Qualquer que seja o nome sob o qual a hoje chamada Farmasi Arena opere ou venha a operar, algumas deficiências parecem crônicas. A casa, que comporta até 18 mil pessoas a depender do tipo de evento, apresenta problemas em diversas frentes. O acesso é ruim. A sinalização, precária. Poucos colaboradores têm informações na ponta da língua e, entre os que têm, ainda menos parecem dispostos a ajudar. E o som… bem, este está longe de fazer jus à estrutura oferecida pelo local. Shows que ficam muito bem na foto, mas que nem sempre soam tão atraentes aos ouvidos.
Felizmente, de um lado, Offspring, Sublime e Rise Against entregaram performances tão sólidas que, na maior parte do tempo, mascararam as falhas técnicas — vocais soterrados na mix e graves que mais pareciam mugidos. De outro, o público, completamente imerso na experiência e servindo de segunda voz com entusiasmo, talvez nem tenha percebido ou simplesmente não se importado com esses detalhes.
No fim das contas, o que definiu a noite não foram os problemas da arena, mas a energia inabalável de quem estava sobre e diante do palco.
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Rise Against: O meio nem sempre é a mensagem
O que diriam os arquitetos do rock enquanto contracultura de liberdade se soubessem que, em pleno século 21, mais de seis décadas após a semente da rebeldia justificada ter sido plantada, seus herdeiros ainda precisariam reafirmar, em alto e bom som, que este não é um ambiente que tolera racismo, homofobia ou qualquer tipo de discriminação?
Tão bizarra quanto essa conjectura é a noção de que, talvez, havia na plateia do Rise Against — banda cujas letras predominantemente políticas repudiam regimes autoritários e ideologias extremistas — indivíduos que não veem problema algum em permanecer calados enquanto há tanta desigualdade, exploração e opressão no mundo.
Talvez por isso mesmo o vocalista e porta-voz da banda, Tim McIlrath, insista tanto na mesma tecla ao longo dos pouco mais de quarenta minutos de palco que lhe couberam, assim como aos colegas Joe Principe (baixo), Brandon Barnes (bateria) e Zach Blair (guitarra). O quarteto se mostra, ao mesmo tempo, sensível e honrado. “Sei que shows no meio da semana são complicados, mas somos muito gratos pelo esforço de todos em estarem aqui”, reconhece Tim.
Se o ativismo é punk, como McIlrath faz questão de ressaltar — quase como se buscasse a validação da velha guarda —, o meio pelo qual o Rise Against tenta propagá-lo, o hardcore melódico, tem forte inclinação pop. Longe de ser uma dissonância: essa fusão cria um contraste poderoso que amplifica o impacto das palavras.
Sem dúvida, tem quem seja alcançado. E há também aqueles que estão ali apenas pela urgência dos mosh pits — vistos de cima, os círculos formados em “Ready to Fall” assemelhavam-se a um enxame de formigas correição —, pelos punhos erguidos e pela comunhão que o som, esvaziado de seu significado, ainda assim proporciona.
Do alto de seus praticáveis, os caras esperam estar comandando e convencendo pela mensagem — e que mensagem, vide as atualíssimas “Prayer of the Refugee” e “Savior” —, mas o mais provável é que o estivessem fazendo, sobretudo, pelo meio.
Repertório — Rise Against:
- Re-Education (Through Labor)
- The Violence
- Help is on the Way
- The Good Left Undone
- Satellite
- Nod
- Ready to Fall
- Prayer of the Refugee
- Make It Stop (September’s Children)
- Savior
Sublime: o sangue fala mais alto
Uma foto do vocalista e guitarrista Bradley Nowell tocando violão para um bebê estampa a quarta capa do encarte do álbum homônimo do Sublime, lançado em 30 de julho de 1996. Morto por overdose menos de dois meses antes de o disco chegar às lojas, Nowell não viu sua magnum opus atingir o número 13 na Billboard e vender mais de cinco milhões de cópias nos Estados Unidos.
Seus colegas Bud Gaugh (bateria) e Eric Wilson (baixo), impossibilitados de realizar turnês e divulgações, tampouco puderam capitalizar o sucesso. Optaram por não continuar a banda sem seu principal compositor, mantendo o legado vivo somente por meio de compilações e lançamentos póstumos.
Avancemos três décadas. Jakob Nowell, o bebê da supracitada foto, cresceu e hoje ocupa o posto outrora pertencente ao pai — e o faz de modo que dispensa testes de DNA.
Não que o Sublime with Rome, formado em 2009 por Wilson e o cantor e guitarrista Rome Ramirez, não tenha sido uma iniciativa válida — afinal, permitiu que os fãs continuassem a ouvir as músicas da banda ao vivo e apresentou seu repertório a uma nova geração. Contudo, ao longo de sua existência, apesar de ter lançado três álbuns de estúdio com material original, o projeto foi amplamente considerado ilegítimo pela ala mais radical dos admiradores.
