“This film should be played loud!” Esse é o aviso logo no início de “The Last Waltz”, filme da The Band considerado até hoje um dos melhores exemplos de apresentação ao vivo da história do rock e do cinema. Ele marca o fim de uma banda, de uma era e de egos e excessos que provocaram tal encerramento.
A banda chamada The Band
Os anos 1970 não haviam sido exatamente gentis com Robbie Robertson, Levon Helm, Richard Manuel, Rick Danko e Garth Hudson, conhecidos coletivamente como The Band. Após terem um papel essencial na reestruturação da música americana nos anos 1960 – primeiro como banda de apoio de Bob Dylan em suas turnês elétricas e depois como artistas de mérito próprio com os discos “Music From Big Pink” e “The Band” –, o quinteto viu seu sucesso diminuir rapidamente com o virar da década.
Esse declínio apenas piorou as tensões internas que afetavam o grupo. Robertson, guitarrista e principal compositor, estava desgastado de turnês desde os anos 1960 e louco para deixar a estrada. Os outros integrantes pensavam diferente, mas um acidente de barco sofrido pelo tecladista e vocalista Richard Manuel em setembro de 1976 deu a oportunidade para Robertson propor o que seria o show de despedida do grupo.
Robbie é citado no livro “Bill Graham Apresenta: Minha Vida Dentro e Fora do Rock” falando sobre o assunto:
“Eu havia começado a suspeitar da estrada. Olha o que aconteceu com esse cara (Manuel).Olha o que aconteceu com eles. Essas pessoas que enlouqueceram quando caíram na estrada. Isso não era saudável. Eu tava falando pros caras da The Band: ‘gosto da música que a gente faz junto, mas não quero mais sair com ela em turnê…’ A gente não está aprendendo com ela. Não estamos crescendo com ela.”
Palco, banquete e convidados ilustres
Uma performance no programa de TV “Saturday Night Live”, em 30 de outubro de 1976, antecedeu a despedida. Seria no dia 25 de novembro de 1976, feriado de Ação de Graças, no Winterland Ballroom de San Francisco, onde a banda havia feito sua estreia como The Band em 1969.
Ao público, o evento foi anunciado apenas “Bill Graham presents The Last Waltz: the Band and friends”. Foram vendidos 5,4 mil ingressos. Um banquete tradicional do feriado americano seria oferecido ao público e aos convidados secretos.
E que convidados. Ronnie Hawkins e Bob Dylan não poderiam faltar: simbolizaram os músicos para qual The Band serviu como banda de apoio e deram aos músicos a primeira e a maior oportunidade, respectivamente. Além deles, uma gama de artistas selecionados para ilustrar a tradição musical americana. Muddy Waters, Neil Young, Joni Mitchell, Dr. John, Bobby Charles, Van Morrison, Neil Diamond, Ringo Starr, Ron Wood e Eric Clapton, além de Allen Toussaint fazendo os arranjos da seção de metais. Adicione a isso leituras de poetas beat e membros dos Hells Angels.
Tudo foi filmado por Martin Scorsese e um grupo de cinematógrafos que incluía Michael Chapman, Vilmos Zsigmond e László Kovacs. Para essa equipe de cineastas, Robertson deu apenas uma referência visual, que ele depois disse não lembrar o motivo: o filme “Sangue de um Poeta”, dirigido por Jean Cocteau.
A influência do filme avant-garde francês foi mais forte no camarim, batizado Cocteau Room. Em sua biografia “This Wheel’s On Fire”, o baterista e vocalista Levon Helm diz que o espaço estava pintado de branco por completo, com pôsteres do nariz de Groucho Marx e mesas de vidro para uma razão que ele discute no livro:
“Cocaína era um negócio muito, muito grande na época. A sala tava sempre cheia de gente batendo gilete na mesa.”
O amplo uso de drogas gerou uma das histórias mais curiosas sobre “The Last Waltz”. Durante a pós-produção, a equipe de Scorsese precisou retirar, por meio de edição de imagem, restos de cocaína do nariz de artistas – principalmente na performance emocionante de “Helpless” feita por Neil Young com o grupo.
