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Como “Kid A”, do Radiohead, reinventou a linguagem do rock para o século 21

Grupo britânico redefiniu como artistas de rock incorporavam elementos de música eletrônica e outros gêneros à sua sonoridade

Em menos de cinco anos, Radiohead passou de one-hit wonder para alternas cabeçudos e então salvadores do rock. OK Computer (1997) foi imediatamente saudado por público e crítica como uma obra prima do gênero, capaz de traduzir ansiedades de fim de século da sociedade em sons nunca antes ouvidos.

O sucesso quase destruiu o grupo. Não por causa de drogas ou brigas internas, mas pela desumanização trazida pela celebridade e, acima de qualquer coisa, a pressão de produzir um sucessor à altura.

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O resultado? Os integrantes se despiram de qualquer pretensão rock e começaram a desconstruir seu som. Mergulharam de cabeça em música eletrônica, aprenderam novos instrumentos e desenvolveram técnicas alternativas para usar guitarras.

O processo foi árduo. Entretanto, o impacto perdura até hoje.

Vamos falar de “Kid A”.

Conhecer pessoas é fácil

Apesar de ser considerado hoje um dos maiores álbuns da história do rock, o lançamento de “OK Computer” foi marcado por incertezas. O Radiohead se arriscou mais que nunca na sonoridade do trabalho, e apesar da gravadora investir pesado na publicidade do disco, isso era mais pela tendência ascendente criada por “The Bends” (1995), lançamento anterior da banda.

Quando o disco finalmente saiu e fez sucesso, o estresse da incerteza acabou substituído por outro tipo. Isso porque o problema de lançar algo considerado por muitos uma obra-prima do rock — e que ainda por cima vende extremamente bem — é o fato de todo mundo agora querer te conhecer pessoalmente. Junte isso à gravadora lhe incentivar (leia-se “praticamente forçar”) a dar tempo a toda essa gente, pois o material pode sempre vender mais.

“Tempo para todo mundo” significa “pouco tempo para todo mundo”. Então, o Radiohead se encontrou num estado constante de conhecer pessoas e fazer conversa fiada. A maratona promocional de “OK Computer” foi registrada no documentário “Meeting People is Easy”, dirigido por Grant Gee.

O longa de 90 minutos mostrou a sucessão interminável de entrevistas, eventos promocionais e muitos momentos maçantes em meio a aparições lendárias. O grupo foi headliner do festival de Glastonbury em 1997, numa performance que, apesar de marcada por problemas técnicos, entrou para a história do evento. Entretanto, ao fim da turnê, os integrantes estavam passando por um desgaste extremo, principalmente o vocalista Thom Yorke.

Numa entrevista para a Spin em 2003, o baixista Colin Greenwood descreveu a experiência de ver o amigo definhar na sua frente. Ele disse:

“Não há nada pior do que tocar na frente de 20 mil pessoas quando alguém – Thom – absolutamente não quer estar lá, e dá pra ver aquele olhar ausente nele. Você odeia fazer seu amigo passar por aquilo. Você se pergunta como chegou àquele ponto.”

Durante esse período, duas novas músicas começaram a aparecer nas setlists do grupo. Uma, inicialmente chamada “Big Ideas”, viria a ser lançada no álbum “In Rainbows” (2007) sob o nome “Nude”. A outra era um reflexo do estado mental frágil de Thom Yorke.

“How to Disappear Completely” teve sua inspiração inicial num sonho do frontman antes de um show do Radiohead em Dublin, no qual ele era perseguido por uma onda gigante no rio Liffey, que corta a capital irlandesa. Para a mensagem principal da canção, Yorke se inspirou num conselho dado por uma de suas maiores inspirações musicais.

Em entrevista à Rolling Stone em 2000, o vocalista do Radiohead descreveu a lição oferecida por Michael Stipe, frontman do R.E.M. Ele disse:

“A letra veio de algo que Michael Stipe me disse. Eu liguei para ele e falei: ‘Não consigo lidar com nada disso’. E ele falou: ‘Feche as cortinas e repita para si: ‘Não estou aqui, isso não está acontecendo’.’”

