O cantor Bruce Springsteen e a E Street Band lançaram o novo álbum de estúdio ‘Letter To You‘. O disco, que chega a público pela Columbia Records, é o 20° da carreira de Springsteen, que alterna lançamentos com sua banda de apoio e em carreira solo – o anterior, ‘Western Stars‘ (2019), foi feito apenas por ele.
Gravado no estúdio caseiro de Springsteen, em Nova Jersey, ‘Letter To You’ traz 12 faixas ao todo. Em nota, o músico comentou que o disco foi concluído em menos de uma semana, em novembro de 2019 – ou seja, antes da pandemia do novo coronavírus. Tudo foi gravado ao vivo, em um formato que não era adotado desde ‘Born in the U.S.A.’ (1984).
“Adoro o som da E Street Band tocando completamente ao vivo no estúdio, de uma maneira que nunca fizemos antes, e sem overdubs. Fizemos o álbum em apenas 5 dias e acabou sendo uma das melhores experiências de gravação que já tive.”
Das 12 músicas do álbum, nove foram criadas recentemente por Springsteen. As outras três são composições inéditas da década de 70: ‘Janey Needs a Shooter’, ‘If I Was the Priest’ e ‘Song for Orphans’, que foram feitas para seu álbum de estreia, ‘Greetings from Asbury Park, N.J.’ (1973), mas ficaram de fora da tracklist final.
A formação da E Street Band traz Roy Bittan, Nils Lofgren, Patti Scialfa, Garry Tallent, Stevie Van Zandt, Max Weinberg, Charlie Giordano e Jake Clemons. O álbum foi produzido por Ron Aniello com Springsteen, mixado por Bob Clearmountain e masterizado por Bob Ludwig.
Ouça ‘Letter To You’ abaixo, via Spotify ou YouTube (playlist). A resenha está disponível a seguir.
‘Letter To You’ acerta ao unir reflexão e diversão
“Não posso falar por Bruce, mas […] temos um governo (nos Estados Unidos) se gabando de colocar bebês em jaulas. O que posso dizer que eles próprios não estejam dizendo? Talvez a coisa mais útil que podemos fazer agora é tentar usar a música como o terreno comum”. Essa foi a explicação do guitarrista Steven Van Zandt ao apontamento de que ‘Letter To You’ não traz tantas letras sobre política, diferentemente de outros trabalhos de Bruce Springsteen.
Evidentemente, o Boss não tem obrigação de abordar esse tema em todos os álbuns. E não dá para dizer que ‘Letter To You’ não trate do assunto em nenhum momento. Entretanto, o novo disco de Bruce Springsteen e sua E Street Band adota um clima mais ameno.
Ok, não tão ameno assim. Springsteen apresenta diversas reflexões sobre seu futuro – que, ele já sabe, não deve contar com tantos anos assim. O músico tem 71 anos e já deixou claro que quer aproveitar o restante de sua vida fazendo o que sempre fez: música. Seja nos palcos ou em estúdio, The Boss quer se manter produtivo. Agradecemos.
Diante disso, não há problema em constatar que ‘Letter To You’ não é um dos momentos mais ousados de Bruce Springsteen, especialmente após a inevitável comparação com alguns de seus clássicos do passado.
Isso poderia colocá-lo em situação de “dívida” com os fãs, já que ‘High Hopes’, seu registro anterior com a E Street Band, também não surpreende, por trazer covers, canções que ficaram fora de outros discos ou mesmo regravações de faixas antigas. Poderia. Ainda assim, não é o caso.
Não se espera que um artista de 71 anos, que já vendeu mais de 150 milhões de discos, reinvente a roda (de novo). ‘Letter To You’ acerta ao retratar Springsteen não só elucidando sobre o momento atual de sua vida, como, também, ao trazê-lo se divertindo com seus amigos de banda. As letras, sempre bem escritas, vão direto ao ponto, enquanto os arranjos e melodias, apesar da elegância de sempre, não são muito elaboradas – o álbum, vale reforçar, foi gravado em 5 dias, em formato ao vivo.
Um dos grandes destaques do álbum está logo em seu começo. ‘One Minute You’re Here‘, uma balada típica e introspectiva, foge dos padrões para uma primeira faixa e surpreende de forma positiva. A letra homenageia alguns de seus amigos que já se foram: os músicos Clarence Clemons, George Theiss e Danny Federici, que tocaram com Springsteen, e o assistente de longa data Terry Magovern.
