Era o retorno do intervalo do show do Beat quando Danny Carey reapareceu primeiro e, na frente do palco, começou a tocar sua percussão. Dois minutos depois, Adrian Belew pegou suas baquetas e dividiu o instrumento com o baterista.
Logo, Tony Levin apareceu com seu chapman stick tocando uma melodia enquanto Steve Vai, meio escondido nas sombras, fazia algumas intervenções minimalistas com sua guitarra.
Os quatro músicos, de capacidade técnica e currículos acima de qualquer suspeita, brincavam entre si ao fazer uma introdução para “Waiting Man”, faixa de “Beat”. Este álbum, lançado pelo King Crimson em 1982, batiza o supergrupo que tocou sexta-feira (9) em um Espaço Unimed bem quente e cheio — com a pista comum substituída por cadeiras e mesas mais altas. O clima de descontração, diga-se, prevaleceu.
Os quatro músicos subiram ao palco poucos minutos após às 22h — todos de roupas elegantes, exceto o baterista, de bermuda e camiseta. Ovacionados, saudaram o público e se encaminharam cada um à sua posição, da qual pouco saíram durante as duas horas e meia de performance.
Com Tony Levin — numa forma invejável para os seus 78 anos de idade — à sua esquerda como uma espécie de regente musical e apoio nas vozes, Adrian Belew tomou o centro do palco. O guitarrista e vocalista comandou a noite de forma não muito comunicativa, mas pareceu uma criançona de 75 anos ao esbanjar carisma nos gestos com indisfarçável felicidade.
Steve Vai e o aniversariante Danny Carey, ambos com 64 anos de idade, ficaram discretos a noite toda. Nem parecia que um guitarrista icônico e o baterista de uma das maiores bandas da atualidade se juntavam aos dois cultuados músicos da formação oitentista do King Crimson.
O charme extra dado pelos “novatos”
Os “novos” elementos têm relação com o clássico grupo de música progressiva. O Tool — aos desavisados, banda da qual Danny Carey faz parte — escalou o King Crimson como abertura de parte de sua turnê em 2001 divulgando “Lateralus”, disco lançado naquele ano. Antes de abrir exceção à sua regra de nunca fazer parte de supergrupos, Steve Vai trouxe ao G3 para uma excursão no Brasil em 2004 o lendário Robert Fripp, que tocou soundscapes para confrontar um público sedento por solos e saiu vaiado.
A ausência do relativamente aposentado homem-banda do King Crimson foi o único impeditivo para classificar o que aconteceu no palco do Espaço Unimed de um autêntico show do icônico grupo de rock progressivo.
A reprodução bem fiel das faixas do “elegante” período oitentista do King Crimson, mais próximo de esquisitices art rock em vez dos exageros surrealistas progressivos, mostrou o grau de reverência com que os quatro instrumentistas no palco entendem a importância daquelas músicas.
Tal fase é caracterizada pelas linhas de guitarra de abordagem mais minimalista e hipnótica compostas por Fripp, enquanto Bill Bruford tocava sua bateria de forma percussiva em tempos não convencionais, reduzindo ao mínimo o uso dos pratos. Talvez não parecesse que dois virtuosos como Steve Vai e Danny Carey fossem os músicos mais indicados para ocupar os respectivos lugares.
Todavia, a habilidade inegável de cada um — tanto técnica quanto inventiva — acabou apenas por dar um toque de personalidade própria quando a música permitia. Como exemplos, o solo mais shredder de Vai em “The Sheltering Sky” ou o peso adicionado à introdução de “Indiscipline” por Carey.
Tais mudanças pontuais deram graça ao projeto para os dois ex-membros do King Crimson ainda presentes no palco, Adrian Belew e Tony Levin. De convencionais em seus respectivos instrumentos — a julgar por suas Parker Fly e Chapman Stick, respectivamente — eles não têm nada, logo, nunca lhes interessou a mera reprodução das versões de estúdio dos clássicos do King Crimson.
Ato um
O show, como reza a cartilha do rock progressivo, foi dividido em dois atos. Nada no palco além de um pano de fundo com o elefante estilizado que se tornou a marca do Beat e um jogo simples de iluminação. Toda a atenção foi direcionada às músicas e aos instrumentistas, reproduzindo-as na frente de um público bem participativo, muitos ali claramente realizando um sonho de décadas, alguns até acompanhados dos filhos.
O primeiro ato começou com um apito antes de “Neurotica” e alguns coros do público para “Neal Jack and Me”. Depois, o quarteto completou a quadra inicial extraída de “Beat” contrapondo a atmosférica “Sartori in Tangier” à melodia não lá muito convencional de “Heartbeat”.