Apesar de haver duas canções, em 1998 ninguém tinha a menor ideia de como seria o sucessor de “OK Computer”. Uma coisa que a banda sabia, contudo, era algo compartilhado pelo guitarrista Ed O’Brien ao autor Mac Randall no livro “Exit Music – The Story of Radiohead”. Ele falou:

“Pessoas subestimam o que o grande público é capaz de escutar. Tudo é tão formatado, não apenas nos Estados Unidos, mas no resto do planeta também, e o que acontece é que a galera do rádio tem medo de ser pró-ativa. Tem muita música boa por aí que nunca toca no rádio. Não é além da capacidade do público. Pessoas entendem. Nós somos pessoas fazendo isso, outras pessoas são capazes de entender. Precisamos apenas transcender essas amarras, particularmente comerciais. Pessoas precisam ser mais corajosas.”

Marasmo do Radiohead

Quando o Radiohead se reuniu para começar os trabalhos do sucessor de “OK Computer”, ao final de 1998, o consenso entre os integrantes era que a banda precisava se afastar da sonoridade do álbum anterior. O problema era a direção a ser seguida.

Ed O’Brien detestou as comparações ao rock progressivo e queria fazer algo mais melódico e enxuto. Thom Yorke, por sua vez, estava farto de melodia e só tinha interesse por ritmo. 

O frontman desenvolveu um gosto por artistas eletrônicos como Aphex Twin e Autechre, expoentes do que era chamado (quase pejorativamente) de Intelligent Dance Music, ou IDM. O subgênero fazia uso de programações inovadoras e softwares de conversão visual para criar batidas antes consideradas impossíveis com sintetizadores e baterias eletrônicas tradicionais. Esses produtores abraçavam os sons bizarros da era digital, fossem jogos carregando ou até o barulho do modem conectando à internet. Viam música onde a maioria via apenas barulho.

As primeiras sessões, em Paris, foram um desastre. A segunda tentativa, em Copenhague, também deu em nada. A maior parte das ideias trazidas por Yorke eram na forma de batidas eletrônicas, difíceis de serem traduzidas para o contexto de uma banda com três guitarristas. 

A fascinação de Yorke por música eletrônica podia parecer a outros como afetação, mas surgiu como uma luz ao fim do túnel. Em entrevista de 2000 à Q Magazine (via Citizen Insane), o frontman falou sobre seu estado criativo ao final de 1998:

“Eu achei que estava enlouquecendo. Toda vez que eu pegava uma guitarra ficava horrorizado. Começava a compor uma canção e parava após 16 compassos, escondia numa gaveta, olhava de novo, rasgava tudo e destruía… Eu estava afundando.”

Ele continuou:

“Eu achei que a gente tinha perdido o bonde. A primeira coisa que fiz após a turnê foi comprar o catálogo completo da Warp Records (lendário selo britânico de música eletrônica). Comecei a ouvir John Peel e encomendar discos online. Era legal porque a música era toda de estruturas e não havia vozes humanas. Mas eu me sentia tão emocionalmente investido nisso quanto me senti por guitarras.”

A lógica de Yorke durante esse período era simplesmente produzir qualquer tipo de ideia, sem ter algo sólido sobre como deveria ser utilizada mais à frente. O problema é que os outros integrantes ficaram bem confusos não só com o método de trabalho, mas também com seus papéis no grupo.

Até ali, o frontman era o principal compositor a um nível de aparecer com músicas mais ou menos prontas. As contribuições dos outros membros eram no arranjo. Agora, eram esperados que ajudassem muito mais no processo, e de uma maneira completamente diferente do formato rock tradicional.

Quando a banda montou uma base temporária em Gloucestershire, a quantidade de desavenças sobre a inabilidade do grupo de avançar qualquer ideia fez necessária uma pausa quase imediata nos trabalhos. Em entrevista ao The New Yorker em 2001, o produtor Nigel Godrich descreveu o ambiente:

“Teve muito bate-boca. Pessoas pararam de se falar. ‘Insanidade’ é a palavra certa.”

O Radiohead quase terminou. Quase dois anos após lançarem um dos discos definitivos dos anos 90, se livrarem definitivamente da fama de one-hit wonder e se tornarem super estrelas do rock, eles consideraram seriamente se separar.

Em entrevista à Spin (via Citizen Insane) no ano de 2000, Ed O’Brien resumiu a situação:

“As sessões iniciais de ‘Kid A’ quase acabaram com a banda. A gente precisou pensar muito se queríamos continuar. Pra mim, pelo menos, foi uma questão de amadurecimento. Se tinha uma troca a ser feita, meu limite era que não estava disposto a me tornar um babaca pelo bem da música. Então tivemos uma reunião na qual havia um medo geral que ninguém queria falar sobre. Estávamos super sérios. Digo, porque não sair por cima? Mas a gente se conhece há 15 anos, e estávamos chegando ao ponto que podemos fazer as coisas como queremos. Então foi uma questão de pensar: ‘Nós vamos cometer erros, mas vamos manter a calma’.”