Problema apontado, problema resolvido. Com Jakob a bordo, o nome Sublime foi oficial e legitimamente ressuscitado. A estreia nos palcos brasileiros, abrindo para o Offspring em três compromissos — o primeiro deles na Farmasi Arena, Rio de Janeiro, na última quinta-feira (6) —, confirmou o acerto dessa decisão.
Do lado direito do palco, um relógio marca 50:00. A contagem regressiva é iniciada tão logo o trio, acompanhado por Trey Pangborn (segunda guitarra na teoria, primeira na prática) e pelo DJ Product, tateia notas até se encontrar no verso inicial de “April 29, 1992 (Miami)”. Retrato dos tumultos que eclodiram em Los Angeles após a absolvição de quatro policiais acusados de usar força excessiva na prisão de Rodney King, a letra da música contrasta com o cenário em que é executada, repleto de elementos que remetem à cultura californiana dos anos 1990: skates, boomboxes e muitas referências, entre veladas e explícitas, a sexo e drogas. Ao fim da música, Jakob se apresenta e é ovacionado como Rome jamais foi.
Feita a reflexão (ou dado o choque de realidade, você decide), restavam ainda 45 minutos para reiterar por que o Sublime se tornou um dos grupos mais influentes de sua época. E, claro, a mistura de punk, reggae, ska e hip-hop atrai, mas são as narrativas de Bradley, um cronista nato, que realmente cativam. Histórias de personagens e situações inusitadas, como nas letras de “Wrong Way” e “Date Rape” (recomenda-se a leitura de ambas), encantam os mais versados na língua inglesa e provocam risos e sorrisos naqueles que já não estavam rindo à toa em meio à constante marola de baseado.
No palco, ninguém parecia mais relaxado do que Eric. Alternando entre o baixo e o bass synth de volume ensurdecedor — não mais que o trigger da bateria em “Garden Grove”, diga-se —, o gigante gentil e tatuado fazia de seu roadie um garçom particular, sempre providenciando refis de sabe-se-lá-o-quê.
O álbum de 1996 domina o repertório das 13 músicas tocadas, e, no hit “What I Got”, a antepenúltima da noite, Noodles, que assistia ao show de um ponto privilegiado à esquerda do palco, é convidado a assumir a guitarra principal. Foi improvisado? Sim. Parece que foi? Nem um pouco.
Para “Same in the End”, Jakob chama seu roadie — a quem se refere como “irmão” — para participar da brincadeira, entregando-lhe o próprio instrumento. No encerramento, “Santeria” confirma que não é preciso praticar bruxaria nem ter bola de cristal para prever o futuro sucesso do Sublime. Agora, com Jakob honrando o legado de Bradley Nowell, fica claro que o sangue realmente fala mais alto.
Repertório — Sublime:
- April 29, 1992 (Miami)
- The Ballad of Johnny Butt
- Wrong Way
- Date Rape
- Doin’ Time
- Caress Me Down
- Garden Grove
- Badfish
- Pawn Shop
- Greatest-Hits
- What I Got
- Same in the End
- Santeria
The Offspring: a segurança dos clássicos
“Este é provavelmente o melhor show que já fizemos por aqui”. Quem diz isso é Dexter Holland, 59 anos, PhD em biologia molecular e em vindas ao Brasil; afinal, esta é a 12ª vez que o Offspring desembarca por aqui e a 7ª em que o grupo inclui o Rio de Janeiro no itinerário. Sendo assim, demos um voto de confiança ao doutor.
O trabalho mais recente dos californianos é “Supercharged”, cujo destaque — pelo menos para nós, brasileiros — é “Come to Brazil”, uma homenagem aos fãs locais, que utilizam a hashtag #ComeToBrazil para demonstrar o quanto amam determinado artista e querem vê-lo tocando por aqui. Na letra, referências a praias, chinelos e caipirinhas ilustram como somos vistos lá fora.
A leveza dos versos, que levam o ouvinte do Corcovado à Amazônia, contrasta um pouco com a sonoridade inclinada ao thrash metal. O solo de Noodles, inspirado nos cânticos “olé-olé-olé-olé”, aplica um verniz futebolístico quase obrigatório em se tratando de homenagens ao país. O verde e o amarelo iluminam o palco enquanto, no telão, tambores de escola de samba e outros elementos tropicais criam uma atmosfera quase carnavalesca.
Cartela preenchida de ponta a ponta. Bingo! Como isso poderia dar errado?
Verdade seja dita: a canção, cuja estreia ao vivo ocorreu na noite anterior, em Belo Horizonte, não empolgou na capital fluminense. A suspeita deste escriba? O fato de a música ser a mais fraca do ainda recente e pouco explorado 11º álbum de estúdio da banda.