Clima de amizade uma ova
Embora a ideia de “The Last Waltz” fosse celebrar a The Band antes de seu fim, não faltaram problemas durante o show. Bob Dylan, cuja performance havia sido uma das principais condições para a Warner financiar o projeto, mudou de ideia sobre filmarem sua participação em cima da hora. Achava que tiraria a graça de “Renaldo e Clara”, longa que havia acabado de dirigir durante a turnê “Rolling Thunder Revue”.
Como Levon Helm conta em sua autobiografia “This Wheel’s On Fire”, foi necessária uma intervenção de Bill Graham para salvar o projeto.
“Cara, tava todo mundo roendo as unhas. Acho que o Bill falou com o Bob pra pensar no nosso bem, no bem da história toda do projeto… Ele tava lá dentro alguns minutos, mas pareceu uma hora quase. Ninguém conseguia acreditar. Faltando uns cinco minutos, veio a palavra que as últimas duas músicas da participação do Bob poderiam ser filmadas, e só as últimas duas. Bill Graham salvou a pátria naquela noite.”
Enquanto isso, a duração do show criava preocupações sobre a possibilidade de cortarem convidados do show. Alguém sugeriu cortar Muddy Waters, algo que gerou protestos e ameaças de violência física de Helm. O bluesman acabou tendo sua participação mantida e, por milagre, filmada.
Um problema com a troca programada de rolos de câmera deixou Martin Scorsese em pânico, apenas para o diretor descobrir depois que László Kovács havia filmado tudo sem problemas. Kovács havia se irritado tanto com as constantes instruções de Scorsese a ponto de deixar de usar o fone de comunicação. Ele não parou de filmar na hora da troca e a performance de “Mannish Boy” foi capturada para a posteridade.
Alguém que teve sua participação reduzida foi o músico Neil Diamond. Carta um tanto fora do baralho, o cantor estar presente no evento já havia sido ponto de discórdia entre os membros antes mesmo do show acontecer. Justificada por Robbie Robertson como o cantor sendo um representante da tradição Tin Pan Alley de composição pop tradicional, na realidade Diamond estava lá porque Robertson havia produzido seu disco “Beautiful Noise” e co-escrito a canção “Dry Your Eyes”, tocada pelo artista no show.
Ao fim do set, Robertson estava aliviado, como relata no livro “Bill Graham Apresenta: Minha Vida Dentro e Fora do Rock”:
“Graças a Deus que a gente conseguiu aguentar tudo isso.”
“The Last Waltz”, o maior concert film já feito
Além de algumas entrevistas com os membros no estúdio do grupo, Shangri-La – incluindo o baixista e vocalista Rick Danko mostrando faixas de sua então inédita estreia solo –, foram filmadas também performances em estúdio de “The Weight”, com participação especial do grupo vocal The Staple Singers, e “Evangeline” com a cantora country Emmylou Harris. A performance de estúdio de “The Weight” acabou substituindo no documentário a versão ao vivo do Winterland Ballroom, tamanha sua qualidade.
Quando “The Last Waltz” saiu em abril de 1978, foi quase imediatamente aclamado como o melhor concert film já feito. O disco que acompanhou o filme chegou ao 16º lugar das paradas americanas, um feito impressionante para um álbum triplo.
Infelizmente, os integrantes se distanciaram entre si a ponto do plano de Robbie Robertson se aposentar da estrada e fracassar na tentativa de continuar a The Band como artistas de estúdio.
Cinco anos depois de “The Last Waltz”, os outros integrantes voltaram à estrada como The Band sem Robbie. Como os anos deixaram claro, o plano por trás do filme não era o desejo coletivo e sim algo que Robertson forçou os colegas a seguir.
