*Texto por Luís S. Bocatios | Em 2015, o Executivo brasileiro era comandado por Dilma Rousseff, o Papa Francisco havia recém-assumido o cargo mais alto da Igreja Católica, o presidente dos Estados Unidos era Barack Obama, Rogério Ceni ainda atuava como goleiro do São Paulo, David Bowie ainda estava vivo… e o System of a Down tocou no Brasil pela última vez.
Ao longo dos últimos dez anos, muitos fãs brasileiros imaginavam que o grupo armêmio-americano de enorme popularidade na virada do século jamais voltaria ao país. O temor era justificado, já que a relação entre os integrantes se desgastou cada vez mais e o calendário de shows ficou escasso, com 44 apresentações entre 2016 e 2024. Para efeito de comparação, apenas a última turnê do Iron Maiden, “The Future Past Tour”, teve um total de 81 compromissos entre maio de 2023 e dezembro de 2024.
Com primeiras datas confirmadas em dezembro de 2024, a “Wake Up! South America Stadium Tour” teve seus ingressos esgotados em questão de horas, como era de esperar. Em Curitiba, havia expectativa ainda maior, visto que o SOAD jamais havia visitado a capital paranaense. E ninguém saiu decepcionado do estádio Couto Pereira naquela noite de terça-feira (6).
Ego Kill Talent
Formada em 2014, a paulistana Ego Kill Talent já abriu shows de bandas como Metallica, Linkin Park, Queens of the Stone Age, Evanescence, Foo Fighters, Korn e, agora, System of a Down, inclusive em outros países do continente. Seu largo currículo em grandes festivais dentro e fora do país e como atração introdutória de gigantes internacionais, mas bem modesto quando se fala de underground, tem rendido críticas.
Assim que foi anunciada para a “Wake Up! South America Stadium Tour”, o grupo hoje composto por Emmily Barreto (vocais), Theo van der Loo (guitarra), Niper Boaventura (guitarra), Cris Botarelli (baixo) e Raphael Miranda (bateria) teve até que lidar com certo ódio nas redes. John Dolmayan, baterista do System of a Down, precisou pedir o fim dos comentários negativos, pois ele e seus colegas o escolheram com base na afinidade musical e relação pessoal anterior.
A chuva de comentários negativos, no entanto, ficou restrita à internet. E o quinteto fez por merecer a boa vontade sentida no Couto Pereira: pareciam imaginar que encontrariam um público difícil de ser conquistado e, em função disso, entraram no palco ligados nos 220v.
Não há como deixar de destacar Emmily, que entrou na vaga deixada por Jonathan Dörr. Sua performance alia ótima presença de palco a uma voz poderosíssima — nos momentos mais viscerais, seus gritos impressionaram.
No palco exatamente às 19h30 e com um som perfeito à disposição, o Ego Kill Talent iniciou seu curto set com “We Move as One” e “Lifeporn”, com a primeira agradando mais que a segunda. Barreto e Boaventura, que atua quase como um co-frontman, saudaram o público pela primeira vez e logo emendaram a ótima “Call Us By Her Name”, de groove mais dançante.
“Need No One to Dance” segue a mesma linha, ainda que seja menos inspirada. A vocalista pediu para que o público cantasse junto no “parapapara” da canção, mas a adesão da plateia foi um tanto tímida. Aí entra o dilema: não havia hostilidade, mas tampouco empolgação de quem os assistia.
Logo no início, a quinta música “Never Fading Light” foi interrompida por Boaventura, pois avistou um “fã de boné vermelho” passando mal. O sujeito logo foi resgatado e o gesto de parar o show foi apreciado e aplaudido pelo público. A essa altura, no entanto, as músicas começavam a soar um pouco parecidas demais.
Precedendo a música seguinte — “Reflecting Love”, que passou batida —, a vocalista disse ao público que estava muito feliz e que cada sorriso que via na plateia aquecia seu coração. Em seguida, a fraca balada “When it Comes” trouxe outra tentativa falha de coro na parte do “la-la-la”. “Finding Freedom” e “Just for the Likes” também não encantaram. O relógio já marcava 20h10 e era hora de se despedir da banda de abertura.
