A arte tem como um dos pilares a difícil missão de transformar uma sociedade. Em uma entrevista ao programa “Roda Vida” da TV Cultura, o ator e diretor Antônio Fagundes, diz algo interessante: “costumo brincar que o bom espetáculo é aquele que faz o público pensar 5 minutos até o estacionamento”. Esta é a intenção de “Não Se Preocupe, Querida”.
A diretora Olivia Wilde e os roteiristas atie Silberman (“Booksmart”) e Shane Van Dyke (“O Silêncio”) querem fazer o público pensar 5 minutos sobre machismo até o estacionamento. Apesar do tema mexer com as emoções atuais, o grande ganho deste filme é provocar reflexão ao mesmo tempo que oferece um bom mistério, com ótima interpretação de sua protagonista e um roteiro que visa, antes de tudo, a história.
Porém, nem tudo são flores. O longa escorrega feio em algumas decisões e não consegue perceber a hora de parar. A situação é somada às polêmicas “extracampo”, o que faz de “Não Se Preocupe, Querida” uma aula aberta de como boicotar algo que poderia ser muito bom.
Mistério sobre machismo
A trama mostra Alice Chambers (Florence Pugh) e o marido Jack Chambers (Harry Styles) vivendo um verdadeiro conto de fadas em uma pequena cidade dos anos 1950. Uma região amistosa, feliz, regada de cores e famílias tradicionais lindas.
Neste sonho de vida, todos os dias temos festas, mesa farta, bebidas, vestidos maravilhosos e carros luxuosos. Há ainda, claro, uma mulher linda, cheirosa e arrumada que passa o dia em casa limpando, cozinhando e se preparando para receber seu marido de volta do trabalho já na porta, com um lindo sorriso e um copo de uísque na mão.
A cidade em questão foi criada por uma empresa e os homens trabalharam no que eles chamam de Projeto Vitória. Porém, com o passar do tempo e das situações, Alice começa a sentir que tem algo de errado naquele lugar, naquela empresa e em sua vida considerada perfeita.
Não há mais nada que eu possa dizer sobre o longa além disso. A experiência do filme é justamente cada um de nós, junto da protagonista, descobrir progressivamente o que há de errado naquele lugar e sentir todo o sufocamento que a personagem traz em sua jornada.
Classe e sutileza
O longa aborda a ideia arcaica de que a vida perfeita seria ter um casamento sólido tradicional e uma mulher para cuidar da casa, manter-se bela e tratar o melhor possível o marido, que é seu provedor. O acerto está em tratar todas essas questões sem frases clichês ou o ataque pelo ataque — como vemos em algumas obras, a exemplo de “Mulher-Hulk”, atual série da Marvel.
Aqui, o roteiro antes de tudo visa a história e o mistério em torno de tudo aquilo que a protagonista vive. Quando é necessário abordar o machismo, é feito de forma inteligente e verdadeira, como um diálogo que não se limita a chavões atuais. É uma maneira eficaz de passar a mensagem sem entrar em conflito; ao mesmo tempo que é sutil, tem o poder de até mesmo fazer uma pedra refletir.
Sendo assim, o longa é bem filmado, temos aqui ótimas cenas e boas construções de momentos de terror e mistério. A questão da personagem se sentir sufocada por uma rotina que pra muitos é considerada a perfeita, é muito bem desenhada pelos olhos da promissora diretora. Os tempos psicológicos do filme são muito bem trabalhados, as cores usadas transformam tudo em um espetáculo perturbador e os atores todos corretos em seus trabalhos.
A autossabotagem
Infelizmente, “Não Se Preocupe, Querida” provoca uma autossabotagem ao não saber quando parar. No momento mais importante, de concluir todo aquele mistério, há uma falha grave no roteiro e na direção por mais incrível que seja a solução de tudo aquilo.
Houve ao menos uns quatro momentos na reta final em que fui traído após pensar: “bom, agora acabou”. Vinham mais cenas com explicações, novidades, informações, reviravoltas. E mesmo assim o final fica um tanto quanto aberto. Chega a ser uma situação sufocante igual à da personagem — chegamos ao ponto de haver até mesmo uma passagem envolvendo uma explosão no maior estilo Yelena Belova, a Viúva Negra da Marvel a ser interpretada por Florence Pugh.
O clímax da obra dura cerca de meia hora. Nas mãos de um diretor mais hábil, em menos de dez minutos tudo teria sido resolvido e revelado de forma muito mais assustadora e impactante do que foi.
A recepção ruim no festival de Veneza e as críticas negativas desde então se justificam por sua autossabotagem. Desde o trailer, aliás, pois a prévia “vendia” o longa como um thriller de suspense erótico, mas sequer há nudez ali. As cenas sexuais não somam dois minutos. Quem esperava ver Harry Styles no ato, esqueça e aguarde o próximo filme do astro, “My Policeman”.
Além de um trailer com gotas de mentira, todos os envolvidos deixaram com que polêmicas e problemas de bastidores fossem muito mais interessantes do que o longa.
Atuações corretas
Florence Pugh é uma excelente atriz. Aqui ela consegue brilhar durante o filme inteiro e entrega de forma perfeita todos os timings que lhe são pedidos. A diretora Olivia Wilde também atua como a extravagante Bunny, contudo, como atriz, nunca chamou tanta atenção ou teve muito carisma.
Não é o caso de Chris Pine, extremamente carismático. O galã enche a tela e é fácil de se comprar absolutamente tudo o que ele faz – assim como a imagem de Harry Styles. O astro da música pega pela primeira vez um grande papel como ator e não faz feio.
Por outro lado, faltam recursos técnicos a Styles para ir além. Antes dele, o ator cotado para o papel era o problemático Shia LaBeouf (“Transformers”), que com certeza teria feito chover ouro em um personagem assim. Infelizmente perdemos uma grande interpretação, mas, Styles não compromete em nada e tem bom futuro pela frente.
Nada de Oscar?
Apesar da recepção ruim, “Não Se Preocupe, Querida” apresenta elementos poderosos que podem render indicações ao Oscar. São eles: uma diretora mulher com forte mensagem contra o machismo, a “carta certa” Florence Pugh e a possibilidade de ter o fenômeno Harry Styles em uma cerimônia que perde relevância ano após ano.
Contudo, exceção feita a Pugh, é difícil imaginar outros pontos que realmente valham indicação. Seria diferente se a autossabotagem não tivesse ocorrido.
*“Não Se Preocupe, Querida” estreia nos cinemas brasileiros na próxima quinta-feira (22).
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Valeu!!!!