música — e Linda Powell (Sedgwick) e Steve Dunne (Scott, sendo que a primeira opção do diretor era Johnny Depp, que recusou o papel), relutantes quanto a dar o passo adiante e se casarem ou não.    

Estrelando Chris Cornell… nem tanto

Um dos personagens centrais de “Vida de Solteiro”, o músico Cliff Poncier era líder da banda fictícia Citizen Dick. Enquanto considerava quem poderia interpretar o jovem presunçoso, um nome não saía da cabeça de Cameron Crowe: Chris Cornell, então vocalista do Soundgarden.

Crowe e Cornell haviam se tornado bons amigos e o Soundgarden era uma das bandas favoritas do diretor. Mesmo assim, Chris não topou e Matt Dillon acabou sendo escalado para o papel — o que não significou que ele estaria fora de cena.

Em vez de interpretar Poncier, Cornell interpretou a si mesmo, escalando as vigas do teto e mergulhando no público durante uma performance selvagem da faixa “Birth Ritual”, do Soundgarden. Crowe pediu que a banda tocasse a música ao vivo para que a cena parecesse o mais autêntica possível.

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Na noite anterior à filmagem da grande cena, o Soundgarden ensaiou a música várias vezes para ter certeza de que estavam na ponta dos cascos. Preocupado que o vocalista pudesse estourar a voz antes que as câmeras começassem a gravar no dia seguinte, Crowe pediu cautela a Cornell, que o ignorou solenemente.

Dito e feito: no dia seguinte, Chris foi incapaz de manter a intensidade da noite anterior e acabou ficando desapontado por não ter guardado o melhor de si para o filme.

Chris aparece novamente no longa mais tarde como um dos vizinhos de Cliff. Embora várias oportunidades de atuação tenham se insinuado para ele nos anos seguintes ao lançamento de “Vida de Solteiro” – incluindo uma oferta para interpretar um personagem na ação “Os Suspeitos” (1995) –, ele recusou todas, preferindo limitar seu envolvimento com a sétima arte às ofertas de trilhas sonoras.

Uma trilha de futuros gigantes

Por falar em trilha sonora, a de “Vida de Solteiro” é um verdadeiro testemunho da cena rock de Seattle. Além da supracitada “Birth Ritual”, do Soundgarden — e de “Seasons”, que Chris Cornell gravou sozinho —, “Chloe Dancer/Crown of Thorns”, do Mother Love Bone, “Overblown”, do Mudhoney, e “Nearly Lost You”, do Screaming Trees, foram alguns dos destaques.

Mas sem dúvida a música mais importante foi “Would?”, tributo do Alice in Chains a Andrew Wood, do Mother Love Bone, que morreu de overdose em março de 1990. Com título sendo presumivelmente um trocadilho com o sobrenome de Andrew, a letra fala sobre estar internado numa clínica de reabilitação e suas consequências, chegando ao ponto de questionar se o futuro pós-vício em drogas é mais promissor.

Em bate-papo com o autor Greg Prato, o guitarrista do Alice in Chains, Jerry Cantrell, revelou que Cameron Crowe acabou pagando por muito mais do que conseguiu de fato.

“Cameron queria uma música, então conseguimos fazê-lo pagar por dez. Passamos a ele um orçamento inflacionado. Gravamos ‘Would?’ para o filme, e mais um monte de coisas.”

Entre esse “monte de coisas” estava material que apareceria tanto no EP “Sap” quanto no LP “Dirt” (ambos de 1992) e uma faixa, “Lying Season”, que só veria a luz do dia no box set “Music Bank”, de 1999.

Segundo lugar no tocante à importância, “State of Love and Trust”, do Pearl Jam, foi composta pelo vocalista Eddie Vedder depois que a banda fez uma ponta no filme, como os integrantes do Citizen Dick. Para o baixista Jeff Ament, “a canção era Eddie respondendo à angústia de amar quando se é muito novo para realmente saber o que fazer.”

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Em depoimento reproduzido no compêndio “Pearl Jam Twenty” (BestSeller, 2015), Vedder revelou que trabalhar com o filme “foi uma aventura”:

“Se não fosse por causa de ‘Vida de Solteiro’, não sei se eu teria me sentido bem em largar meu emprego. Eu tinha certa segurança lá. Trabalhar com o filme foi uma aventura. Ver tudo aquilo acontecendo em Seattle — foi bem quando cheguei aqui e comecei a aprender sobre a cidade. E havia um filme sendo feito sobre ela e juntando todas essas pessoas. Além disso, acho que ganhei mil dólares para dar três aulas de guitarra a Matt Dillon, e isso me manteve de pé.”

A trilha sonora, lançada em CD, K7 e LP pela Epic Soundtrax no dia 26 de junho de 1992, traz ainda outra faixa inédita do Pearl Jam: “Breath”.

Qualquer semelhança é mera coincidência

Quando “Vida de Solteiro” estreou nos cinemas em 18 de setembro de 1992, sua trilha sonora já havia se tornado um best-seller, com mais de 2 milhões de cópias vendidas. Elogiado pela crítica, o filme faturou cerca de 18 milhões de dólares em bilheteria.

O estrondoso sucesso do longa cujo orçamento tinha sido de 9 milhões rendeu a Cameron Crowe uma proposta da Warner Bros para uma sitcom, a qual o diretor disse “não”. Curiosamente, dois anos mais tarde, o canal estreou uma série que gira em torno de um grupo de amigos na casa dos trinta: a mundialmente conhecida “Friends”.

Crowe alega que “Friends” foi inspirada em seu filme, mas o mais provável é que Marta Kauffman e David Crane, criadores da série, tenham se inspirado em “Living Single” (1993-1998), que antecedeu a sitcom de sucesso ao narrar a vida de seis amigos, todos negros e solteiros, curtindo a vida em Nova York. A verdade só Kauffman e Crane poderão dizer.

De qualquer forma, passados trinta anos de seu lançamento, “Vida de Solteiro” segue lembrado como um dos registros definitivos de uma cena musical em ascensão. Só é triste pensar que muitos de seus protagonistas — Layne Staley (Alice in Chains), Chris Cornell e, mais recentemente, Mark Lanegan (Screaming Trees) — tenham nos deixado de maneira tão prematura, quando não trágica.

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Marcelo Vieira
Marcelo Vieirahttp://www.marcelovieiramusic.com.br
Marcelo Vieira é jornalista graduado pelas Faculdades Integradas Hélio Alonso (FACHA), com especialização em Produção Editorial pela Universidade Estadual Paulista (UNESP). Há mais de dez anos atua no mercado editorial como editor de livros e tradutor freelancer. Escreve sobre música desde 2006, com passagens por veículos como Collector's Room, Metal Na Lata e Rock Brigade Magazine, para os quais realizou entrevistas com artistas nacionais e internacionais, cobriu shows e festivais, e resenhou centenas de álbuns, tanto clássicos como lançamentos, do rock e do metal.

2 COMENTÁRIOS

  1. Eu tinha 20 anos quando esse filme estreou. Vi no cinema, comprei a trilha sonora, montei bandas para tocar os hinos grunge da época. Uma época cheia de energia, rock e rebeldia que me marca até hoje. E um filme que, mesmo datado (ou talvez por causa disso), representa como poucos o que foram esse início dos anos 90.

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