Antes da saideira, Barreto declarou que a experiência foi “a coisa mais linda do mundo” e agradeceu ao System pela oportunidade. A última música, “Last Ride (her)”, é uma releitura da faixa presente no álbum de estreia, gravado ainda com Jonathan — e acabou por se tornar um dos destaques do repertório, com riff interessante e um belo trabalho de Raphael Miranda na bateria.
O show foi divertido o suficiente para que a espera para o System of a Down se tornasse menos angustiante, mas, apesar do talento dos integrantes, sua música soou genérica demais para empolgar o público da forma como outras bandas poderiam fazer. Talvez tenha chegado a hora da banda refletir se seguir abrindo os shows de tantas bandas internacionais que vêm ao Brasil é, de fato, a melhor estratégia para angariar novos fãs.
Repertório — Ego Kill Talent:
- We Move as One
- Lifeporn
- Call Us by Her Name
- Need No One to Dance
- Never Fading Light
- Reflecting Love
- When it Comes
- Finding Freedom
- Just For the Likes
- Last Ride
System of a Down
Precisamente às 21h, as luzes do Couto Pereira se apagaram e as caixas de som começaram a tocar o tema de abertura da obra-prima do cinema “Um Estranho no Ninho”, dirigida por Milos Forman e estrelada por Jack Nicholson. Em seguida, o quarteto formado por Serj Tankian (vocais), Daron Malakian (guitarra), Shavo Odadjian (baixo) e John Dolmayan (bateria) subiu ao palco e começou com uma das faixas mais agressivas de sua carreira: “Attack”.
A música tem absolutamente tudo que precisa para ser considerada como uma grande faixa de abertura (tanto de shows quanto de discos, já que abre o álbum “Hypnotize”, 2005): é rápida e conta com refrão marcante. Quando acaba, Daron fala com o público pela primeira vez: “nós somos o System of a Down, viemos de Los Angeles, Califórnia, e estamos aqui para tocar rock n’ roll no estilo System of a Down”.
Não por acaso, a música que viria a seguir abre o primeiro disco do SOAD, homônimo e de 1998, e é uma das que melhor exemplifica esse estilo único: a pesada, estranha e ao mesmo tempo despojada “Suite-Pee”. A trinca de abertura foi encerrada com “Prison Song”, um dos maiores clássicos de “Toxicity” (2001), cuja introdução com o público todo berrando “they’re trying to build a prison” criou uma tensão deliciosamente liberada quando a música explode de vez. Abriam-se moshs, voavam sapatos e copos de cerveja, pessoas choravam. Era uma catarse.
Na primeira música, o som estava um tanto embolado e a voz de Serj não se ouvia tão bem assim. Todavia, logo o problema foi resolvido e a qualidade sonora se manteve impecável até o fim.
Sem muito espaço para conversa, a banda emendou a divertida “Violent Pornography” e a magistral “Aerials”, primeiro grande sucesso da noite, com seus versos entoados pela plateia como um mantra. Milissegundos após o final da música, Shavo já começou o riff de baixo de “Mr. Jack”, com belo e longo solo de Daron na introdução.
Com clima e estrutura similares aos de “Aerials”, a música ostenta um poder ao vivo que supera a gravação de estúdio (o que se tornaria quase um padrão para as músicas do “Steal This Album!” tocadas ao vivo nesta noite). O final, com os versos “put your hands up, get out of the car” e “f#ck you, pig!”, funciona maravilhosamente bem no palco. O foco permanece no álbum de 2002 com “I-E-A-I-A-I-O”, cujo refrão, como era de se esperar, teve um dos coros mais altos da noite.
“Genocidal Humanoidz” parece a única escolha realmente questionável do repertório. Lançada em 2020 com o objetivo de arrecadar fundos para a Armênia e Artsaque devido aos confrontos no Alto Carabaque, a música não é boa e nem relevante na carreira da banda. Às vezes temos que relevar algum grupo que deixe de tocar um clássico para tocar uma música nova, pois faz parte de sua trajetória artística, mas é decepcionante que uma banda que não lança um disco novo há 20 anos toque um single ruim no lugar de outras canções que certamente agradariam mais aos fãs.
Em compensação, o quarteto desenterrou a excelente “A.D.D (American Dream Denial)”, que não teve grande aclamação do público por se tratar de um lado B, mas teve performance brilhante e representou uma lembrança válida. Em seguida, “Needles” e “Deer Dance” fizeram a alegria dos fãs mais old-school.