Felizmente, e assim tem sido há quase três décadas, o show do Offspring se sustenta em uma mesma meia dúzia a uma dúzia de clássicos, em parte extraídos de “Smash” (1994) e “Americana” (1998). O primeiro, um dos álbuns independentes de punk rock mais vendidos de todos os tempos, foi o responsável por catapultar o grupo ao estrelato internacional. O segundo consolidou esse sucesso com hits que demonstraram a capacidade da banda de criar músicas cativantes e acessíveis sem perder a essência — fórmula que, salvo alguns tropeços aqui e ali, vem sendo seguida quase à risca desde então, a ponto de alguns mais puristas excluírem o grupo do círculo de irmãos consanguíneos do Bad Religion.
Julgamentos a parte, a maior prova de que a força residual do Offspring está na sua música é o fato de que a mais feroz de todas, “Bad Habit”, é justamente a que tem menos artifícios no palco. Conta com uma abordagem quase minimalista em comparação à grandiosidade carro-alegórica da primeira metade do show. Nesta etapa, infláveis gigantes do esqueleto eletrificado da capa de “Supercharged” comprimem a área útil do palco de maneira quase opressora de tão insinuantes, enquanto o telão exibe animações que ora dialogam com a música do momento (vide a abertura com “All I Want”, acompanhada por imagens do jogo “Crazy Taxi”), ora conferem a ela novos significados, como em “Gotta Get Away”.
Das ditas clássicas, a última citada é, sem dúvida, a que menos empolga, mas ganha novos contornos com as projeções de soldados zumbis se rebelando no front, transformando-se em um mantra antiguerra. Durante o solo de bateria, Dexter, Noodles e o baixista Todd Morse assistem ao “garoto” Brandon Pertzborn, 30 anos, com o orgulho de pais que veem seu investimento dando o retorno esperado.
O cinto de utilidades da banda inclui ainda artifícios de eficácia já comprovada, como a boa e velha chuva de papel picado, canhões de serpentina e balões infláveis, liberados para o público brincar durante o vai-trabalhar-vagabundo de “Why Don’t You Get a Job?”. Em seguida, bonecões de posto vestidos como o branquelo metido a pimp do clipe de “Pretty Fly (for a White Guy)” evocam a infância e adolescência de muitos dos presentes: tardes assistindo à MTV e noites aproveitando que só se pagava um impulso da internet discada para baixar música.
O set principal se encerra com a resposta do Offspring ao The Who: “The Kids” não apenas “Aren’t Alright”, como nunca estiveram tão na pior. O bis começa com “You’re Gonna Go Far, Kid” — indispensável desde seu lançamento no pouco celebrado “Rise and Fall, Rage and Grace” (2008) —, reacendendo a esperança, mas não sem uma boa dose de ironia. “Self Esteem” coloca um ponto final quase pontual às 23h, numa noite em que a única bola fora foi justamente aquela que parecia destinada a ser um golaço.
Repertório — Offspring:
- All I Want
- Come Out and Play
- Want You Bad
- Staring at the Sun
- Looking Out for #1
- Come to Brazil
- Hit That – Original Prankster
- Blitzkrieg Bop (Ramones)
- Make It All Right
- Bad Habit
- Gotta Get Away
- Why Don’t You Get a Job?
- Can’t Get My Head Around You
- Pretty Fly (For a White Guy)
- The Kids Aren’t Alright
Bis:
- You’re Gonna Go Far, Kid
- Self Esteem
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Oi, Marcelo.
Sou do site, de boa musica e gostei muita da resenha do show, principalmente pq estive lá satisfazendo um sonho antigo em assistir o Sublime que como vc disse, teve apoio do DNA para ressurgir das cinzas e deixar uma ponta de esperança em vermos reforço e novidades nesse legado. Falando em Sublime, acredito que tenha esquecido de.mencionar no set list a maravilhosa “STP” que expressa de forma didática a fusão punk, HC, ska e reggae que sempre foi tão bem executada. Confesso que a realeza do Offspring foi inicialmente deixada de lado pela paixão que tenho pelo Sublime- representada por uma “40oz to freedom” tatuada na panturrilha direita, mas como vc disse e Bruce Wayne utiliza tão bem quanto, o cinto de utilidades repleto de eficácia me fez permanecer na “roda punk “em todas as músicas, me garantido alguns hematomas e felicidade garantida no final e noite. Infelizmente, devido ao trânsito caótico para chegar na Barra, não consegui assistir o Rise Aganist. Desculpe se me extendi mas levado pela emoção de uma grande show punk e por um identificação com texto, me levei a deixar a vida assalariado de marido e pai satisfeito e pode fingir por algumas que tive uma das melhores experiências “juvenis” em pleno os meus 42 anos.
Obrigado e vida longa as boas músicas e bons shows!