Em uma entrevista dada ao livro “Where Are You Now, Bo Diddley? The Artists Who Made Us Rock and Where They Are Now”, Robertson falou sobre esse racha:
“Eu fiz minha grande declaração. Eu fiz o filme, eu fiz o disco triplo sobre isso – e se é pra ser só minha declaração, e não deles, eu aceito isso. Eles estão falando: ‘bem, essa era a viagem dele, não a nossa’. Beleza. Eu fico então com o melhor filme de rock já feito, e faço dele a minha declaração. Não tenho problema algum com isso. Nenhum.”
The Band – “The Last Waltz”
- Gravado durante show no Winterland Ballroom em San Francisco, Estados Unidos, no dia 25 de novembro de 1976;
- Lançado como álbum em 7 de abril de 1978 e como filme em 26 de abril de 1978.
Repertório completo da noite (via Setlist.fm):
- Up on Cripple Creek
- The Shape I’m In
- It Makes No Difference
- Life Is a Carnival
- This Wheel’s on Fire
- The W.S. Walcott Medicine Show
- Georgia (On My Mind) [cover de Hoagy Carmichael and His Orchestra]
- Ophelia [com metais]
- King Harvest (Has Surely Come)
- The Night They Drove Old Dixie Down [com metais]
- Stage Fright
- Rag Mama Rag
- Who Do You Love? [cover de Bo Diddley; com Ronnie Hawkins]
- Such a Night [música de Dr. John; com Dr. John]
- Down South in New Orleans [cover de Johnnie and Jack; com Bobby Charles e Dr. John]
- Mystery Train [cover de Little Junior’s Blue Flames; com Paul Butterfield]
- Caldonia [cover de Louis Jordan and His Tympany Five; com Muddy Waters]
- Mannish Boy [música de Muddy Waters; com Muddy Waters]
- All Our Past Times [música de Eric Clapton; com Eric Clapton]
- Farther Up the Road [cover de Bobby “Blue” Bland; com Eric Clapton]
- Helpless [música de Crosby, Stills, Nash & Young; com Neil Young, Joni Mitchell nos backing vocals]
- Four Strong Winds [cover de Ian & Sylvia; com Neil Young)
- Coyote [música de Joni Mitchell; com Joni Mitchell]
- Shadows and Light [música de Joni Mitchell; com Joni Mitchell]
- Furry Sings the Blues [música de Joni Mitchell; com Joni Mitchell]
- Dry Your Eyes [música de Neil Diamond; com Neil Diamond]
- Too-Ra-Loo-Ra-Loo-Ral (That’s an Irish Lullaby) [cover de James Royce Shannon; com Van Morrison]
- Caravan [música de Van Morrison; com Van Morrison]
- Acadian Driftwood [com Joni Mitchell e Neil Young]
- The Genetic Method [solo de órgão de Garth Hudson]
- Chest Fever
- Evangeline
- The Weight
- Baby, Let Me Follow You Down [cover de Eric Von Schmidt; com Bob Dylan]
- Hazel [música de Bob Dylan; com Bob Dylan]
- I Don’t Believe You (She Acts Like We Never Have Met) [música de Bob Dylan; com Bob Dylan]
- Forever Young [música de Bob Dylan; com Bob Dylan]
- Baby, Let Me Follow You Down
[cover de Eric Von Schmidt; com Bob Dylan]
Bis 1: - I Shall Be Released [música de Bob Dylan; com Bob Dylan, Ron Wood, Ringo Starr e todos os convidados anteriores]
Bis 2: - Jam #1 [com Neil Young, Ron Wood, Eric Clapton, Dr. John e Paul Butterfield; Richard Manuel não toca]
- Jam #2 [com Stephen Stills, Carl Radle, Neil Young, Ron Wood, Eric Clapton, Dr. John e Paul Butterfield; Robbie Robertson, Rick Danko e Richard Manuel não tocam]
Bis 3: - Baby Don’t You Do It [cover de Marvin Gaye]
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Parabéns, Pedro Hollanda! Belo texto sobre A Última Valsa, documentário simplesmente espetacular de Martin Scorsese de uma das mais genuínas bandas de rock and roll de todos os tempos. Mais que bem vinda surpresa. Valeu!