A trinca que viria a seguir foi um dos grandes momentos da noite: “Soldier Side – Intro”, cantada a plenos pulmões pelo Couto Pereira, até preparou o público para “B.Y.O.B”, numa dobradinha clássica nos shows. O que veio a seguir, no entanto, foi a versão completa de “Soldier Side”, que pegou de surpresa — e emocionou — parte do público. Uma das canções mais belas e, ao mesmo tempo, soturnas da carreira do SOAD.
Em seguida, agora sim, chegou a hora de “B.Y.O.B”. Loucura total e talvez um dos coros mais altos já ouvidos no estádio Couto Pereira. Durante sua execução, o palco exibiu frases que reforçam a mensagem antiguerra da música. O clima foi mantido lá no alto com “Radio/Video”, outra música de “Mezmerize” (2005).
Longe do auge — e daí?
Outro lado B de “Steal This Album!” que passou batido pelo grande público foi a ótima “Bubbles”, outro louvável resgate feito para esta turnê. O clima continuou um pouco em baixa com a parte mais calma de “Dreaming”, mas a catarse voltou logo em sequência, com a belíssima “Hypnotize”. Neste momento, ficou claro que a voz de Daron não é mais a mesma. O guitarrista de 49 anos se esgoelou, todavia, não alcançou as notas mais altas do primeiro verso — no segundo, nem tentou atingi-las.
Os fãs sabem muito bem que o System of a Down está longe de seu auge. Lá se vão vinte anos sem um disco novo. Enquanto a técnica instrumental segue ali, é nítido que o sangue nos olhos já não está lá há muito tempo, ao menos por parte de Serj Tankian.
Ir a um show do System of a Down em 2025 esperando que o cantor esteja tão possuído quanto na icônica performance no The Metro de Chicago em 1998, por exemplo, é um convite para a decepção. Tankian parece se divertir no palco, com sua presença ligeiramente caricata, mas a ferocidade de outrora não marca presença — e, sinceramente, nem teria como estar.
Aos 57 anos, Tankian já declarou considerar as turnês com o SOAD “artisticamente redundantes” e avaliar que seus parceiros de banda têm muito mais vontade de tocar ao vivo do que ele, que chegou ao ponto de sugerir uma busca por outro vocalista para seguirem em frente. Se a régua para medir a qualidade do show fosse a vontade de Serj, nenhum show do System of a Down desde a metade dos anos 2000 poderia ser considerado bom. Por sorte, não é; um Tankian 10% engajado é muito melhor do que a maioria dos vocalistas do mundo.
Daron Malakian, por sua vez, está mais Daron do que nunca: com uma barba que preenche o rosto inteiro menos o queixo, o guitarrista permanece com seus backing vocals inconfundíveis — mesmo que o gogó já não seja mais o mesmo — e presença de palco até mais marcante do que a de Tankian.
Shavo Odadjian, discreto mas extremamente carismático, é sempre preciso nas quatro cordas, enquanto o monstruoso John Dolmayan, um dos melhores bateristas de sua geração e o integrante do System que parece mais gostar de fazer shows, entrega uma performance fantástica. Tornou-se o principal elemento do grupo, com suas viradas absurdas e seus grooves positivamente esquisitos.
Calma que ainda tem muito show
Voltando ao repertório, o System of a Down emendou mais duas músicas de “Toxicity”: a maravilhosa “ATWA”, cujo “lalala” foi entoado em uníssono pelo estádio, e “Bounce”, precedida por interação engraçadíssima de Daron com o público. Após pedir gritos para a plateia, o guitarrista disse que gosta muito “de ouvir vocês, mas às vezes também gosto de observar vocês” e cantou um pedaço de “Every Breath You Take”, do The Police, berrando a parte do “I’ll be watching you” (“estarei te observando”). No final das contas, o ponto era que Daron veria as pessoas pulando em “Bounce”.
Os fãs da fase inicial da banda ainda foram agraciados com a maravilhosa “Suggestions”, que, surpreendentemente, também não contou com tanta empolgação do público. Poucos cantaram junto com Serj, mas os que o fizeram certamente colocaram o momento entre os melhores da noite.
