Como o Mötley Crüe ficou sóbrio e conseguiu soar tão bem em “Dr. Feelgood”

Com Bob Rock no comando e todo mundo pegando leve na farra, banda lançou sua obra-prima antes de perder o vocalista Vince Neil

O baixista Nikki Sixx costuma dizer que se o Mötley Crüe era a banda número 2 dos Estados Unidos em 1987, em 1989, graças ao álbum “Dr. Feelgood”, tornou-se a número um.

A afirmação baseada nas paradas do país, já que “Girls, Girls, Girls” (1987), disco anterior a “Dr. Feelgood”, atingiu a segunda posição do chart Billboard 200. O almejado primeiro lugar só veio em 1989, com o álbum que muitos consideram a obra-prima da banda.

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Música, claro, não é uma competição. Neste caso, “apesar” do segundo lugar, “Girls, Girls, Girls” fez enorme sucesso – em um curioso contraste com o momento de baixa na vida pessoal dos integrantes do Mötley Crüe.

Em 1987, todos estavam com problemas relacionados a drogas e álcool. O guitarrista Mick Mars abandonou os vícios sozinho, mas os outros três músicos – Nikki Sixx, o vocalista Vince Neil e o baterista Tommy Lee – precisaram recorrer a clínicas de reabilitação.

A desintoxicação fez com que o Crüe voltasse à antiga forma, como disse Sixx em entrevista para a Billboard:

“Isso quase nos fez voltar a ser como quando éramos uma banda de pequenas casas noturnas, lutando por um pouco de notoriedade na Sunset Strip. Éramos uma gangue de novo, não éramos só uma banda de rock. Falávamos no telefone todo dia, ou estávamos ensaiando. Tenho memórias realmente boas (da época).”

Moldando o som

Sóbrios – ao menos na medida do possível e naquele momento em especial –, os músicos começaram a trabalhar em um álbum que deveria suceder e ser tão bom quanto “Girls, Girls, Girls”. Aliás, dá para dizer que a ideia era fazer um trabalho melhor, já que os próprios integrantes reconhecem que, apesar de hits como “Wild Side” e a faixa-título, não estavam tão inspirados no registro de 1987.

De certo modo, “Dr. Feelgood” segue um pouco a linha do próprio “Girls, Girls, Girls” e de “Theatre of Pain” (1985), álbuns que soavam mais hard rock e menos pesados do que os primeiros da discografia. Houve, porém, duas diferenças notórias.

A primeira esteve no envolvimento de Bob Rock, em seu primeiro trabalho produzindo o Mötley Crüe. O profissional entendia que o grupo precisava soar de uma forma distinta, até pelo momento – em 1989, havia muitas, mas muitas bandas tocando hard rock.

Em entrevista para o site Puremix, Rock explicou que o que chamou sua atenção no Crüe não foi a técnica musical, mas, sim, a atitude.

“Com o Mötley Crüe, por exemplo… eu os conhecia e tinha ouvido seus discos, mas o que realmente me pegou foi quando eu me reuni com eles e pude sentir que eles achavam que eram a melhor banda do mundo – e, para mim, essa é a coisa mais importante. Não era falso.”

A segunda diferença é que, mais inspirados e menos derrotados, os músicos fizeram melhores composições. A parte autoral é capitaneada por Nikki Sixx, como de costume, mas Mick Mars colaborou com oito das 10 faixas (11, se considerarmos a abertura de 42 segundos).

Falando à Billboard, o baixista relembrou o processo de composição e gravação das demos, que funcionou muito bem:

“Nós íamos para o estúdio de ensaio, como nos velhos tempos, e ensaiávamos essas músicas. Então íamos para um estúdio chamado Cornerstone. Eu e Tommy fazíamos o papel do produtor e tinha um engenheiro de som lá.

Nós produzíamos as canções como demos, e amávamos fazer demos, porque a ideia com a demo é: qualquer coisa serve. Era tipo: não temos 100% de certeza sobre essa música, mas vamos gravá-la como demo mesmo assim; tenho outra que acho que vai ser um hit e também vou gravá-la.

