Da estreia com “The Piper at the Gates of Dawn” (1967) até o quarto disco, “Ummagumma” (1969), o Pink Floyd foi uma banda essencialmente psicodélica. A virada de chave acontece com “Atom Heart Mother”, lançado em 2 de outubro de 1970 e responsável pela transição floydiana rumo a um autêntico combo progressivo.
A sonoridade audaciosa e experimental do quarteto — que já estava ali desde o período com Syd Barrett, mas até então se manifestava de forma intuitiva na maior parte do tempo — passa a operar com requintes de pragmatismo. Tudo fica mais cerebral e meticuloso a partir do quinto álbum. Desde o conceito estético até a primeira grande suíte, com orquestra, coral e duração que preenche o lado A inteiro do LP.
A partir do “disco da vaca”, verifica-se uma guinada prog que levaria o Pink Floyd ao topo do estilo. E também ao cume das paradas britânicas, com Roger Waters, David Gilmour, Richard Wright e Nick Mason alcançando o posto de número 1 em vendas no Reino Unido pela primeira vez na carreira.
Orquestrando o som
A grandiosidade de “Atom Heart Mother”, o disco, passa fundamentalmente pela colossal “Atom Heart Mother”, a música. Trata-se de uma suíte orquestral imponente e dividida em seis partes. Ela não só abre os trabalhos como se estende por 23 minutos, ocupando toda a primeira metade do álbum. Uma espécie de ensaio do que viria a ser “Echoes” no lado B de “Meddle” (1971).
Só que o surgimento dessa abundância de sons, comuns e extraordinários, não acontece da noite para o dia. O Pink Floyd começou a desenvolver “Atom Hear Mother” ainda em 1969, quando foi chamado para compor a trilha sonora do filme cult Zabriskie Point (1970), do diretor italiano Michelangelo Antonioni.
Nem tudo foi aproveitado, e trechos das composições foram sendo burilados posteriormente, quando a banda retornou da Itália para a Inglaterra, de modo a dar início a um novo álbum. Mark Blake, jornalista e biógrafo do Pink Floyd, relata:
“Eles ficaram duas semanas em Roma e depois voltaram para casa. Zabriskie Point foi lançado em fevereiro de 1970 e foi um fracasso retumbante. A trilha sonora incluía apenas três faixas do Floyd, complementadas por músicas do Grateful Dead, entre outros. No entanto, as gravações descartadas do Floyd continham uma sequência musical em torno da qual a suíte ‘Atom Heart Mother’ se desenvolveria.”
Roger Waters se lembra de que foi o guitarrista David Gilmour que apareceu com esse fio condutor: um riff cuja estrutura ampara a música e retorna ao longo de suas diversas camadas, como o baixista/vocalista contou à Capital Radio:
“Dave criou o riff original. Todos nós ouvimos e pensamos: ‘Nossa, isso é muito legal…’ Mas todos pensamos a mesma coisa, que parecia o tema de algum faroeste horrível.”
Faltava algo que conferisse maior profundidade. Que elevasse a combinação de sons e sentimentos ao próximo nível, como já vinham fazendo outros pioneiros do prog, como King Crimson, Moody Blues e The Nice: unir rock e orquestra. Mark Blake, em seu livro “Nos Bastidores do Pink Floyd” (2012), sintetiza o cenário:
“A presença de um coral e músicos de orquestra durante ‘The Final Lunacy’, no Royal Albert Hall, havia despertado o interesse de Waters em fazer o mesmo em um disco do Pink Floyd. Por volta de 1970, muitos grupos de rock cobiçavam o status intelectual de músicos eruditos, o que colocou em voga a ideia de tocar junto com orquestras. The Nice, The Moody Blues e Deep Purple (outras grandes esperanças da EMI) tinham todos se arriscado, com resultados variados. Agora, seria a vez do Pink Floyd.”
Ele acrescenta:
“Eles estavam tocando a peça ao vivo há algumas semanas, ajustando o arranjo. ‘Adicionamos, subtraímos e multiplicamos os elementos’, disse Nick Mason. ‘Mas ainda parecia faltar algo essencial.’ Eles finalmente decidiram que o ‘algo’ que faltava era uma orquestra e um coral. Mas primeiro precisavam de alguém para compor uma partitura.”
Maestro, cineasta e pérolas escondidas
Quando entrou no Abbey Road (EMI Studios, na época) para gravar, o Pink Floyd levou consigo o escocês Ron Geesin. Ele era um pianista e compositor acostumado a escrever peças para orquestras e já havia trabalhado com Roger Waters na trilha sonora “Music from the Body”, do documentário “The Body” (1970).
Com Geesin a bordo, “Atom Heart Mother” ganhou um naipe de metais, sopros, vozes de coral e, sobretudo, sofisticação. O baterista Nick Mason, no livro “Inside Out: Minha história com o Pink Floyd” (2004), descreveu o processo:
“Após algumas sessões no início de 1970, criamos uma peça muito longa, bastante majestosa, mas bastante desfocada e ainda inacabada. No início do verão decidimos entregar a música como ela estava para Ron Geesin e perguntamos se ele poderia adicionar alguma cor orquestral e partes de corais. (…) Não me lembro agora se decidimos criar essa peça mais longa ou se foi apenas uma bola de neve, mas era uma forma de operar com a qual estávamos começando a nos sentir confortáveis.”