Recomeço

No fim das contas, o Radiohead continuou, mas as sessões seguiram se arrastando. O baterista Phil Selway teve seu primeiro filho, enquanto Thom Yorke se envolveu com protestos antiglobalização e com a causa de convencer líderes mundiais a perdoar a dívida do chamado Terceiro Mundo. Em meio a tudo isso, ele continuava a produzir material novo e nada tomava forma. Ideias eram sujeitas a dúzias de arranjos diferentes e nenhum parecia certo.

No final do verão inglês, contudo, uma oportunidade de recomeçar do zero apareceu. As sessões iniciais foram dispersas por problemas logísticos. Com o sucesso de “OK Computer”, os integrantes resolveram comprar um celeiro em Oxfordshire, terra natal da banda, e convertê-lo para um estúdio. A ideia era ter um espaço só deles no qual poderiam gravar tudo que tocavam para editar depois, tal qual o cinema abandonado em Colônia feito lendário pelo grupo experimental alemão Can.

As obras demoraram além do esperado, mas agora que estava pronto, peças começaram a entrar no lugar. Ao longo desses seis meses, os integrantes se acostumaram mais com a ideia de incorporar sintetizadores, programadores e equipamentos eletrônicos ao processo. Além disso, Ed O’Brien e Jonny Greenwood resolveram expandir suas paletas musicais além da guitarra tradicional.

O’Brien foi atrás de sustainers, um captador de guitarra capaz de estimular as cordas e criar notas infinitas. The Edge havia usado isso em “With or Without You”, do U2, na forma de um instrumento do próprio criador da tecnologia, o canadense Michael Brook. Entretanto, Ed precisou que a companhia japonesa Fernandes desenvolvesse uma versão de mercado para poder colocar um na sua Stratocaster Signature Eric Clapton e começar a trabalhar criando loops de ambiência e texturas.

Seu companheiro de guitarras, por sua vez, buscou inspiração em outros instrumentos. Em especial, Greenwood aprendeu a tocar o Ondes Martenot, um proto-sintetizador criado em 1928 pelo músico Maurice Martenot e popularizado pelo compositor francês Olivier Messiaen, um dos heróis do guitarrista. O uso mais famoso na cultura pop, contudo, ocorreu em algo inusitado: o tema da série original de “Jornada nas Estrelas”.

Outro avanço que ocorreu foi no amadurecimento dos integrantes com relação à posição deles no grupo. “Everything in Its Right Place”, uma música trabalhada desde as sessões iniciais, ganhou a forma conhecida pelo público durante o período em Gloucestershire. Thom Yorke e Nigel Godrich fizeram um arranjo esparso baseado em um sintetizador Prophet-5, e passaram os vocais por scrubbing no Pro Tools. A ferramenta normalmente era usada ouvir partes de um arquivo de áudio, mas os dois encontraram um jeito de usá-la para manipular a voz de um jeito que adquirisse uma qualidade inumana, tal qual os discos da Warp Records.

Em entrevista de 2000 à rádio inglesa XFM (transcrição via Citizen Insane), Ed O’Brien lembrou da sensação de ouvir a canção pela primeira vez e como ajudou ele a perceber que ficar de fora de uma faixa não era o fim do mundo. Ele disse:

“Meio que forçou a mão de todo mundo, imediatamente! E estar genuinamente alegre de estar trabalhando por seis meses nesse disco e algo ótimo finalmente saiu disso, e você não contribuiu para aquilo, é uma sensação libertadora.”

“Everything in Its Right Place” foi o ponto de partida para os trabalhos subsequentes e ficou acordado logo após o surgimento do arranjo definitivo que seria a faixa de abertura do álbum. O encerramento também ficou fixo com “Motion Picture Soundtrack”, uma canção que existia de uma forma ou outra desde antes mesmo da composição de “Creep”, em 1993. Thom Yorke criou uma versão inspirada por Tom Waits e trilhas sonoras da Disney dos anos 1950. Entre essas duas, tudo estava aberto.

O futuro da música

As sessões em Oxfordshire se tornaram um terreno fértil para experimentação, com os integrantes incorporando influências além da mistura de rock e eletrônica inicial. Começaram a aparecer elementos de jazz, hip-hop, krautrock e música clássica. A banda estava confortável para explorar.