A loucura continua com a dobradinha “Psycho” e “Chop Suey!”, cujo poder dispensa comentários. A parte final desta faixa, possivelmente a mais famosa da banda, é capaz de emocionar até alguém que nunca a ouviu antes; e para alguém que já a ouviu centenas de vezes ao longo da vida, conferi-la ao vivo se transforma em uma experiência emocionalmente única.
Após isso, chegou a hora das duas baladas mais famosas. Uma introdução muito louca, cheia de viradas de bateria absurdas de Dolmayan, prenuncia a melancólica “Lost in Hollywood”, também cantada em uníssono pelo estádio inteiro. “Lonely Day”, então, dispensa comentários.
Tal quebra no ritmo pode parecer um pouco indesejada, mas se comprova uma jogada de mestre, pois faz com que as músicas finais tenham um impacto ainda maior. O poder de “Streamline” ao vivo surpreende: John Dolmayan domina o andamento esquisitíssimo e espanca a bateria, ao mesmo tempo em que o timbre de Daron soa mais pesado do que nunca.
Antes de tocar “Forest”, o guitarrista pediu para que o público cantasse o refrão da música à capela, mas causou uma confusão tremenda, pois cada parte da plateia cantou uma coisa diferente. Momento meio constrangedor, mas engraçado, e precedeu uma performance tão avassaladora quanto a de “Streamline”, com o maravilhoso riff de guitarra e o grandioso refrão, agora sim cantado no ritmo e no tom certos, pegando o público pela garganta. Já “Cigaro” foi uma diversão só, do começo à capela de Daron até ao final explosivo.
Para os fãs do primeiro disco que se decepcionaram com as ausências de “Peephole”, “Mind” e “Spiders”, tocadas em outros shows da turnê, a consolação se deu com a performance da incrível “War”, cujo refrão é um dos mais poderosos da banda —também não tão aclamado assim pelo público.
Ao final da música, Daron a descreve como raivosa. “Às vezes nós fazemos canções raivosas, mas às vezes também fazemos canções bonitas. Vocês querem ouvir uma canção bonita?”, perguntou e emendou com a linda balada “Roulette”, executada apenas pelo guitarrista e por Serj. A performance vocal de Tankian é elogiável, assim como o fato de que o vocalista literalmente cantou parte da música com uma das mãos no bolso. Só faltou ficar olhando para um relógio ou checar o preço do Uber para voltar para o hotel.
Ao final do show, o riff inicial de “Toxicity” arrepiou da cabeça aos pés. Talvez a que melhor encapsule a sonoridade da banda, a canção também é uma das que mais tem o poder de evocar a nostalgia dos fãs. A melodia dos versos ecoa nos ouvidos de forma a fazer passar um filme na cabeça de quem acompanha a banda há muito tempo.
A explosiva conclusão teve mosh pits organizados pelo próprio Daron, que apontou para os lugares e disse “eu quero uma roda aqui”. Veio, então, a esplendorosa “Sugar”, que fez com que não houvesse uma alma parada no Couto Pereira. Após pular sem parar durante a música final, o público deixou o estádio com um êxtase quase palpável e um sentimento de gratidão pela chance de testemunhar uma apresentação de uma das maiores bandas das últimas décadas. A espera valeu cada segundo. Que ela não seja tão longa até a próxima visita.
System of a Down — ao vivo em Curitiba
- Data: 6 de maio de 2025
- Local: Estádio Couto Pereira
- Turnê: Wake Up!
- Produção: 30e
Repertório:
- Attack
- Suite-Pee
- Prison Song
- Violent Pornography
- Aerials
- Mr. Jack
- I-E-A-I-A-I-O
- Genocidal Humanoidz
- A.D.D. (American Dream Denial)
- Needles
- Deer Dance
- Soldier Side – Intro
- Soldier Side
- B.Y.O.B
- Radio/Video
- Bubbles
- Dreaming (segunda metade)
- Hypnotize
- ATWA
- Bounce
- Suggestions
- Psycho
- Chop Suey
- Lost in Hollywood
- Lonely Day
- Streamline
- Forest
- Cigaro
- War
- Roulette
- Toxicity
- Sugar
Clique para seguir IgorMiranda.com.br no: Instagram | Bluesky | Twitter | TikTok | Facebook | YouTube | Threads.