Em 2006 (via Louder), o próprio Ron Geesin falou respeito da contribuição que deu ao disco. Enquanto o Floyd estava na estrada, cabia a ele continuar trabalhando no esboço de suíte prog que o quarteto inglês havia deixado em suas mãos:
“Eles foram para os Estados Unidos e me deixaram mandando ver. Entregaram-me uma faixa de referência e eu escrevi uma trilha para coral e metais, sentado em meu estúdio de cuecas, naquele inacreditável calor do verão de 1970. Tudo o que tinha era uma mixagem bruta do que eles já haviam agrupado e editado juntos, mas com problemas, porque as velocidades não encaixavam.”
Ron Geesin acabou tendo problemas com os músicos da orquestra e, em determinado momento, pulou fora. Ele foi substituído por John Alldis, maestro graduado na King’s College, em Cambridge, que deu sequência ao trabalho e foi creditado como responsável por conduzir o coral presente em “Atom Heart Mother”.
A suíte de 23 minutos deixou o cineasta Stanley Kubrick perplexo. Ele queria usá-la em seu próximo filme, “Laranja Mecânica” (1971), mas teve a permissão negada por Roger Waters. Apesar disso, é possível ver o álbum, com sua indefectível vaquinha na capa, na cena em que Alex (Malcolm McDowell) está na loja de discos.
Se o lado A de “Atom Heart Mother” trazia um esforço coletivo de composição, o lado B oferecia canções individuais de cada um dos integrantes: “If” (Waters), “Summer ´68” (Wright), “Fat Old Sun” (Gilmour) e “Alan’s Psychedelic Breakfast”, idealizada majoritariamente por Nick Mason, mas no fim creditada aos quatro.
À exceção dessa última, que força a barra e abusa do direito de ousar, incluindo registrar o roadie Alan Styles preparando um café da manhã e mastigando torradas com bacon e ovos, as demais são músicas convencionais, centradas no formato clássico de canção. As três cativam e se tornaram pérolas escondidas na discografia do Floyd. Destaque para a beleza singela de “Summer ’68”, de Wright, e da subestimada “Fat Old Sun”, que o próprio Gilmour fez questão de exaltar à Uncut, em 2017:
“É uma daquelas músicas em que tudo se encaixou com muita facilidade. Lembro-me de pensar na época: ‘De onde eu roubei isso? Tenho certeza de que é dos Kinks ou de outro alguém’. Mas ninguém jamais conseguiu identificar a inspiração. Além disso, ela possui uma boa letra, fiquei muito feliz com o resultado.”
Contrapsicodelismo
A ruptura com a estética psicodélica, tão presente nos anos 1960 e em álbuns anteriores como “The Piper at the Gates of Dawn” e “A Saucerful of Secrets” (1968), não se resumiu ao som. O Pink Floyd exigiu que a capa fosse, sóbria, concreta e lisa. Sem qualquer elemento adicional – escrito ou lisérgico.
Foi a primeira de muitas capas que não trouxeram o nome do álbum, tampouco da banda. Storm Thorgerson, fotógrafo e fundador do coletivo de design Hypgnosis, disse em entrevista à Classic Rock que saiu de carro pela zona rural e se deparou com a cena ideal. Afinal, o que pode ser mais realista do que uma vaca pastando?
“O Floyd nos disse que queria algo não-psicodélico. Eu queria criar uma não-capa a partir do não-título e do não-conceito do álbum – algo que não era como as outras capas.”
Apesar da imagem nada comercial, a capa se tornou icônica e ajudou “Atom Heart Mother” a se tornar o primeiro disco do Pink Floyd a atingir o topo das paradas no Reino Unido – nos Estados Unidos, o álbum chegou à 55ª posição.
No entanto, alguns dos envolvidos não costumam enaltecê-lo. Roger Waters e David Gilmour são bastante críticos a ele: “Atom Heart Mother’ é um bom exemplo de álbum que deveria ser jogado na lata de lixo e nunca mais ser ouvido por ninguém”, delirou Waters na década de 1980. “Um disco realmente horrível e constrangedor.”
Em 2001, Gilmour também o depreciou. Ele comentou à Mojo:
“Tínhamos boas ideias, mas o resultado foi pavoroso. Escutei recentemente e, meu Deus, é uma m#rda. Possivelmente nosso ponto mais baixo em termos artísticos. Ainda bem que melhoramos bastante depois dele.”
Obviamente, o Pink Floyd lançaria trabalhos mais bem resolvidos e aclamados nos anos seguintes, mas é fácil discordar da dupla, pois “Atom Heart Mother” pavimentou um importante caminho para se chegar lá. Foi com ele que a banda, enfim, se desprendeu da sombra de Syd Barrett e despertou para uma nova era, com outra paleta de colagens sonoras disponíveis e linguagem totalmente atrelada ao prog.
Com a palavra final, Mark Blake:
“Antes dos grandes sucessos e de muito mais dinheiro, ‘Atom Heart Mother’ é o som de uma banda rebelde fazendo um barulho infernal em Abbey Road, enquanto os executivos da EMI se perguntavam o que diabos eles estavam tocando. (…) Em termos de ‘estranhismo’, o Pink Floyd nunca soou melhor.”
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Gosto de vários discos do Pink Floyd, mas não dá para levar a sério esse daí… Seu conteúdo musical é apenas bom, diria quase insípido, mas essa capa (que inclusive inspirou os caras do Aerosmith em Get a Grip, de 1993) não ajuda em absolutamente nada. Talvez o exemplo maior de um disco ser apenas bom no conteúdo apresentado ao contrário de sua embalagem gráfica, sem relevância alguma. Tem também o Led IV, de um ano depois, que vai pelo mesmo caminho. Minha nota: 3/10.