Mais tarde, você descobre que a música que você não gostou é a mais forte daquela sessão de gravação. E aquela que você achava incrível acaba não rolando no estúdio de gravação.”

Em estúdio, porém, a coisa azedou um pouco, já que Bob Rock era muito exigente. O produtor foi trazido após fazer bons trabalhos com nomes do porte de The Cult e Kingdom Come, mas buscava sempre extrair o melhor dos músicos – que, por vezes, se irritavam com a situação.

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No livro biográfico “The Dirt”, Nikki Sixx relembrou:

“Nada era bom o bastante (para Bob). Mick gravou todas as guitarras de ‘Shout at the Devil’ (1983) em duas semanas, mas agora Bob Rock o fazia gastar duas semanas dobrando uma única linha de guitarra repetidas vezes até que estivesse em perfeita sincronia. Embora o processo irritasse e frustrasse Mick, foi muito mais fácil para ele do que para Vince, que, em alguns dias, só saía com uma única palavra gravada que fosse do agrado de Bob.”

Mas era disso que o Mötley Crüe precisava. Ao dar play no álbum, entende-se rapidamente o porquê.

“Dr. Feelgood” faixa a faixa

A abertura “TNT (Terror ‘n Tinseltown)” é uma anti-prévia. Soa como se o disco ainda tivesse a fraca produção do álbum anterior. Por sorte, a faixa-título “Dr. Feelgood” muda essa percepção. Além de ser muito bem construída, a música apresenta timbres vívidos e certo peso que transita entre hard rock e heavy metal.

“Slice of Your Pie”, na sequência, começa com um violão malandro, mas descamba para um hard levemente blueseiro, com bom groove e performance acima da média de Vince Neil e Mick Mars. A pegada bluesy ganha uma acelerada em “Rattlesnake Shake”, com todos os clichês que o hard rock permitia à época, ainda que com acréscimos estratégicos de metais e até apitos (!).

O miolo do álbum tem o seu ponto mais alto e mais baixo. O auge é “Kickstart My Heart”, com uma letra que relata a experiência de Nikki Sixx ao ser revivido pelos médicos após a overdose de heroína que sofreu em 1987. A faixa é arena rock em sua mais pura definição, com todos os integrantes tendo seus momentos de destaque.

A pior parte vem logo depois, com a terrível balada “Without You”. Enjoativa, arrastada e sem o perfil do Crüe, a canção está deslocada nesse disco. Há quem goste – até atingiu o top 10 de singles dos Estados Unidos –, mas nunca me convenceu.

“Same ol’ Situation (S.O.S.)” resgata a pegada arena rock de “Kickstart My Heart” e mostra como a produção de Bob Rock faz a diferença. Em outros tempos, essa faixa soaria vazia demais ou pesada além da conta. Bastou acrescentar mais pistas de guitarra para resolver a situação.

“Sticky Sweet” é quase um tributo ao Aerosmith, da pegada típica à própria participação de Steven Tyler nos backing vocals. “She Goes Down”, com maior densidade, volta a trazer um instrumental de destaque. Daria para ouvir essa música, tranquilamente, sem a voz de Vince Neil – não por ele estar mal, mas pelos outros três mandarem muito bem aqui.

“Don’t Go Away Mad (Just Go Away)” é a única boa balada do disco, mas compensa em vários sentidos. É o tipo de faixa que tem a cara do “Crüe sóbrio”: os quatro integrantes em seu auge técnico e criativo, impulsionados por uma produção que parece unir duas músicas em uma.

Infelizmente, o encerramento do álbum fica a cargo da balada “Time for Change”, uma faixa que não chega a ser ruim, mas é, certamente, morna. Contudo, é interessante perceber que a letra, anunciando mudanças, funciona quase como um prenúncio para o Mötley e para aquele movimento do rock oitentista.

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Do auge ao racha

Evidentemente, “Time for Change” não fala sobre mudanças no Mötley Crüe ou na cena hard rock oitentista. Em tempos de fim da União Soviética, a composição traz um contexto social raro nas canções da banda, ainda que raso.