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A faixa-título ‘Letter To You‘ adquire outro tom: é quase como uma dedicatória aos fãs que acompanham Bruce. Trata-se de uma típica música “rádio rock”, de fácil digestão e instrumental preciso. ‘Burnin’ Train‘, na sequência, contagia por seu astral e remete aos melhores momentos de ‘Born to Run’.
Uma das três composições dos anos 70 resgatadas para este álbum, ‘Janey Needs A Shooter‘ não surpreende tanto, nem carrega muito da essência autoral de Springsteen em seus “early days”. Como ponto positivo, a faixa apresenta a essência musical contemporânea do Boss. Por outro lado, ‘Last Man Standing‘, que vem em seguida, é uma das canções mais pessoais do músico. Reflete sobre passado e presente de forma assertiva e traz boa construção melódica.
O momento mais fraco de ‘Letter To You’ está em seu miolo, nas músicas ‘The Power of Prayer‘ e ‘House of a Thousand Guitars‘. Ambas abusam da reprodução de uma mesma linha melódica, seja em voz ou instrumentais. ‘Rainmaker‘ ficou a cargo de retomar o padrão de qualidade. O tom pessimista da letra, uma evidente crítica social, forma um contraste interessante com as harmonias, que, pelo contrário, não têm nada de obscuras.
Outra música resgatada da década de 70, ‘If I Was The Priest‘ aposta num storytelling construído antes mesmo deste termo chique em inglês virar tendência. É o momento mais Bob Dylan do álbum. ‘Ghosts‘, divulgada como single antes do álbum sair, tem cara de “hino arena rock”. Dá para prever que vai funcionar muito bem nos longos e homéricos shows de Springsteen.
Das três que vieram dos anos 70, ‘Song for Orphans‘ é a que mais carrega a estética daqueles tempos, seja em sua construção, seja na forma dos instrumentos serem tocados e timbrados. Um dos destaques da tracklist. Por fim, há ‘I’ll See You In My Dreams‘, que não foi posicionada como a última música do álbum à toa. A letra soa como despedida, mas a música, com direito a alguns momentos eletrizantes da bateria de Max Weinberg, mostram que ainda há muita lenha para se queimar.
A sensação geral passada por ‘Letter To You’ é que, sim, Bruce Springsteen pensa muito sobre o fim de sua vida. O documentário de mesmo título do álbum – que já foi lançado, mas ainda não tive a oportunidade de assistir – parece, conforme diversos relatos, refletir sobre esse tópico de forma ainda mais intensa.
Tudo isso deixa as letras um pouco mais carregadas e traz um conceito que amarra as composições, ainda que o álbum esteja longe de ser conceitual. Como algumas músicas caem em “lugares comuns” vez ou outra, a parte lírica é o que mais ajuda a dar “liga” e trazer valor ao material em meio à opção de não abordar temas sociais e políticos.
É curioso notar que o disco começa e termina muito bem. A parte central da tracklist tem seus altos e baixos – ao que tudo indica, reflexos de um processo tão rápido de gravação -, mas nada que afete a qualidade da audição.
Apesar do tom adotado nas letras, é difícil imaginar ‘Letter To You’ como um trabalho de despedida de Bruce Springsteen, a menos que algo extraordinário aconteça. O Boss tem mostrado, a cada ano, que o tempo passa como vinho para ele.
Está claro que este álbum foi feito em caráter de diversão. São velhos amigos curtindo e fazendo o que sabem fazer de melhor. A decisão em não incorporar críticas sociais às letras parece, inclusive, ter ligação com isso.
Ciente de tudo isso, é possível concluir que, ainda que não seja um dos melhores trabalhos de Springsteen, ‘Letter To You’ consegue refletir o ambiente lúdico em que foi produzido. Traz muitos momentos de classe e mesmo com sua quase uma hora de duração, sua audição flui facilmente. Um prato cheio para os fãs de The Boss.
‘Letter To You’ está representado em minha playlist de lançamentos, atualizada semanalmente. Siga e dê o play:
Bruce Springsteen – ‘Letter To You’
1. One Minute You’re Here
2. Letter To You
3. Burnin’ Train
4. Janey Needs A Shooter
5. Last Man Standing
6. The Power Of Prayer
7. House Of A Thousand Guitars
8. Rainmaker
9. If I Was The Priest
10. Ghosts
11. Song For Orphans
12. I’ll See You In My Dreams