Antes de executar as faixas de “Three of a Perfect Pair” (1984), Belew anunciou que usaria sua guitarra Twang Bar King. O público até ensaiou alguns coros desajeitados para “Model Man” e “Man With An Open Heart”, algo mais difícil de acontecer na esquisita “Dig” e na tensa e ruidosa instrumental “Industry”, com direito a Carey massacrando sua bateria.
O encerramento veio com a adaptação oitentista de “Larks’ Tongues in Aspic”, a terceira parte da caótica saga instrumental do King Crimson iniciada no disco de mesmo nome lançado em 1973. No Espaço Unimed, a versão presente no álbum de 1984 se iniciou com um solo de Vai e teve Levin conquistando os holofotes com o uso de sticks para suas linhas de baixo.
Ato dois
Adrian Belew prometeu um intervalo de vinte minutos e um segundo ato mais focado nos dois primeiros discos da fase oitentista do King Crimson. A pausa durou alguns minutos a mais até o quarteto aos poucos retornar ao palco um a um, sempre ovacionados pelo público conforme apareciam, exceto por Vai ter entrado despercebido pelo canto oposto ao do trio inicial.
Apesar da boa reação do público às duas músicas de “Three of a Perfect Pair” incluídas no segundo ato — “Sleepless” e a canção que dá nome ao disco —, a continuação do show foi marcada pela execução das faixas de “Discipline” (1981). “The Sheltering Sky” foi recebida com palmas e, estendida, durou quase quinze minutos para incluir um ovacionado solo de Steve Vai.
O guitarrista fez seu gestual completo ao exibir com bom gosto sua técnica no único momento em que esteve no centro das atenções — porém, apenas um passo à frente em seu cantinho do palco.
Os coros para as partes melódicas de “Frame by Frame” e da bela “Matte Kudasai” (“Espere, Por Favor”, em japonês) já mostravam uma empolgação muito maior do público. Também houve respostas efusivas na pista à maluquice de “Elephant Talk” e à pancadaria de “Indiscipline”, com praticamente um solo de bateria de Danny Carey enquanto a banda estendia sua tensa introdução. Belew encerrou o ato gritando com gosto seu verso final “I like it!”. Ninguém duvidou de sua sinceridade estendendo ao que acontecia no Espaço Unimed.
Bis
O retorno ao palco para o fim do show não demorou muito. Antes de dar início às duas faixas responsáveis por encerrar a noite, Adrian Belew lembrou que, como já havia passado da meia-noite, era o aniversário do caçula Danny Carey.
O guitarrista e mestre de cerimônias da noite puxou um “Happy Birthday to You” para o baterista, que comeu pedaços do bolo com suas baquetas antes da pesada “Red”, uma homenagem a Robert Fripp, Bill Brufford e à fase setentista do King Crimson, colocar a casa abaixo.
O fim em alto astral veio com a funkeada “Thela Hun Ginjeet” — uma anagrama para “Heat in the Jungle” —, com sua levada percussiva irresistível e repetitivo refrão alegre. Acabou sendo sintomático do entrosamento do quarteto, tanto musical quanto pessoalmente.
Os fãs podem até sonhar com a extensão da formação atual para um double trio para incluir parte do material dos anos 1990. Entretanto, quem viu a leve apresentação de duas horas e meia do Beat entende não fazer o menor sentido mexer numa fórmula que deu tão certo.
Beat — ao vivo em São Paulo
- Data: 9 de maio de 2025
- Local: Espaço Unimed
- Turnê: Plays the Music of 80s King Crimson
- Produção: Mercury Concerts
Repertório:
Ato I:
- Neurotica
- Neal and Jack and Me
- Heartbeat
- Sartori in Tangier
- Model Man
- Dig Me
- Man With an Open Heart
- Industry
- Larks’ Tongues in Aspic (Part III)
Ato II:
- Waiting Man
- The Sheltering Sky
- Sleepless
- Frame by Frame
- Matte Kudasai
- Elephant Talk
- Three of a Perfect Pair
- Indiscipline
Bis
- Red
- Thela Hun Ginjeet
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Show foi de uma performance que raramente se vê, não havia separação entre músicos e instrumentos, Steve Vai e Danny Carey encaixaram perfeitamente na banda dando uma liga impecável, deixa o ouvinte até sonhando no mundo dos Ses de como o supergrupo poderia produzir material de mais alto calibre junto. Pena que foi somente uma data, repetiria o show se tivesse mais.