Ainda assim, a tal mudança rolou com todas aquelas bandas de hard rock da década de 1980 e não poupou o Crüe. “Dr. Feelgood” fez enorme sucesso e a turnê reforçou esse êxito, mas conflitos internos provocaram a saída de Vince Neil algum tempo depois, em 1992.

Antes, a banda desfrutou do sucesso proporcionado por aquele disco. Além do álbum ter chegado ao topo das paradas americanas e no top 10 de outros oito países – incluindo Reino Unido, Austrália e Canadá -, os singles emplacaram nas rádios e em charts específicos.

A faixa-título, em especial, atingiu o sexto lugar do ranking dos Estados Unidos, enquanto “Without You” chegou à oitava colocação. “Kickstart My Heart”, “Don’t Go Away Mad (Just Go Away)” e “Same Ol’ Situation (S.O.S.)” também foram promovidas como compactos.

A turnê de divulgação contou com mais de 160 shows realizados em 10 meses, girando pela América do Norte, Europa e Ásia. No livro “The Dirt”, Tommy Lee relembra que o ritmo cansativo de apresentações ajudou a banda a rachar internamente.

“A turnê começou como um sonho maravilhoso. […] Estávamos na capa de todas as revistas e o nosso show era gigantesco, com um equipamento que enchia dezenas de caminhões. […] As multidões eram insanas, sabiam cada verso, cada acorde, cada batida de cada álbum. E, pela primeira vez, estávamos sóbrios o suficiente para apreciar isso. E casados o suficiente.

[…] Porém, o outono virou inverno, que virou primavera, que virou verão e nós ainda estávamos na estrada sem previsão de parar. […] Depois de um tempo, não importava mais quanto dinheiro ganhávamos ou por quantas semanas o álbum ficou no Top 40, nós simplesmente não aguentávamos mais vestir aquelas calças de couro de novo noite após noite.”

Ao fim da turnê, o quarteto ainda chegou a produzir algumas faixas inéditas para a coletânea “Decade of Decadence” – todas elas na pegada de “Dr. Feelgood”, o que indicava como o álbum de 1989 poderia se tornar um modelo a ser seguido pelo grupo.

Com a saída de Neil, o Mötley seguiu com John Corabi no vocal e mudou seu caminho ao produzir o álbum homônimo, de 1994, novamente com Bob Rock. O disco é ótimo, mas nada tem a ver com seu antecessor. Além disso, levou 5 anos para ser divulgado – e saiu justamente quando o grunge e o rock alternativo dominavam as paradas.

Vince acabou por retornar em 1997 ao Crüe, que viveu bons e maus momentos enquanto banda. O sucesso conquistado com “Dr. Feelgood” não se repetiu, o que torna esse álbum, ainda mais, uma peça rara na discografia do grupo.

Mötley Crüe – “Dr. Feelgood”

  1. “T.n.T. (Terror ‘n Tinseltown)”
  2. “Dr. Feelgood”
  3. “Slice of Your Pie”
  4. “Rattlesnake Shake”
  5. “Kickstart My Heart”
  6. “Without You”
  7. “Same Ol’ Situation (S.O.S.)”
  8. “Sticky Sweet”
  9. “She Goes Down”
  10. “Don’t Go Away Mad (Just Go Away)”
  11. “Time for Change”

* Texto desenvolvido em parceria por André Luiz Fernandes e Igor Miranda. Pauta, redação e edição geral por Igor Miranda; redação complementar por André Luiz Fernandes.

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Igor Miranda
Igor Miranda
Igor Miranda é jornalista formado pela Universidade Federal de Uberlândia (UFU), com pós-graduação em Jornalismo Digital. Escreve sobre música desde 2007. Além de editar este site, é colaborador da Rolling Stone Brasil. Trabalhou para veículos como Whiplash.Net, portal Cifras, revista Guitarload, jornal Correio de Uberlândia, entre outros. Instagram, Twitter e Facebook: @igormirandasite.

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