Jonny Greenwood pegou “How to Disappear Completely”, praticamente descartada por Yorke por soar demais como o Radiohead de antes, e criou um arranjo orquestral influenciado por Messiaen e o compositor polonês Krzysztof Penderecki. O guitarrista recrutou uma orquestra com experiência de tocar obras de ambos os artistas e incentivou a improvisação — especialmente porque algumas das partes eram quase impossíveis de tocar.

Além disso, o músico desenvolveu ele mesmo uma improvisação de 50 minutos construída com sintetizador modular e entregou para Thom Yorke ver se tinha algo a contribuir. O vocalista recortou um pedaço de 40 segundos dessa peça enorme e construiu uma base instrumental para o que viria a ser “Idioteque”. A letra viria de recortes retirados a esmo de cadernos, inspirados em parte por dadaísmo, parte por outra influência tão fundamental do Radiohead a ponto da banda tirar o próprio nome de uma de suas canções: Talking Heads.

Em entrevista de 2001 ao site The Wire, Thom Yorke creditou a influência de “Remain in Light”, álbum de 1980 do Talking Heads, pela inspiração criativa por trás das composições. Ele disse:

“Quando eles fizeram aquele disco, não tinham canções fixas, eles só compunham enquanto iam. [David] Byrne aparecia com páginas e páginas de letras, pegava coisas de tudo quanto era lugar e adicionava coisas o tempo inteiro. E foi exatamente assim que eu abordei o processo em ‘Kid A’.”

O próprio nome “Kid A” é uma amostra dessa abordagem, pois veio de um arquivo num dos sequenciadores de Yorke. O vocalista falou sobre a escolha em entrevista de 2000 ao The Observer:

“Normalmente, se você dá um nome específico, meio que direciona o álbum. Eu gosto do não-significado. Todo tipo de coisa bizarra aparece relacionada a isso. Mas a que eu mais gostei foi baseada na ideia que, em algum lugar, algum cientista já criou o primeiro bebê completamente geneticamente clonado – Kid A. Tenho certeza que ocorreu. Tenho certeza que já fizeram, apesar de ser ilegal agora.”

Ao final de 1999, o problema agora era que eles tinham canções demais em estágios avançados. A tal ponto de serem capazes de lançar outro álbum baseado nas sessões, “Amnesiac”, meses depois de “Kid A”.

Como uma reação ao estresse da turnê promocional de “OK Computer”, o Radiohead decidiu conceder poucas entrevistas para divulgar o novo álbum. Também não haveria singles oficiais. Em vez de videoclipes, o grupo produziu pequenas animações de JavaScript chamadas iBlips, que podiam ser incorporadas ao design de sites.

Entretanto, o elemento mais importante para construir antecipação para o lançamento do álbum envolveu o maior bicho papão da indústria musical na época. Três semanas antes de sair, “Kid A” vazou inteiro no Napster. A banda não ficou irritada com isso.

Thom Yorke até elogiou publicamente o serviço de compartilhamento de arquivos numa entrevista à revista Time. Ele disse:

“O que é legal sobre o Napster é que encoraja pirataria, encoraja entusiasmo por música de um jeito que a indústria musical esqueceu como se faz. Acho que qualquer um criticando essa porra… a porra toda é maravilhosa, ao meu ver.”

“Kid A” foi lançado no dia 2 de outubro de 2000. Apesar da sonoridade extremamente experimental e do vazamento, o álbum conseguiu a façanha de estrear em primeiro lugar nas paradas britânicas e americanas. Foi também o primeiro disco da banda a alcançar o Top 20 da Billboard.

Entretanto, o legado maior foi seu impacto imensurável na música popular como conhecemos. De Coldplay a Bon Iver, “Kid A” apresentou aos artistas um mundo novo de possibilidades criativas, nas quais as regras vigentes do rock pareciam de repente mais antiquadas que nunca.

Desde então, o Radiohead lançou mais cinco álbuns de sucesso, encontrando novas maneiras de revolucionar a maneira que até mesmo pagamos por música. Tudo começou mesmo com “Kid A”.

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Pedro Hollanda
Pedro Hollanda
Pedro Hollanda é jornalista formado pelas Faculdades Integradas Hélio Alonso e cursou Direção Cinematográfica na Escola de Cinema Darcy Ribeiro. Apaixonado por música, já editou blogs de resenhas musicais e contribuiu para sites como Rock'n'Beats e Scream & Yell.

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